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Os mestres do fracasso

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 24 de abril de 2006

George F. Kennan e Hans J. Morgenthau nasceram ambos em 1904, o primeiro em Milwaukee, Wisconsin, o segundo em Coburg, Francônia, Alemanha, emigrando para a América em 1937. Kennan ultrapassou o centenário, vivendo até 2005; Morgenthau morreu em 1980. Alcançando sua maturidade intelectual nos anos 40, eles estavam destinados a criar então as duas teorias que, em essência, determinariam a política exterior americana ao longo da segunda metade do século XX: a doutrina da “contenção” e a do “realismo político” respectivamente. A primeira orientou continuamente as relações dos EUA com os países comunistas, só sendo abandonada, informal e temporariamente, durante o governo Reagan. A segunda, mais abrangente, forneceu os conceitos gerais com que o Departamento de Estado pensa o mundo. O governo Bush afastou-se dela em aspectos parciais, mas continua raciocinando dentro da moldura intelectual que ela criou.

Que aconteceria se essas duas doutrinas estivessem substancialmente erradas? Travada por uma política internacional imprópria, a América, a potência mais rica e poderosa do universo, com recursos naturais inesgotáveis e o povo mais patriota, devotado e criativo que o mundo já viu, desempenharia no espaço global um papel bem inferior àquele a que parecia destinada pelas circunstâncias da sua fundação e pelo sucesso absoluto do seu sistema econômico e político. Seus méritos mais óbvios, em vez de impor-se ao mundo com a autoridade do exemplo, seriam negados em favor do anti-exemplo de regimes tirânicos desumanos e economicamente fracassados. Seus inimigos, incapazes de vencê-la por engenho próprio, viveriam da exploração de suas fraquezas, conquistando no campo do maquiavelismo e do embuste as vantagens que lhes fossem negadas na concorrência econômica, militar, científica. Mesmo derrotados no campo político e militar, alcançariam vitórias ideológicas e publicitárias. Um fluxo contínuo de ajuda prestada a outros países — até mesmo hostis –, a mais formidável efusão de generosidade nacional que a humanidade já conheceu, exercida não raro contra os interesses materiais do próprio povo americano, não despertaria nenhuma simpatia pela América. Ao contrário: fomentaria entre os beneficiados um sentimento de inferioridade que eles buscariam compensar mediante uma noção grotescamente hipertrofiada dos seus próprios “direitos”. Por toda parte a ingratidão se transformaria em símbolo patriótico, a inveja em virtude e o ódio anti-americano em obrigação moral. Nações inteiras que tivessem devido sua sobrevivência à ajuda americana prefeririam antes aproximar-se de vizinhos agressores e exploradores – aos quais se sentiriam iguais e irmanados pela comunidade do mal – do que do benfeitor em cuja presença se sentiriam humilhadas, não só pela diferença de bens materiais mas pela própria inferioridade moral.

Pois bem, não são precisamente essas coisas que estão acontecendo? Não são elas a descrição exata da posição que os EUA ocupam no mundo? Não está portanto na hora de submeter as idéias de Kennan e Morgenthau a uma crítica radical?

A principal fraqueza delas vem da sua origem disciplinar. Não parece haver nada de anormal em que os teóricos de Relações Internacionais sejam, é claro, estudiosos de Relações Internacionais. Mas a abordagem que Kennan e Morgenthau fazem dos problemas da área reflete a tendência dominante do mundo acadêmico europeu e americano na época da sua formação universitária, as primeiras décadas do século XX. A moda então era cada disciplina científica buscar a independência, recortando seu território de acordo com a natureza autônoma, puríssima e incontaminada do seu objeto de estudos. Foi a época da “lógica pura” de Edmund Husserl, da “teoria pura do direito” de Hans Kelsen, da “economia política pura” de Léon Walras, da “política pura” de Carl Schmitt. Essa obsessão de pureza nasceu de um impulso saudável de respeitar os limites dos vários domínios da realidade (as “ontologias regionais” como as chamava Husserl), reagindo contra a mania oitocentista de fazer da ciência de maior sucesso no momento o modelo e padrão de todas as outras, mania que foi rotulada de “imperialismo cientifico” por José Ortega y Gasset (ele próprio um batalhador pela “sociologia pura”, embora sem esse nome explícito).

A reação diferenciadora era bastante sensata, mas gerou uma espécie de patriotada científica, um orgulho autonomista: cada ciência, uma vez constituída, permitia-se ignorar solenemente aquilo que as vizinhas tivessem a dizer sobre o seu campo ciumentamente recortado e guardado. Kelsen, por exemplo, era particularmente feroz na sua recusa de permitir que considerações sociológicas, psicológicas ou morais interviessem no “direito puro” (mais tarde ele teve de ceder). O resultado foi que muitas áreas de intersecção vieram a ser ignoradas por não se enquadrarem em nenhuma disciplina em particular. Somadas, elas formam continentes inteiros da realidade. O que quer que se passasse nessa zona era tido por irrelevante ou inexistente.

Na produção desse fenômeno houve também a interferência de um outro fator. Se os leitores se lembram do que escrevi sobre Kant aqui e em outras publicações (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060330jb.htm e http://www.olavodecarvalho.org/semana/060403dc.html), não terão dificuldade de perceber o quanto o primado kantiano do método pode ter contribuído para que voltar as costas aos fatos se tornasse então uma questão de honra para muitos cientistas.

Kennan e Morgenthau (este último, não por coincidência, discípulo de Kelsen e Schmitt) foram afetados profundamente por esse vício. Formalmente e por definição – portanto na perspectiva da pureza disciplinar –, as relações internacionais são relações entre Estados. Mas quem disse que na trama real da história do mundo os Estados são os agentes principais do processo? Estados formam-se e desfazem-se como nuvens. Guerras e acordos fazem-nos aparecer e desaparecer do mapa. Às vezes eles são meras ficções diplomáticas criadas por arranjos entre outros Estados. Ademais, Estados não agem: quem age, em nome deles, são os governos; e governos mudam de objetivos ao sabor de forças que não são de ordem estatal, freqüentemente nem nacional. Para agir, diziam os escolásticos, é preciso ser. E ser significa, entre outras coisas, ter unidade e conservá-la ao longo do tempo. Por trás dos Estados, há agentes muito mais coesos, duradouros e contínuos, como por exemplo a Igreja Católica, o Islam (por caridade, revisor, não troque para “Islã”, com til, o aportuguesamento mais errado que algum filólogo bêbado já inventou), a Maçonaria, o Partido Comunista ou certas famílias nobres e ricas. Essas entidades têm objetivos permanentes que ultrapassam a duração dos Estados e não raro o horizonte de visão dos agentes estatais. Sua ação se sobrepõe às divisões entre Estados e com freqüência as determina. Ao descrever o jogo de poder no mundo essencialmente como uma trama de relações entre Estados, tanto Kennan quanto Morgenthau acabam confundindo, kantianamente, a definição de uma disciplina científica com a ordem objetiva da realidade. Mal orientada por eles, a América cometeu erro em cima de erro, primeiro no confronto com o comunismo, e agora com o terrorismo internacional.

No célebre “longo telegrama” que enviou da Embaixada Americana em Moscou ao Departamento de Estado em 22 de fevereiro de 1946, George F. Kennan, reconhecendo a natureza imutavelmente agressiva do regime soviético, propunha uma “duradoura, paciente, firme e vigilante contenção das tendências expansivas da Rússia”. A “contenção” (containment) tornou-se a base permanente da estratégia americana na Guerra Fria.

Ora, no fim da II Guerra, a economia da URSS estava em frangalhos. Dependia inteiramente da ajuda americana, que lhe foi dada mais generosamente do que a qualquer outros país aliado. Os EUA, ao contrário, tinham saído do combate enriquecidos e estavam numa expansão industrial formidável. Tinham do seu lado o prestígio universal da democracia e ainda a vantagem da bomba atômica, um pesadelo que aterrorizava Stalin. Estavam em condições de quebrar a espinha do regime soviético, de reduzi-lo à completa impotência e docilidade, até mesmo sem pressão militar, mediante a simples recusa — ou ameaça de recusa — de ajuda econômica. Se há algo que está bem provado em História, é que a economia soviética sempre foi capenga, sempre dependeu do socorro americano e, depois da guerra, passou a depender mais ainda. A URSS só se tornou uma ameaça para os americanos porque eles mesmos a reergueram e a armaram contra si próprios (v. National Suicide. Military Aid to the Soviet Union, de Anthony Sutton, New Rochelle, N. Y., Arlington House, 1973 — um clássico). Além de arranjar assim “o melhor inimigo que o dinheiro podia comprar”, como o chamou Anthony Sutton, eles ainda fomentaram suas ambições mais paranóicas mediante as concessões excessivas feitas a Stalin por Franklin Roosevelt, nos acordos de Yalta, sob a direta influência de um assessor, Harry Dexter White, que mais tarde se descobriu ser um agente soviético.

A proposta de “contenção”, a essa altura, era de uma modéstia e de uma benevolência anormais. Serviu apenas para encorajar os soviéticos, que desencadearam contra ela uma de suas campanhas de propaganda mais virulentas e mentirosas. Em setembro, um telegrama de Nikolai Novikov, embaixador soviético em Washington, encomendado e ditado pelo próprio Stalin para ser usado nessa campanha, “informava” que “a política externa dos EUA reflete as tendências imperialistas do capitalismo monopolista e caracteriza-se por um esforço para obter a supremacia mundial”. Ora, a “contenção” americana não era um slogan publicitário, era a expressão literal do princípio adotado na prática, que reconhecia a legitimidade das fronteiras alcançadas até então pela brutal expansão soviética e se propunha apenas impedir que fossem mais além. A idéia refletia não só a sugestão de Kennan, mas também a influente doutrina do “equilíbrio de poderes” que Hans J. Morgenthau estava ensinando na Universidade de Chicago e que viria a compor o seu livro de 1948, Politics among Nations: The Struggle for Power and Peace. Habilitados a conquistar a hegemonia, os americanos queriam apenas “contenção” e “equilíbrio de poderes”. A maior prova disso foi que retiraram suas tropas da Europa no prazo prometido, enquanto a União Soviética tratava de manter as suas por lá indefinidamente. A modéstia das pretensões americanas e a ambição ilimitada dos soviéticos apareciam rigososamente invertidas no telegrama de Novikov e em toda a campanha de propaganda anti-americana que se seguiu.

Concentrados no esforço de deter a expansão territorial do Estado soviético, os serviços de segurança americanos descuidaram do movimento comunista enquanto tal, que enquanto isso infiltrou algumas centenas de agentes no governo dos EUA, dominou quase que por completo o establishment cultural e artístico, espalhou agentes de influência em toda a grande mídia ocidental e preparou a rebelião interna que, nos anos 60, levaria os EUA à derrota no Vietnã. Bem observou o general Giap, comandante das forças do Vietnã do Norte, que enquanto os americanos tratavam a guerra como assunto estritamente militar, eles, os comunistas, combatiam simultaneamente em todas as frentes: moral, cultural, jornalística etc. E foi justamente nessas frentes que venceram a última batalha, por meio da própria New Left americana, num momento em que o exército vietcongue já estava praticamente destruído após a famosa ofensiva do Tet.

Limitado pela obsessão estatal, o governo americano, durante muito tempo, seguiu a norma de só se preocupar com algum indivíduo ou grupo comunista quando ele tivesse ligação direta com a espionagem soviética. Fora disso, a militância comunista era considerada uma simples expressão de opiniões individuais, sem periculosidade maior. Na New Left dos anos 60 e 70, as ligações da militância com governos comunistas eram tênues demais para chamar a atenção. A explicação disso não era uma autêntica independência do esquerdismo em relação à estratégia soviética e chinesa. Era que o movimento comunista já começava então a evoluir da rígida estrutura hierárquica para a organização informal e flexível em “redes” multinacionais, que nas décadas seguintes viriam a acossar os EUA desde muitos lados simultaneamente com uma campanha de hostilidade global que o governo americano não estava e não está até agora preparado para enfrentar. Só a partir do governo Bush veio o reconhecimento tardio de que os EUA estavam agora lidando com um novo tipo de guerra, impossível de enquadrar nas doutrinas usuais.

Tudo isso poderia ter sido evitado se os EUA não tivessem concentrado sua política exterior no esforço de conter a expansão das fronteiras territoriais soviéticas, em vez de combater o movimento comunista internacional em todas as frentes. Para fazer uma idéia de quanto os EUA foram passados para trás, basta comparar a amplitude do esforço que os soviéticos fizeram para dominar o ambiente intelectual e artístico da Europa e dos EUA desde a década de 20 (v. Frederick C. Barghoorn, The Soviet Cultural Offensive, Princeton Univ. Press,. 1960, e sobretudo Stephen Koch, Double Lives. Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas Against the West, New York, Free Press, 1994), com a modéstia reação americana, vinda só nos anos 50 e praticamente limitada ao Congresso pela Liberdade da Cultura realizado em Berlim Ocidental em 1956. Não deixa de ser interessante observar que, graças à hegemonia cultural comunista dentro do próprio ambiente acadêmico americano, até mesmo essa singela e módica resposta não deixou de ser condenada, dentro dos EUA, como uma ação imperialista moralmente repugnante (v. por exemplo Frances Stonor Saunders, The Cultural Cold War. The CIA and the World of Arts and Letters, New York, The New Press, 1999).

Quanto à doutrina Morgenthau, sua autodenominação de “realismo político” parece quase um lance de humorismo involuntário. Definindo as relações internacionais como um campo constituído essencialmente da concorrência entre interesses nacionais e enfatizando o nacionalismo como força ideológica predominante, o morgenthauísmo serviu para obscurecer os três principais fatores em ação no panorama histórico do último meio século: a unidade estratégica do esquerdismo internacional, sua reorganização em redes informais para o esforço de guerra cultural e sua atuação simultânea numa multiplicidade inabarcável de fronts – precisamente os três fatores que foram acumulando força desde os anos 50 para hoje colocar os EUA sob assédio multilateral permanente.

Morgenthau subestimava a unidade da estratégia comunista ao ponto de propor que os EUA tentassem fazer alianças com países comunistas contra a URSS e a China, um plano do qual, obviamente, os soviéticos e chineses tiraram proveito quase ilimitado

Estes dois parágrafos que ele publicou no New York Times Magazine em 18 de abril de 1965 dão uma idéia de até onde iam o irrealismo e a imprevidência de Morgenthau:

“Estamos sob uma compulsão psicológica de dar continuidade à nossa presença militar no Vietnam do Sul como parte da contenção militar periférica da China. Fomos estimulados nesse curso de ação pela identificação do inimigo como ‘comunista’, vendo em cada partido comunista uma extensão do poder hostil soviético ou chinês. Essa identificação era justificada quinze ou vinte anos atrás, quando o comunismo ainda tinha um caráter monolítico, Aqui, como em outros campos, nossos modos de pensamento e ação foram tornados obsoletos pelos novos desenvolvimentos. É irônico que a simples justaposição de ‘comunismo’ e ‘mundo livre’ tenha sido erigida pela cruzada moralista de John Foster Dulles em princípio guiador da política externa americana numa época em que o comunismo nacional da Iugoslávia, o neutralismo do Terceiro Mundo e incipiente ruptura entre a URSS e a China estavam tornando essa justaposição inválida.”

Ora, hoje sabemos que: Primeiro, o movimento “neutralista” do Terceiro Mundo foi todo ele articulado pela KGB, com o intuito bastante razoável de criar frentes anti-americanas que não pudessem ser facilmente identificadas como comunistas (v. Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin, The World Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World, New York, Basic Books, 2005). Segundo, que a pretensa independência do comunismo iugoslavo fez dele um instrumento maravilhosamente eficaz que os soviéticos usaram para criar esse engodo “neutralista”. Terceiro, que o chamado conflito sino-soviético nunca foi para valer, foi apenas uma encenação montada para camuflar a unidade global da estratégia comunista e levar os americanos a pensar exatamente o que Morgenthau pensou. (Sobre esses dois últimos pontos, v. Anatoliy Golitsyn, New Lies for Old. The Communist Strategy of Deception and Disinformation, Atlanta, GA, Clarion House, 1990.)

A ineficiência do morgenthauismo tem, no entanto, raízes mais profundas e obscuras do que o mero irrealismo. Ela nasce de uma contradição interna insanável. De um lado, toda a descrição que Morgenthau oferece do mundo político é baseada nas idéias de Estado-Nação, interesse nacional e nacionalismo. Por outro lado, ele acreditava na viabilidade de um governo mundial e trabalhava por essa idéia. Foi justamente isso que o tornou tão querido nos círculos globalistas do CFR, Council on Foreign Relations. Esses círculos eram e são dominados por grupos de bilionários metacapitalistas, cujos planos, globais e de escala mais civilizacional do que político-militar, vão muito além do horizonte de qualquer Nação-Estado, para não dizer de qualquer governo. Vivendo e pensando dentro dessa atmosfera, Morgenthau tinha ali mesmo a prova inequívoca de que as Nações-Estados não são o sujeito agente principal da História, mas com freqüência o objeto inerme nas mãos de agentes mais unitários e coerentes. Escamoteando a atuação desses agentes, dos quais ele próprio era um colaborador intelectual de grande valia, o morgenthauismo é um caso extremo de “paralaxe cognitiva”, no qual as próprias condições existenciais nas quais a teoria brotou e se desenvolveu trazem o desmentido completo do conteúdo da teoria.

O velho John Foster Dulles não estava errado ao desejar que a luta dos americanos não fosse contra Estados em particular, mas contra o movimento comunista enquanto tal. Apenas, limitado pela perspectiva de Kennan, ele ainda enxergava essa luta em termos de contenção e não de guerra cultural global, numa época em que os comunistas já estavam empenhados nessa guerra fazia muito tempo. Se errou, foi por modéstia e não por pretensão excessiva da sua “cruzada moralista” – hoje mais necessária do que nunca.

O efeito conjugado das teorias de Kenan e Morgenthau sobre a política exterior americana pode ser medido pela formidável ampliação do anti-americanismo depois da queda da URSS e pelo presente estado de cerco moral em que os EUA se encontram, incapazes de defender até mesmo os direitos mais elementares da sua soberania sem suscitar imediatamente uma onda mundial de revolta contra isso.

Chuteiras imortais

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 20 de abril de 2006

Acusado pelo sr. Diogo Mainardi de dar uma força aos parentes para a conquista de altos cargos na burocracia federal, o jornalista Franklin Martins, seqüestrador aposentado, protegido de Fidel Castro e queridinho do establishment petista, saiu-se com uma aposta: “Se qualquer um dos 81 senadores ou senadoras vier a público afirmar que o procurei pedindo apoio para o meu irmão, pendurarei as chuteiras e irei fazer outra coisa na vida.” Caso contrário, exige o indignado desafiante, o perdedor Mainardi é que deverá abdicar de sua coluna em “Veja” e reduzir-se a um silêncio contrito.

É uma maravilha, não é mesmo? Senadores inocentes não hão de confessar o que não fizeram; e os culpados, se existem, não vão querer jogar fora a própria reputação só pelo prazer de arruinar junto a de um jornalista e exaltar a de outro. Pior: quem ama o sr. Martins ao ponto de arriscar-se a lhe prestar um favor ilícito não pode estar também apaixonado pelo seu inimigo Mainardi ao ponto de cometer suicídio político por ele. A probabilidade de que alguma confissão apareça, quer venha de culpados ou inocentes, é portanto de exatamente zero por cento. O sr. Martins não é bobo o suficiente para não perceber isso. Não sei se ele assediou senadores com pedidos de empregos para o irmão, a esposa, a sogra ou o tetravô. Mas sei que, no esforço de fugir a essa acusação, ele se revelou é uma boa bisca. Apostando as chuteiras num teste premeditadamente inócuo, ele está seguro de poder calçá-las no dia seguinte e ainda gabar-se de ter feito o adversário de trouxa. O desafio que ele lançou ao sr. Marnardi não é um desafio, não é sequer um blefe: é uma simulação de blefe, concebida para enganar pessoas afetadas de déficit crônico de atenção. O cálculo psicológico por trás desse golpe de teatro é tão malicioso, tão perverso, que ele depõe contra a idoneidade do sr. Martins mais do que poderiam fazê-lo mil colunas de mil Diogos Mainardis.

No entanto, não é impossível que ele tenha concebido o engodo sem intuito conscientemente maligno. Talvez ache até que foi honesto. