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Lá vem encrenca

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de dezembro de 2005

WASHINGTON, D.C. – Quarta-feira da semana passada, li num despacho da agência Efe, reproduzido em vários jornais brasileiros, o seguinte: “ O presidente George W. Bush afirmou hoje que admite a responsabilidade pelos erros existentes nos dados dos serviços de Inteligência, que foram determinantes na decisão de lançar a guerra contra o Iraque”. O jornalista que escreve uma coisa dessas deveria ser processado e preso por fraude. Bush, que não teve responsabilidade nenhuma por aqueles erros, estaria mentindo contra si mesmo se a assumisse. Ele se declarou responsável pela decisão de ir à guerra, não pela produção dos erros de inteligência que afetaram parcialmente essa decisão. O texto do seu discurso do dia 13 é claro e não dá margem a nenhuma confusão entre uma coisa e outra. O despacho da Efe é, com toda a evidência, falsificação proposital, não sei se fabricada diretamente pela agência internacional ou resultado de maquiagem aplicada nas redações brasileiras. Mas, como se sabe, contra Bush vale tudo. Nos EUA, todo mundo entendeu o pronunciamento do presidente como um sinal de recuperação do seu poder de iniciativa depois de um período de inércia e paralisia. O discurso atemorizou e confundiu os democratas, ao ponto de jogá-los num esforço desesperado para tentar apagar da memória pública a pregação derrotista de uns dias atrás, com que esperavam fazer dano ao presidente e que só serviu para colocá-los numa posição humilhante. O discurso foi, manifestamente, uma vitória de George W. Bush. Transformar uma exibição de superioridade moral numa patética confissão de culpa é o suprassumo da falsificação.

Ademais, as informações que Bush recebeu do serviço secreto britânico sobre armas de destruição em massa não estavam tão erradas quanto o público imagina. Muitas dessas armas foram realmente encontradas (já mencionei aqui a lista publicada no livro de Richard Miniter, Disinformation). Dizer que elas não existiam, que Bush as inventou, é desinformação criminosa, colaboração ativa com o inimigo. Bush sabe disso, mas o número de traidores nos altos círculos de Washington é tão grande que, se ele dissesse a verdade a respeito deles, desencadearia a maior crise política da história americana. Ele tem procurado contornar a situação, tentando desarmar os traidores pouco a pouco, discretamente, ao mesmo tempo que, em público, os trata como se fossem patriotas bem intencionados. Aqui todo mundo sabe que é fingimento, que a elite esquerdista do Partido Democrata é uma quinta-coluna, que Bush está simplesmente tratando de ganhar terreno aos poucos por não sentir que tem força para sustentar ao mesmo tempo uma guerra no exterior e uma crise de governabilidade no interior. Os Clintons, os Kennedys e tutti quanti , por sua vez, fazem de conta que querem a volta dos soldados americanos, mas, na hora H, votam contra ela. Agem assim porque sabem que, quando Bush se livrar da carga iraquiana, estará pronto para esmagá-los como quem pisa numa lagartixa. Ele tem informações suficientes para mandar muitos deles para a lata de lixo ou para a cadeia. Tem evitado usá-las, porque isso seria o fim do Partido Democrata, a destruição do tradicional equilíbrio bipartidário que é a base da democracia americana. Mas, se acuado, não terá remédio senão lançar o ataque final. E aí haverá choro e ranger de dentes. Os republicanos estão tão armados que têm medo de si mesmos.

Um item importante do arsenal, guardado com a maior discrição durante meses e que está para ser liberado pelo secretário Rumsfeld para discussão no Congresso, é o sumiço de um dossiê que, um ano antes do 11 de setembro, revelava a presença em território americano de uma célula da Al-Qaida chefiada pelo terrorista Mohammed Atta, um dos mentores do atentado ao World Trade Center. Na época, o investigador do Departamento de Defesa que estava seguindo essa pista, o tenente-coronel Tony Shaffer, foi simplesmente impedido de passar a informação ao FBI, que assim não pôde desmantelar a célula. Impedido por que? Porque o então presidente Clinton – conforme escrevi na Zero Hora de Porto Alegre 30 de maio de 2004 – “havia centralizado na Casa Branca o controle direto de todos os órgãos de segurança e bloqueado propositadamente as comunicações entre eles. A CIA, o FBI e outras agências estavam então conduzindo investigações paralelas sobre as verbas ilegais de campanha dadas ao candidato Clinton pelo exército da China e os subseqüentes favores que, uma vez eleito, o gratíssimo presidente prestou aos serviços de espionagem chineses. Sem intercâmbio de informações, os investigadores não puderam, na época, juntar os fios da trama.”

