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Gritos e sussurros

Olavo De Carvalho

São Paulo, Jornal da Tarde, 11 de maio de 2000

A esquerda nacional está indignada com o veto do governo à divulgação de uma entrevista de João Pedro Stédile pela TV Cultura. Por toda parte ergue-se a denúncia: “Censura!” E esta palavra exerce automático efeito revoltante, trazendo-nos a evocação de uma época em que cada um tinha de andar com uma rolha na boca, infame chupeta que nos reduzia à menoridade. Em princípio apóio, pois, qualquer protesto contra qualquer censura, sobretudo quando a vítima é o ferocíssimo líder emeessetista, um cidadão que, conforme já observei, quanto mais fala mais se enrola.

Também protestei ante um pedido de prisão emitido contra ele tempos atrás.

Já disse que preciso do sr. Stédile livre e saudável para um dia eu poder pegá-lo de jeito, diante das câmeras de tevê, e demonstrar ao Brasil inteiro, como demonstrei ao público presente no nosso debate na Bienal do Livro de Porto Alegre em 1998, que se trata de um formidável embrulhão. Se fazem muito mal ao coitado, fico inibido de submetê-lo à merecida palmatória dialética. Portanto advirto às autoridades: deixem-no em paz. Apenas emprestem-no para mim por uns minutos.

Não obstante, ao prestar aqui minha solidariedade ao sr. Stédile na sua condição de censurado (uma das poucas coisas que temos em comum), devo assinalar, de passagem, que o faço com certas reservas.

Em primeiro lugar, não sei se as autoridades estão totalmente erradas no caso. Digo isto porque a TV Cultura é propriedade pública: se não é lícito usá-la para fazer propaganda do governo, também não há de ser muito honesto usá-la para fazer propaganda contra ele. Uma tevê estatal – e a Cultura, malgrado as sutilezas da sua constituição, é no fim das contas exatamente isso – pertence ao Estado e não às facções que o disputam. Ela está acima dos conflitos políticos do momento. Ou ela deve recusar-se a servir de caixa de ressonância a esses conflitos, ou, se não puder fugir disso, deve ao menos tratar as partes conflitantes em pé de igualdade. A entrevista, portanto, não deveria ter chegado a ser gravada. Mas, uma vez que o foi, censurá-la não é solução que preste. O certo seria transmiti-la seguida de sua refutação por um porta-voz do governo (ou, se me permitem oferecer meus humildes préstimos, por este que lhes fala).

Em segundo lugar, não é certo chamar de censura somente as ações oficiais que tendam a impedir o livre debate. Censura é toda manifestação de um poder – oficial ou privado – que bloqueie o confronto de idéias ou a divulgação de informações. E o fato é que em cada redação deste país há uma tropa de choque incumbida de vetar notícias e comentários que prejudiquem o MST ou, de modo geral, a esquerda (eu próprio já fui vítima dessa máquina uns pares de vezes e por isso tenho autoridade para dizer ao sr. Stédile que sei o quanto dói). Só ignoram o bloqueio o JT, o Estadão e, de vez em quando, Veja. O resto é um amém de ponta a ponta, com esporádicos peixes varando a rede a título de salvação das aparências. Esse tipo de censura não desagrada em nada o sr. Stédile, e não creio que sua entrevista guardasse revelações mais importantes do que a massa daquelas que, graças aos fiéis agentes do Robin Hood dos Pampas, têm sido sonegadas ao público brasileiro.

Em terceiro, a gritaria geral ante o caso da entrevista contrasta de maneira escandalosa com o silêncio total em torno de um outro e recente ato de censura – ato ainda mais temível e revoltante porque não partiu de uma autoridade brasileira, mas de um poder estrangeiro. Refiro-me às tentativas do Greenpeace para calar a divulgação de notícias sobre a ameaça de ONGs européias e norte-americanas à soberania nacional. O órgão difusor das notícias e a vítima dessas pressões foi o boletim de um certo “Movimento de Solidariedade Latino-Americana”, de cuja diretoria faz parte o dr. Enéas Carneiro, um cidadão pelo qual tenho a mesmíssima dose de estima e consideração que sinto pelo sr. Stédile, mas que, como este, é um cidadão brasileiro e deve ter assegurado o seu direito de falar, escrever e publicar o que bem entenda. E ainda mais deprimente é a comparação entre o clamor de indignação num caso e a omissão cúmplice no outro, quando se considera que o sr. Stédile disputa o direito mais ou menos duvidoso de difundir suas opiniões numa tevê estatal, e o dr. Enéas o de imprimir com seu próprio dinheiro um boletim de fundo de quintal. Quando uma facção política exige o privilégio de vociferar em todos os megafones e nega à sua adversária o direito de sussurrar entre quatro paredes, já não é preciso temer o próximo advento de uma ditadura: porque ela já está entre nós.

Missão cumprida

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, 10 de maio de 2000

Diante do que expliquei sobre a esquerda e as drogas na Folha de 24 de abril, Marilene Felinto, enfezada criaturinha empenhada em mostrar serviço à ortodoxia ascendente, ligou sua máquina de denunciar e, nas linhas que consagrou à minha pessoa em 2 de maio, informou às autoridades do futuro Brasil socialista que sou perigoso, fascista, racista, homofóbico e extrema-direita, além de espírito de porco, paranóico, péssimo filósofo e falso desmascarador do discurso alheio – tudo isso sic.

Como ela usasse outros parágrafos do seu artigo para despejar de quebra um pouco de bile sobre o governador Garotinho e aproveitasse o restante para louvar a beleza, o charme e demais qualidades que compõem a seus olhos o sex appeal do traficante Marcinho VP, assim como para enaltecer os dons intelectuais que fazem do gatíssimo estuprador e assassino um profundo filósofo, compreende-se que não lhe restasse espaço para dizer o que, afinal, havia de errado nos meus argumentos. Mas é claro que ela jamais teve a intenção de fazê-lo. Porta-vozes de uma hidrofobia coletiva não têm de apresentar razões. Convocam a massa enraivecida, apontam com o dedo um suspeito, gritam o nome do candidato à guilhotina, e pronto. Missão cumprida. O nome do inimigo está registrado: no dia da vingança, não escapará. Marilene Felinto pode ir dormir em paz, sonhando cenas de amor bandido com Marcinho VP.

Não vou portanto discutir com a temível senhorita. Não vou tentar juntar, para examiná-los como se fossem coisa lógica, os cacos de um pensamento que expressa apenas uma personalidade errática e fragmentária, capaz de buscar no ódio projetivo a bodes expiatórios o alívio factício das paixões inconciliáveis que lhe atormentam a alma. Aristóteles já alertava para a incongruência de debater com incapazes. Não vou prostituir a arte da lógica tentando fazê-la valer contra uma mente desconjuntada que, imediatamente após me atribuir um “simplismo direita-esquerda”, sai me acusando logo de quê? De “direitista”! Nem vou tentar me explicar a alguém que ignora completamente os fatos em questão, ao ponto de imaginar que a ajuda das esquerdas à disseminação das drogas é mera opinião minha e não um fato notório reconhecido por quem quer que tenha vivido a década de 60 ou lido alguma coisinha a respeito.

O desprezo pela razão e a arrogância de opinar sem o mínimo conhecimento do assunto definem inconfundivelmente o incapaz a que se refere Aristóteles. Porém a Felinto realiza ainda com mais perfeição a essência da inépcia, na medida em que nem mesmo entende o que lê, pois me acusa de “ver esquerda e direita em tudo” justamente porque escrevi que um ex-ministro enxergou esquerda e direita num caso onde essas categorias eram totalmente descabidas. Aí o conselho do Estagirita já não expressa mais uma simples conveniência prática, mas uma necessidade lógica imperiosa: se uma pessoa não pensa, não sabe do que fala e não compreende o que lhe dizem, discutir com ela é não apenas inútil, mas impossível.

Diante de tanta estupidez, não vale nem a pena examinar o artigo dessa moça pelo lado moral. Não vou me entregar à faina inglória de remexer as trevas, contemplando a baixeza inominável de uma mentalidade da qual sua portadora, desprovida do dom da consciência, decerto se orgulha. Também não vale a pena protestar em vão contra a frivolidade monstruosa que, na volúpia de insultar, apela a imputações criminais de extrema gravidade – tão artificiosas, tão deslocadas de seu alvo, que não chegam a ter sequer a inocente dignidade do ridículo e são apenas, no fim das contas, uma coisa disforme e triste, uma esquisitice gratuita e deplorável.

Não me resta portanto muito o que dizer. Quero apenas registrar que Marilene Felinto cumpriu sua tarefa, a seus olhos talvez a mais alta a que um ser humano possa aspirar. Ela ergueu-se no meio da praça e apontou um suspeito. Não é para isso, afinal, que servem os jornalistas? Quando o Brasil tiver um governo comunista, ela poderá exibir seu artigo às autoridades e reivindicar aposentadoria especial por seus relevantes serviços de alcagüetagem de inimigos do povo.

