Artigos

Vampiros filosóficos

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 29 de dezembro de 2005

Expliquei num artigo anterior que a rígida separação de “ciência” e “fé” é uma fraude kantiana que a intelectualidade ativista endossou porque convinha a seus interesses, mais baixos e desprezíveis que os de qualquer investidor capitalista, já que este arrisca neles o seu próprio capital e ela o dos outros.

A filosofia kantiana inteira é um embuste, criado por um charlatão inconsciente que se imaginava honesto porque nem sabia o que era honestidade. Tanto não sabia, que achava uma intolerável improbidade a vítima mentir para o ladrão que pergunta onde está o dinheiro; e não via nada de mais em descumprir o prometido quando morre o infeliz a quem se fez a promessa. O sistema que consagra a obediência aos ladrões e o direito de ludibriar os moribundos é um caso de estupidez moral sublime.

Filosofias como as de Maquiavel, Kant, Hegel, Fichte, Rousseau, Marx, Nietzsche – as prediletas da modernidade –, mantêm você ocupado em destrinchar suas dificuldades internas, até você se dar conta de que elas são ainda mais confusas do que a realidade que alegam explicar. Fazem parte do problema e não da solução.

A diferença entre elas e as filosofias de Platão, Aristóteles, Sto. Tomás, Duns Scot, Leibniz ou mesmo Schelling, é que estas têm em si o princípio da sua própria inteligibilidade, ao passo que aquelas sempre exigem o apelo a razões exteriores que as elucidem, ou até a explicações biográficas que tornem psicologicamente digerível o que logicamente é inaceitável. Como esses enxertos divergem entre si, jamais podem resolver o problema e se torna necessário multiplicá-los ad infinitum , o que torna aquelas filosofias ainda mais enigmáticas. São filosofias parasitas, sanguessugas, que não dão nada ao estudioso mas nutrem-se da seiva vivificante que ele próprio injeta nelas. Por isso mesmo exercem sobre a mente do coitado um fascínio hipnótico irresistível: quanto maior o investimento psicológico no vazio, maior a relutância em admitir o prejuízo, portanto maior a tendência de redobrar a aposta depois de cada novo fracasso. É preciso um bocado de coragem para se libertar de um vampiro. Na falta dessa coragem, adorna-se com o rótulo paradoxal de “fecundidade” a capacidade que uma filosofia tem de suscitar tentativas estéreis de enxergar racionalidade no irracional.

Um dos efeitos incontornáveis desse fenômeno é que o estudo da filosofia se desvia do esforço de compreender a realidade para a curtição sem fim dos enigmas internos da “obra”, da “estrutura”, do “texto” etc. A filosofia torna-se um fetichismo pedante, perdendo em substância cognitiva o que ganha em riqueza de vocabulário esotérico, palavras-de-passe, rituais de agregação etc. O prestígio adquirido na freqüentação desses jogos iniciáticos pode em seguida ser reinvestido no apoio a causas políticas que, por isso mesmo, ficam a priori imunizadas contra qualquer tentativa de exame filosófico sério. Quanto mais imbecil um slogan partidário, tanto mais respeitável ele fica parecendo, porque se sabe que, à menor provocação, um vasto cabedal de argumentos elegantemente absurdos pode ser convocado para prestigiá-los, desencorajando tanto o adversário leigo que se vê incapaz de discuti-los quanto o estudioso que sabe que ali não há nada para ser discutido. As novecentas páginas que D. Marilena Chauí consagrou a fazer de Spinoza um cabo eleitoral do PT são o mais célebre exemplo nacional desse gênero de discurso. Sua eficácia publicitária esteia-se inteiramente na certeza de que ninguém jamais as lerá.

Antigamente, uma filosofia não resistia à demonstração da sua inconsistência. Na nossa época, a facilidade mesma com que Roger Scruton arrasa os “Thinkers of the New Left” ou Alan Sokal desmascara as “Imposturas Intelectuais” imuniza os acusados contra a perda de prestígio. Para que serve demonstrar a irrealidade de filosofias que jamais pretenderam ter algum contato com a realidade, exceto aquele, externo e retroativo, da serventia política que dão à imagem de seus autores?

Seis dificuldades

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 28 de dezembro de 2005

Para restaurar uma política conservadora no Brasil há seis condições indispensáveis:

1. É inútil esperar que o país progrida na direção de uma democracia capitalista quando se tem inibição de defender abertamente a superioridade do capitalismo e se permite que o discurso anticapitalista, explícito ou implícito, monopolize todos os canais de comunicação e cultura.

2. É inútil proclamar a superioridade do capitalismo quando se tem a inibição de afirmar que essa superioridade é também de ordem moral e não somente técnica e prática. Se as pessoas admitem que o capitalismo funciona melhor, mas continuam achando que o socialismo é o bem, a única conclusão que podem tirar disso é que a eficiência é um pecado. E então perdoarão toda ineficiência e prejuízo, se for o preço do socialismo.

3. É inútil afirmar a superioridade moral do capitalismo quando não se entende que ela só veio a existir historicamente porque incorporou e perpetuou os valores da civilização ocidental, fundados na revelação judaico-cristã, na filosofia de Platão e Aristóteles e na experiência político-jurídica romana. Quem pretende que a pura força espontânea da liberdade de mercado possa tornar-se um princípio fundante e substituir esses valores não entende que a liberdade de mercado é a simples expressão deles na ordem econômica e não sobrevive à extirpação das raízes civilizacionais que a fundam e a alimentam. O capitalismo prosperou nos EUA porque protegeu e fortaleceu essas raízes; definhou na França porque quis colocar no lugar delas o mito da sociedade plenamente laicizada. O liberalismo materialista é a quinta-coluna do socialismo atuando dentro da cidadela mesma do capitalismo.

4. É inútil, por fim, tentar defender a democracia capitalista, mesmo com todos os seus valores associados, quando no plano da política internacional se cede às pressões e chantagens do bloco anticapitalista, anti-americano, anticristão e antijudaico. Esperar que o Brasil progrida com a ajuda da China ou da Rússia — para não falar da Líbia ou do Irã — é querer que estes países nos dêem o que não têm nem para si próprios. A única aliança que pode nos ajudar é com os EUA e Israel. A União Européia, hesitante e ambígua, deve ser mantida em banho-maria até que decida de que lado está.

5. Mas a causa fundamental de que essas realidades óbvias fossem esquecidas reside no acovardamento da própria política exterior americana no continente, que desde a gestão Clinton se absteve de defender os valores tradicionais do americanismo e os substituiu por uma estratégia de auto-sabotagem, que desde o início já parecia calculada para produzir exatamentamente o resultado que produziu: a ascensão geral da esquerda e a maré montante do anti-americanismo. É inútil, portanto, lutar pela restauração de uma sensata política conservadora no Brasil sem exigir, ao mesmo tempo, uma mudança radical da política externa americana para com a América Latina (em artigos vindouros analisarei este ponto mais detalhadamente).

6. Porém ainda mais inútil que tudo isso é sonhar com essa restauração sem mobilizar em favor dela a única classe que pode ainda ter alguma consciência de que ela é necessária. O empresariado nacional cedeu demais ante as exigências “politicamente corretas” impostas por intelectuais ativistas que sabem lisonjeá-lo mas que no fundo só desejam a sua morte. Deixou-se seduzir e intoxicar demais pela capciosa “novilíngua” que recobriu de uma aparência inofensiva, caritativa e benemérita, os velhos engodos estatistas e socialistas de sempre. Por isso está hoje culturalmente desarmado, confuso, ideologicamente esvaziado, chegando a lutar mais contra si próprio do que contra seus inimigos notórios. Sem uma genuína política conservadora não haverá esperança para o Brasil. Mas sem um profundo revigoramento cultural do empresariado não haverá política conservadora nenhuma.

Feliz Ano Novo? Que cinismo!

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de dezembro de 2005

O Brasil entra em 2006 nas seguintes condições:

(1) O governo federal está nas mãos de um partido que, subindo ao poder sobre os cadáveres das reputações de seus adversários, usou de sua fama de restaurador da moralidade como camuflagem para poder criar o mais vasto e eficaz sistema de corrupção política já observado neste país.

(2) Ao longo de sua ascensão, apoiada na hegemonia previamente conquistada pela “revolução cultural” gramsciana, esse partido desarmou completamente seus possíveis adversários ideológicos, ao ponto de nas eleições presidenciais de 2002 seu candidato não ter de concorrer senão com imitadores do seu discurso, cada um tentando provar que era o mais esquerdista dos quatro. E tão completo era o domínio exercido pela esquerda sobre a mentalidade pública, que essa disputa em família, com total exclusão de discordância ideológica por mais mínima que fosse, foi celebrada por toda a mídia cúmplice como “a mais democrática de toda a nossa História”. Neurose, dizia um grande psicólogo que conheci, é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita. O Brasil continuará doente enquanto não recordar e desmascarar a farsa com que aceitou alegremente colaborar em 2002.

(3) O deslocamento do fiel da balança para a esquerda falseou todo o quadro das opções políticas, ao ponto de que hoje a hipótese mesma de um discurso de direita, na linha do Partido Republicano americano ou do Partido Conservador inglês, se tornou inviável e inconcebível no Brasil. O máximo de direitismo admitido é o do PSDB, partido pertencente à Internacional Socialista e comprometido a implantar no Brasil todas as mutações sociais e culturais defendidas pela esquerda mundial, como o abortismo, o casamento gay, o “direito alternativo” etc. Eliminada a possibilidade de divergências de fundo, sobraram apenas a disputa de cargos e o bombardeio mútuo de acusações de corrupção: a política reduziu-se a um bate-boca entre quadrilhas de ladrões. O PFL, que poderia ter representado a alternativa ideológica ao consenso socialista, abdicou de seu dever e acomodou-se à função de tropa auxiliar de uma das quadrilhas.

(4) Como nem a esquerda petista nem seus adversários tucanos conseguiram conceber nenhuma alternativa viável à política econômica “ortodoxa” do FMI, esta se mantém como orientação dominante desde o governo FHC, sem perspectiva de ser abandonada por qualquer das facções que suba ao poder. À sombra da estabilidade econômica, erigida em único bem digno de ser preservado, a máquina de subversão instalada no governo está livre para transformar o sistema judiciário em instrumento da luta de classes, o ensino público em pregação do ódio anticapitalista, as instituições de cultura em megafones do discurso comunista mais estúpido e grosseiro que o mundo já ouviu. Ninguém liga. A lepra socialista pode se alastrar por todo o corpo da sociedade, dominar as consciências, perverter todas as relações humanas. Enquanto não mexer diretamente nas contas bancárias dos senhores barões, estes continuarão achando tudo lindo. A classe chamada dominante já não domina nada há muito tempo, está cercada e acuada, reduzida a viver de favores mendigados à elite comunista, mas como ainda tem dinheiro para gastar em Londres e Nova York, mantém a pose. E se tentamos lhe explicar o perigo que corre, responde com a clássica reação do covarde orgulhoso: estrangula o mensageiro das más notícias.

(5) A criminalidade triunfante já ultrapassou de há muito os limites dentro dos quais podia ainda se considerar um problema corrigível. Tornou-se um fato consumado, uma constante da natureza, um modo de ser, uma instituição. Segundo dados oficiais da ONU, são 50 mil homicídios por ano. Segundo pesquisas locais do jornalista espanhol Luís Mir, 150 mil. A polícia, intimidada pela superioridade bélica dos narcotraficantes e sobretudo pelo temor que lhe inspira o olhar malicioso da classe jornalística, se ocupa apenas de sobreviver e mostrar-se o mais inofensiva possível. Enquanto isso, o governo continua de namoro com as FARC e a intelectualidade esquerdista clama pela libertação de qualquer agente da narcoguerrilha colombiana que por acaso vá parar na cadeia, onde aliás é poupado de qualquer pergunta comprometedora.

(6) As Forças Armadas, enfraquecidas por sucessivos cortes de verbas, humilhadas e aviltadas por mentiras escabrosas alardeadas na mídia, começam a reagir como vítimas da síndrome de Estocolmo: distribuem condecorações a seus acusadores e buscam lisonjeá-los mediante efusões de anti-americanismo pseudopatriótico (o brigadeiro Ferola e a ESG em geral são ótimos nisso), na esperança de desviar contra um inimigo comum a hostilidade do establishment esquerdista ante o qual generais de inumeráveis estrelas tremem como dozelas assustadas.

(7) Os tribunais são dominados por juízes semi-analfabetos que abertamente desprezam a lei em nome de suas convicções políticas improvisadas, achando que a mais alta missão da Justiça é punir os capitalistas como exploradores do proletariado e libertar os assassinos e narcotraficantes como vítimas da sociedade malvada.

(8) Curiosamente, a maioria da população permanece apegada aos ideais proibidos: moral judaico-cristã, propriedade privada, direito de portar armas etc. Mas já não há ninguém que fale em nome dessa maioria. Mesmo os que compartilham das crenças populares não ousam defendê-las abertamente. O imenso espaço que a decadência de tudo o mais abre para o ingresso de um autêntico partido conservador no cenário nacional não tem quem o preencha. Conservadorismo significa fidelidade, constância, firmeza. Não é coisa para homens de geléia.

(9) Culturalmente, o Brasil está morto e enterrado. Já não tem nada em comum com aquele país dos anos 30-60, que se espelhava numa geração de escritores, pensadores e artistas capazes de ombrear-se aos de qualquer nação do mundo. Na época, “cultura” significava Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Annibal M. Machado, José Guilherme Merquior, Nelson Rodrigues, Heitor Villa-Lobos, Herberto Sales, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva, Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux, Gustavo Corção. Álvaro Lins, Augusto Meyer. Hoje cultura é o sr. Gilberto Gil, um pseudo-intelectual de miolo mole segundo ele próprio admite, não sem certo orgulho. Os discípulos da grande geração – Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro – esgotam-se na indecisão entre a fidelidade à consciência literária, que requer a sinceridade das “impressões autênticas”, como as chamava Saul Bellow, e o desejo de agradar os amigos bem situados na vida. Escritores e poetas autênticos – Alberto da Cunha Melo, César Leal, Ângelo Monteiro — vegetam na província, mais ignorados nos grandes centros do que o seriam nos tempos da Colônia. E o gênio fulgurante de Bruno Tolentino, sumido dos debates públicos, desprezado por suplementeiros literários que não seriam dignos de lhe amarrar os sapatos, vai se conformando com um papel obscuro, esquecido da missão de educador literário do Brasil, que um dia lhe coube por natureza e direito.

(10) Espiritualmente, a alma nacional oscila entre o oportunismo sociopático transformado em Ersatz do senso prático e o ódio político transfigurado em sucedâneo da moralidade. Ensinado nas escolas a papaguear slogans politicamente corretos, obrigado por lei a considerar que o canibalismo, os sacrifícios humanos ou rituais para tornar os inimigos sexualmente impotentes são expressões religiosas tão respeitáveis quanto a fidelidade judaica e a piedade cristã, o povo ainda não abdicou de seus velhos sentimentos morais, mas só os vive na esfera dos sonhos, incapaz de lhes dar a menor expressão concreta na vida real. O Papa João Paulo II acertou na mosca quando disse que “os brasileiros são cristãos na emoção, mas não na fé”. Quando querem expressar sua emoção religiosa em atos e palavras, a única linguagem que lhes resta é a da teologia da libertação ou a daquela velha mistura, tipicamente brasileira, de mística positivista-evolucionista, ocultismo vulgar e pseudomessianismo nacionalisteiro.

O mais impressionante de tudo é que a chamada elite, diante dessa destruição completa das bases civilizacionais do país, se recusa a tomar consciência da gravidade da situação e se apega desesperadamente à ilusão de que tudo se resolverá por si, sem nenhuma ação da parte dela.

O cinismo brutal de um lado, a irresponsabilidade covarde de outro – eis os dois pilares da sociedade brasileira do futuro, na qual só mesmo os cínicos e os irresponsáveis podem esperar sentir-se bem.

Votos de Ano Novo? Ora, façam-me um favor! Quem pode fazer votos de que tudo o que está acontecendo pare de acontecer, de que tudo o que não acontece, mas deveria, comece a acontecer? O Brasil não precisa de um milagre. Precisa da mais extraordinária conjunção de milagres que se poderia imaginar. E milagres, mesmo individualmente, jamais acontecem quando os possíveis interessados estão pedindo exatamente o contrário.