Paulo Francis costumava dizer que Clinton sairia da Casa Branca algemado. Saiu livre, mas a nação pagou por isso um preço intolerável: as informações sobre Mohammed Atta não chegaram ao FBI e a operação terrorista que poderia ter sido abortada foi levada a cabo com sucesso literalmente… estrondoso. Foi decerto o maior crime que um presidente dos EUA já cometeu contra o país, com o agravante do motivo torpe: esquivar-se de pagar por um crime anterior.

Mas a sujeira não terminou aí. Em 2003, estava reunida a famosa comissão parlamentar de inquérito cuja principal ocupação foi abafar a responsabilidade do Congresso pela declaração de guerra baseada em informações inexatas e jogar a culpa de tudo em George W. Bush. Ela improvisou para isso até mesmo um heroizinho postiço, Richard Clarke, que brilhou por quinze minutos e depois desapareceu para sempre na noite dos tempos quando se comprovou que não só seu depoimento era falso como sua identidade também era (isso já deveria ter bastado para esvaziar a comissão, mas a mídia, que emprestara todos os seus megafones a Clarke, foi discretíssima ao noticiar sua desmoralização). Pois bem: o coronel Shaffer passou a essa comissão um dossiê com todas as informações sobre a célula de Mohammed Atta e sobre a supressão delas pelo governo Clinton. A comissão fez de conta que não viu. No seu relatório final, um tratado de antibushismo, nem sequer mencionou o dossiê. Nenhuma ocultação de crime é perfeita se não se oculta a si mesma. A comissão completou o trabalho sujo de Bill Clinton.

Para vocês entenderem por que ela fez isso, têm de saber um detalhe: a assessora que Clinton designou para tapar os canais de comunicação entre os serviços de inteligência chamava-se Jamie Gorelick. Quem é ela? Entre os favores prestados pelo governo Clinton à China em retribuição da ajuda de campanha, favores que os órgãos de inteligência estavam justamente investigando na ocasião, estava a permissão dada a uma subsidiária da General Electric para vender ao exército chinês equipamentos que, segundo se revelou depois, serviam para a fabricação de mísseis intercontinentais direcionados ao território norte-americano. Jamie Gorelick era advogada dessa subsidiária. Se ela tivesse saído do palco no fim do governo Clinton já teria levado para casa uma bela folha de serviços criminosos. Mas em 2003 ela era deputada — e foi designada para qual comissão? Essa mesma comissão da qual eu estava falando. Ou seja: a criadora do bloqueio geral que paralisou os serviços de segurança e possibilitou o atentado de 11 de setembro foi encarregada de investigar as falhas de segurança que possibilitaram o atentado de 11 de setembro. Não é de espantar que o dossiê de Tony Shaffer fosse para o beleléu.

O tenente-coronel, depois disso, andou denunciando a sujeira toda, com o apoio do deputado Curt Weldon (que já mencionei aqui). Mas a denúncia teve boa cobertura só na Foxnews, em programas de rádio, na internet e nuns poucos jornais pró-Bush. A grande mídia, que tem mais amor por Bill Clinton do que a mãe dele, abafou a história até fazê-la desaparecer por completo. E o próprio presidente Bush, cuja persistente discrição quanto aos crimes dos seus adversários políticos beira a abnegação suicida, simplesmente proibiu que Weldon convocasse Shaffer a depor no Congresso. Às vezes não entendo a cabeça desse sr. Bush, uma espécie de Gonçalo Ramires americano, tão desengonçado, tão inarmônico consigo mesmo, tão ousado numas coisas e tímido em outras quanto o personagem de Eça de Queiroz. O homem capaz de declarar guerra ao mundo parece preferir antes deixar que os adversários internos o matem a agulhadas do que jogar logo sobre eles a bomba que tem na mão, capaz de destrui-los todos de uma vez. Ele me lembra o verso de Rimbaud, “ par délicatesse j’ai perdu ma vie ”. Mas, quaisquer que fossem as suas razões íntimas para manter o silêncio, elas parecem não ter resistido à queda de popularidade. Curt Weldon disse esta semana na CNN que o secretário Rumsfeld está para liberar a convocação de Shaffer. “Finalmente o povo americano vai saber a verdade”, afirmou o deputado. Quando acontecer, nem todo o clintonismo da mídia chique poderá abafar a explosão. Talvez nem mesmo a mídia brasileira, a mais mentirosa do mundo, consiga esconder um escândalo desse porte.

A campanha de ódio movida pelos democratas contra George W. Bush é tão violenta, tão histriônica, tão forçada, tão desproporcional com os modestos pecados do presidente – e sobretudo tão injusta para com o sucesso alegadamente impossível que ele está obtendo em consolidar a democracia no Iraque –, que não pode se inspirar tão-somente em motivos ideológicos. A eles soma-se uma desesperada articulação de esforços para salvar a pele de Bill Clinton, de Jamie Gorelick e da comissão do 11 de setembro inteira. É preciso muitos crimes imaginários para encobrir tanta corrupção, tanto perjúrio, tanta alta traição. Tal como aconteceu com o PT no Brasil, os campeões do moralismo indignado, os donos da tribuna de acusação, acabarão se revelando os maiores criminosos de todos. Weldon e Shaffer são dois rottweilers mantidos na coleira só pela mão incerta de Donald Rumsfeld. O secretário está só medindo o tamanho da encrenca que a dupla vai armar quando ele a soltar no galinheiro democrata. E parece que está começando a gostar da idéia.

***

Estou acompanhando, divertido, o bate-boca entre Diogo Mainardi e Alberto Dines sobre quem manda no jornalismo brasileiro, o PT ou a Opus Dei. Até o momento, dez a zero para o Mainardi. Dines não conseguiu apontar um só agente daquela organização católica nos altos escalões da mídia nacional. Se algum há, está bem camuflado ou é um monstro de timidez, pois não ousa sequer dizer uma palavrinha contra o anticristianismo militante que erigiu em norma de redação o hábito de carimbar de “extremismo de direita” a simples oposição à lei do aborto. Diga-se de passagem que o próprio Mainardi aprova essa lei, apenas recusando-se a defendê-la pelos meios torpes que se tornaram de praxe entre os coleguinhas – e essa recusa já basta, é claro, para que ele próprio seja catalogado na temível “extrema direita”.

O “Observatório da Imprensa” de Alberto Dines não é uma entidade independente. É um órgão militante, ponta-de-lança do esquerdismo internacional que lhe paga as contas. Já provei isso e nunca fui desmentido. Mainardi, que eu saiba, não recebe dinheiro de nenhuma organização política, mas, pelos critérios da esquerda, o simples salário de jornalista profissional, tão limpo quando pago a esquerdistas, se torna uma espécie de propina corruptora quando vai parar num bolso politicamente incorreto. No jornalismo brasileiro, todos os valores foram invertidos. Quando Dines é subsidiado diretamente pelos interesses políticos que defende, pratica jornalismo idôneo ao ponto de ser aceito como juiz da credibilidade alheia. Quando Mainardi escreve com liberdade aquilo que pensa, é um corrupto a soldo de interesses tenebrosos.

É de espantar que, quantos mais brasileiros aprendem a ler, menos sejam entre eles os interessados em ler jornal?

Não é caso para rir

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 15 de dezembro de 2005

Quando os dogmas politicamente corretos entraram em circulação no Brasil, a reação das pessoas sensatas foi rir. Nada mais justo. Mas em seguida impugnavam como paranóia qualquer insinuação de que houvesse ali algum perigo real. Mostravam, com isso, não ser tão sensatas quanto pareciam. E acabavam provando ser definitivamente idiotas quando, diante das provas de que aquela mutação lingüística era uma arma de dominação cultural concebida com requintes de maquiavelismo, ficavam tão perturbadas que disfarçavam o medo fingindo indiferença superior.

Modas lingüísticas, mesmo ridículas, disseminam e consolidam sentimentos, reações, automatismos. Dão um ar de naturalidade à aceitação forçada de novos critérios do bem e do mal, da verdade e do erro. Passada uma geração, o ridículo tranfigura-se em leis e instituições — e pune com severidade quem não o levar mortalmente a sério.

Querem um exemplo?

Ao proibir a circulação do livro “Orixás, Caboclos e Guias”, do bispo Edir Macedo, o desembargador Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, diz que a obra, por chamar de demônios as entidades cultuadas na umbanda e no candomblé, “incita a segregação religiosa e a intolerância às religiões afro-brasileiras”.

“A liberdade de expressão — prossegue o meritíssimo — não se revela em termos absolutos, como garantia constitucional, mas deve ser exercida nos limites do princípio da proporcionalidade…”

O que ele está dizendo é que o simples ato de falar contra uma religião atenta contra o direito fundamental de segui-la. Mas é óbvio que a liberdade de seguir qualquer religião implica, essencial e incontornavelmente, o direito de não gostar das outras e de falar contra elas. E a liberdade de ser ateu ou agnóstico implica o direito de falar contra todas de uma vez. Suprimir esse direito é suprimir aquela liberdade. Suprimi-lo em nome dela, como o faz o dr. Souza Prudente, é a apoteose do nonsense. É o ridículo politicamente correto transmutado em imposição judicial.

A Constituição, por sua vez (art. 220), não coloca nenhum limite ao exercício da liberdade de expressão, muito menos em nome de algum “princípio de proporcionalidade”. Fala-se em proporcionalidade quando o direito de um está condicionado ao exercício do mesmo direito por outro. Por exemplo, o direito a certos bens de uso comum: se você se pendura num telefone público o dia inteiro, está impedindo os outros de usá-lo. Mas é impossível que o simples exercício da liberdade de expressão por um indivíduo ou grupo impeça os outros de se entregarem ao mesmo exercício. Que um sujeito diga “a” ou “b” não constitui jamais obstáculo a que outro diga “c” ou “d”. Que um cristão publique um livro contra a religião alheia não impede que se publiquem livros contra o cristianismo, como aliás se publicam aos milhares, e violentíssimos, sem que isso aparentemente magoe a delicada sensibilidade jurídica do dr. Souza Prudente, ou Imprudente.

Se a liberdade de expressão não tem como ser frustrada pela disseminação do seu próprio exercício, mas sim somente desde fora, por um fator heterogêneo como a ameaça de agressão, a chantagem moral ou um abuso de autoridade, é evidente que sua garantia constitucional não é “proporcional”, mas absoluta e incondicional, ressalvadas as exceções expressas da lei penal, que jamais pune esse exercício enquanto tal mas apenas o seu uso para finalidades ilícitas. Se o conteúdo de “Orixás, Caboclos e Guias” fosse criminoso, o dr. Souza Prudente puniria o seu autor pelo crime correspondente. Não podendo acusá-lo de crime, jogou contra ele um princípio descabido e, não contente com isso, ainda aboliu uma garantia constitucional explícita.

Não sei se ele fez isso porque tem a capacidade analítica embotada ou porque quer embotar a nossa. Em qualquer dos dois casos, é politicamente correto. Com o tempo, todos os juízes ficarão assim. Risos e afetações de superioridade não livrarão ninguém da tirania imposta em nome da liberdade.

Consciências deformadas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de dezembro de 2005

Semanas atrás, escrevi aqui que as denúncias contra Tom De Lay não passariam na Justiça; que eram apenas um truque sujo concebido para afastar de seu cargo na Câmara o líder republicano que constituía um pesadelo para os democratas. Dito e feito: as acusações principais já caíram. De Lay agora prepara o contragolpe judicial contra o promotor Ronnie Earle e provavelmente vai acabar com a carreira do distinto. Mas nem por isso conseguirá voltar à liderança em tempo de reconquistar seu prestígio antes das eleições parlamentares de 2006. O golpe baixo acertou em cheio. Uma coisa é estar limpo perante os tribunais; outra é lavar uma imagem coberta de infâmia pela vasta e persistente campanha de mídia que secundou (até no Brasil, para vocês verem como essas coisas vão longe) a investida de Ronnie Earle, tarimbado difamador judicial de inimigos políticos. Não que a palavra dos jornalistas pese alguma coisa nas eleições: uma recente pesquisa da Gallup mostra que apenas 24 por cento dos americanos acreditam um pouco neles ( http://www.mediainfo.com/eandp /news/article_display.jsp?vnu _content_id=1001614003 ). Mas pesa no ambiente social em torno, que pode oprimir com todo o peso do inferno. A prova de inocência não remove esse peso um só milímetro. De Lay continuará com a fama de escroque, e a esquerda ainda ganhará mais um mártir: Ronnie Earle.

Ninguém, como o pessoal da mídia e da intelligentzia esquerdista, tem a capacidade de continuar fingindo crença numa mentira longo tempo depois de desmascarada. Vejam, por exemplo, o último filme de George Clooney, Good Night, and Good Luck , que glorifica um jornalista medíocre, Edward R. Murrow (personificado por David Strathairn), por haver combatido o senador Joe McCarthy. A velha choradeira antimacartista ainda funciona, mais de uma década depois de provado que nenhum dos investigados do famoso Comitê McCarthy era vítima inocente, que todos eram mesmo devotados colaboradores secretos de uma ditadura genocida, usando dos direitos democráticos para destruir a democracia. Depois da abertura dos arquivos de Moscou e da publicação dos comunicados entre a embaixada soviética e o Kremlin no período da Guerra Fria, pode-se acusar McCarthy de tudo, inclusive de melar a campanha anticomunista por inabilidade afoita, mas não de ter errado os alvos. Se têm dúvidas, leiam Joseph McCarthy, de Arthur Herman (Free Press, 1999), e Venona: Decoding Soviet Espionage in America , de John Earl Haynes e Harvey Klehr (Yale Univ. Press, 2000). O filme é tão besta que, falando o tempo todo de inocentes acusados, não é capaz de mostrar um só deles. Mas a República Popular de Hollywood é capaz de ver nisso mesmo a prova de que eles existiam aos milhares. Um só chavão vale mais do que mil imagens que o desmintam.

O hábito da mentira e do auto-engano está de tal modo arraigado na elite esquerdista que se tornou como que sua segunda natureza. A amplitude do fenômeno está tão bem documentada hoje em dia que ninguém pode se considerar bem informado se ainda se surpreende com ele. Para quem está habituado ao assunto, é até redundante, por exemplo, a proposta do livro, no mais interessantíssimo, Do As Say, Not As I Do (“Faça o que eu digo, não o que eu faço”, New York, Doubleday, 2005), em que o jornalista Peter Schweitzer, autor de uma maravilhosa biografia de Ronald Reagan, compara os discursos do beautiful people esquerdista aos seus feitos na vida real. A maldade que Paul Johnson fez com os gurus clássicos do pensamento esquerdista em Intellectuals , Schweitzer faz com seus seguidores na política, na academia e no show business . O resultado, como não poderia deixar de ser, é arrasador. O enfatuado Michael Moore, fiscal número um da moralidade alheia, demoniza a Hallyburton, acusando a empresa de petróleo de lucrar com a guerra. Quando se vai ver, o próprio Moore é acionista da Hallyburton – e, tal como os demais acionistas, não ganhou coisa nenhuma com a guerra. Aliás ele vivia declarando que não tinha ações da bolsa: Scweitzer publica a lista de todas elas, extraída da sua declaração de rendimentos, com a assinatura do declarante. Al Franken, assanhado comentarista da estação clintoniana Radio America e pretendente a adversário do conservador Rush Limbaugh, chama a América inteira de racista e posa de entusiasta da lei de quotas — mas, entre seus empregados, a quota de negros é de menos de um por cento. Nancy Pelosi, enfezadíssima líder democrata na Câmara, é tão famosa como defensora dos direitos sindicais que suas campanhas eleitorais se tornaram recordistas de contribuições dos sindicatos – mas suas empresas vinícolas, hoje entre as mais prósperas dos EUA, não aceitam empregados sindicalizados. Noam Chomsky, acusador emérito do Pentágono, vive de um discreto contrato milionário com… o Pentágono. Já nem falo nada de Ted Kennedy, dos Clintons e de George Soros. Não vou tirar de vocês o prazer de ler o livro – em inglês, é claro, pois obras dessa natureza não furam o cinto de castidade que protege a virgindade intelectual brasileira.

Se depois de saber dessas coisas vocês ainda tiverem estômago para agüentar lixo esquerdista de maior tonelagem, sugiro a leitura de Stalin: The Court of The Red Tsar , de Simon Sebag Montefiore (Vintage Books, 2003), de Mao: The Unknown Story , de Jung Chang e Jon Halliday (Knopf, 2005) e de Fidel: Hollywood’s Favorite Tyrant , de Humberto E. Fontova, já citado aqui (Regnery, 2005). Estão, na opinião geral, entre os melhores estudos biográficos dos três líderes esquerdistas mais conhecidos do mundo. E o traço mais saliente das vidas dos três é a sua total inescrupulosidade, sadismo, crueldade, com doses de malícia e covardia quase inimagináveis para o cidadão comum. Tudo isso aliado, é claro, à pretensão de personificar a autoridade da presciência histórica, habilitada a julgar os vivos e os mortos desde as alturas de uma virtude quase angélica. Sem dúvida, o movimento esquerdista mundial criou um tipo humano característico, marcado pela presunção de impecabilidade, pela licença ilimitada para praticar o mal com consciência tranqüila e sobretudo pela compulsão autovitimizante que leva cada um desses indivíduos, no alto do poder despótico, a sentir-se um pobre menino incompreendido pelo coração duro dos pérfidos conservadores.

Junte todo esse material na sua cabeça e depois medite o seguinte ponto: quem conhecesse essas coisas em 2002 teria caído no engodo da “ética” petista, mesmo não possuindo nenhum indício concreto de corrupção no partido? A resposta é um decidido “Não”.

Mas, saltando por cima da atualidade, os dados também sugerem a pergunta sobre as origens: como foi possível, historicamente, o surgimento e a ascensão de tipos humanos tão formidavelmente ruins, perto dos quais qualquer tirano da antigüidade, qualquer inquisidor da Idade Média, qualquer corrupto do Renascimento ou, mais ainda, qualquer líder conservador como Disraeli, Churchill ou a sra. Thatcher, por mais estragado que seja, fica parecendo São Francisco de Assis?

A resposta tomaria vários volumes, mas um fator incontornável é a mudança do eixo da auto-imagem moral íntima dos indivíduos humanos, inaugurada pelo movimento revolucionário entre os século XVIII e XX. Os documentos mais vivos dessa mudança são, evidentemente, as narrativas autobiográficas, que se tornam abundantes nessa época e, a partir das Confissões e Devaneios de Jean-Jacques Rousseau, contrastam agudamente com suas precursoras antigas e medievais, cujo modelo são as Confissões de Sto. Agostinho. Todo discurso, ensina a arte retórica, tem um destinatário ideal. Sto. Agostinho faz por escrito o traslado ampliado do que seria uma confissão sacramental. Seu ouvinte, por definição, não pode ser enganado, porque é onissapiente. A consciência da sua presença permanente defende Agostinho contra a tentação da mentira interior, mas defende-o também do desespero, da autocondenação radical, da dramatização excessiva dos próprios males, porque aquela presença é também a do perdão universal.

Jean-Jacques, por seu lado, fala para a “opinião pública”, cujos favores solicita. Não é de espantar que procure enganá-la por todos os meios, enganando-se a si próprio por tabela. Quando fala de seus pecados, ele ou os esconde por completo ou, ao contrário, os exagera histrionicamente, deleitando-se nas suas próprias misérias, quase ao mesmo tempo que admite, com modéstia exemplar, ser portador de qualidades morais jamais superadas e, pensando bem, a alma mais linda e pura da Europa. Substituída a onissapiência amorosa do ouvinte pela extensão quantitativa de um “público” que o autor ao mesmo tempo corteja e despreza, a imagem da alma refletida também se modifica proporcionalmente, deformando-se à medida da ilusão coletiva, móvel e incerta, na qual o autor busca um espelho onde enxergar-se objetivamente, sem lembrar-se que é ele mesmo que a está criando pela influência que exerce sobre o público.

Nenhum homem alcança a onissapiência, mas saber que ela existe o ajuda a não se enganar, quando ele, ao ingressar na aventura do autoconhecimento, se sente observado por olhos eternos que “sondam os rins e os corações”. Durante séculos a disciplina do exame de consciência, à luz dos Dez Mandamentos, deu a cada homem o máximo de objetividade possível no julgamento de si. Já os olhos da platéia se movem conforme os gestos do ator, que a manipula ao mesmo tempo que se submete às suas preferências do momento.

A modernidade começa com essa mutação fraudulenta da consciência de si. Que ainda levasse dois ou três séculos para que monstros de falsa consciência como Stalin, Mao e Fidel fossem considerados modelos de virtude, é algo que se deve, é claro, à subsistência discreta do antigo critério de julgamento no seio mesmo da cultura que o nega e que desejaria extingui-lo para sempre.

Se ainda há um pouco de moral e dignidade no mundo, é porque algo da consciência de ser visto por um observador onissapiente, imune às flutuações da alma individual e da platéia coletiva, subsiste no coração humano. Em plena apoteose do laicismo moderno, ainda há muitos seres humanos que caminham diante dos olhos do Senhor. Eles são a única régua e medida para o julgamento dos demais. Por isso o Evangelho diz que vão julgar o mundo. O que os outros pensem ou deixem de pensar não pesa nisso no mais mínimo que seja.

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