A loucura triunfante

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 27 de abril de 2000

Durante décadas, a esquerda acreditou que havia neste país duas burguesias: uma nacionalista, empenhada em desenvolver a nossa economia; outra, aliada aos interesses norte-americanos e decidida manter o Brasil na condição de fornecedor de matéria-prima barata. A estratégia era portanto simples: aliar-se com a “burguesia nacional” contra o imperialismo.

A fórmula de Luiz Carlos Prestes, do agrado de Moscou que então advogava uma linha de luta eleitoral pacífica, tinha a vantagem de tornar o comunismo palatável a muitas famílias de ricaços e de abrir assim aos comunistas o acesso a altos postos no governo.

Na década de 60, a aliança rompeu-se. A incapacidade dos “burgueses progressistas” para reagir contra o golpe militar deixou os comunistas órfãos e eles entraram num surto de autocrítica do qual a estratégia de Prestes emergiu desfeita em cacos. O livro de Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira, publicado se não me engano em 1969, teve um formidável impacto desagregador. Ele alegava que não havia burguesia nacional nenhuma, que eram todos uns malditos imperialistas. Logo, o melhor era mandar a estratégia eleitoral às favas e partir para a luta armada, conclusão endossada por um livreto infame, também de muito sucesso, Revolução na Revolução, de Régis Debray. Tudo parecia muito científico, mas deu no que deu.

Os anos seguintes foram marcados pelo estancamento das fontes francesas, pelo desmantelamento do comunismo no Leste Europeu e pela formidável ascensão da “nova esquerda” norte-americana, que tão bem soube se aproveitar dos movimentos de direitos civis e juntar suas forças com a avassaladora onda psicótica da New Age que ia dissolvendo, um por um, os pilares da cultura tradicional norte-americana. Somou-se a isso a disseminação das idéias de Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano, que em vez da tomada violenta do poder por uma organização monolítica pregava a lenta penetração da esquerda na administração estatal e nos órgãos formadores da opinião pública por meio de redes flexíveis de colaboradores informais. Ao mesmo tempo, as nações ricas começavam a implantar o projeto de globalização e governo mundial, causando revolta entre os nacionalismos, mas, sobretudo, atraindo o concurso de ambiciosos intelectuais esquerdistas de todos os países, que, na esperança de aplicar a estratégia de Gramsci em escala global, iniciaram a “longa marcha” para dentro dos organismos internacionais, onde hoje reinam soberanos sobre os “movimentos sociais” plantados por engenheiros comportamentais no Terceiro Mundo e sobre os programas educacionais que vão moldando a mente da Humanidade futura.

A esquerda brasileira assimilou confusamente essas transformações, endossando a esmo os slogans dos novos movimentos sociais globalistas – feminismo, gays, “minorias raciais”, etc. -, e enxertando-os, aos trancos e barrancos, no ideário híbrido onde reminiscências da guerrilha já se mesclavam absurdamente a apelos nacionalistas herdados da aliança com a “burguesia progressista”.

Por isso é que hoje nossos esquerdistas podem, ao mesmo tempo, bufar de indignação patriótica ante o leilão de empresas estatais e inflamar-se de entusiasmo belicoso no apoio a protestos grupais divisionistas, insuflados por organizações estrangeiras para debilitar o poder nacional. Por isso é que podem berrar contra o “desmanche do patrimônio nacional”, ao mesmo tempo que aderem fanaticamente a uma visão afro-indigenista da História que resulta em negar a legitimidade da existência do Brasil enquanto nação. Por isso é que podem clamar contra a política do FMI e servir às organizações que lhe dão suporte no plano cultural e psicossocial. Por isso é que podem, ao mesmo tempo, querer salvar a economia e destruir o País.

Nossa esquerda, em suma, enlouqueceu. Mas enlouqueceu enquanto subia na vida. Encontrando as portas abertas pela omissão covarde de todas as outras correntes de opinião e pela ajuda de empresários idiotas que repetem às tontas “o comunismo morreu”, a esquerda colhe hoje os louros de 30 anos de “longa marcha”, imperando sobre os meios de comunicação, sobre o aparelho educacional e sobre a administração pública, repetindo, do alto do pódio, seu discurso monológico e insano. Ela nunca teve tanto poder e tanto medo.

Ela tem todos os meios à sua disposição: mas já não tem nada a transmitir exceto os germes de sua decomposição intelectual.

Foi o contágio da loucura esquerdista que transformou os festejos dos 500 anos numa palhaçada grotesca e masoquista. É ele que está no fundo de toda a angústia e a incerteza da vida brasileira hoje em dia.

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