Tarados

Um sintoma miúdo, mas revelador, pode ilustrar o estado presente da alma nacional, tal como descrito acima.

Há um grupo de tarados na comunidade Orkut, da internet , que já escreveram mais de trinta mil páginas contra mim e, para cúmulo, esperam que eu leia tudo — como se eu me achasse tão interessante quanto eles me imaginam. Não criticam propriamente minhas opiniões, pois não chegam a apreendê-las com clareza bastante para isso. Fixam-se em detalhes que, por motivos ignorados, os irritam e desconcertam, entre os quais o meu penteado, não sei se demasiado provocante ou inócuo, a minha idade, que consideram um vício moral revoltante, e o fato insólito de eu ter filhas bonitas sem preencher as condições ideológicas requeridas para isso. Descritos com abundância de minúcias, meus defeitos ali apontados abrangem aparentemente toda a gama das possibilidades humanas, pois apareço ao mesmo tempo como gay e homofóbico, anti-semita e fanático sionista, moralista auto-reprimido e putanheiro assanhado etc. etc. Tendo-me colocado assim no centro da coincidentia oppositorum , os redatores do site chegaram a um ponto em que já nada podiam dizer contra mim que não fosse desmentido por alguma acusação anterior. A solução encontrada para essa dificuldade foi inventar-me de novo, moldando a minha figura segundo os requisitos apropriados para uma esculhambação em regra, sem contradições ou ambigüidades. Criaram então uma página especial do Orkut, usando o meu nome e fotografia e fazendo-se passar por mim. Preencheram a página com uma confissão de nazismo e espalharam convites para que os trouxas a freqüentassem, constatando com seus próprios olhos e até cérebros, caso os tivessem, a minha militância nazista em ação. Ficou assim provado ser eu um completo F. D. P., quod erat demonstrandum . Com base em evidências tão sólidas, tornou-se mesmo imperativo reeditar ali uns velhos e já quases esquecidos apelos à supressão física da minha execrável pessoa, acompanhados de indicações, infelizmente um tanto desatualizadas, dos lugares onde os interessados na minha execução sumária podem mais facilmente me encontrar e me pegar de jeito.

Há mais de mil pessoas envolvidas nesse empreendimento, a maioria delas portadora de diplomas universitários e pertencente, destarte, à parcela mais esclarecida da população, pela qual não se chega sequer a formar uma vaga idéia do que poderiam ser as menos esclarecidas.

Nenhuma dá sinal de perceber algo de criminoso nas ações do grupo, e suspeito que muitas, ou quase todas, se informadas de que estão sujeitas às leis brasileiras como quaisquer outras criaturas residentes no país, se mostrariam sinceramente indignadas ante essa pretensão intolerável.

Bem ao contrário, todas se acreditam movidas pelos mais altos sentimentos humanos, pairando angelicamente acima de mesquinharias penais que só um grosseirão inconveniente como eu seria capaz de querer introduzir numa conversação tão sublime.

Somente umas duas ou três vezes examinei o material ali publicado, comentando-o da maneira que me pareceu esteticamente mais adequada ao ambiente, isto é, mediante qualquer gozação sarcástica e cabeluda que me ocorresse no momento.

Eu queria só que vocês vissem a expressão de susto e revolta com que aquelas almas delicadas reagiram às minhas vulgaridades! Nunca vi tanta dignidade ofendida, tanta santidade aviltada, tantas lágrimas de autopiedade coletiva, tantas efusões de consolação mútua, carinho reparador e juras de vingança acompanhadas de menções pejorativas aos membros da minha família. Uma coisa comovente mesmo.

Se eu quisesse inventar essa situação, não conseguiria. Não sou nenhum Franz Kafka, nenhum Karl Kraus, nenhum Eugène Ionesco para conceber personagens como esses. Só a realidade brasileira do momento, moldada por quatro décadas de “revolução cultural”, pode criá-los. E até a capacidade de descrevê-los me falta, como faltaria talvez até àqueles três autores, cuja imaginação do absurdo tinha limites.

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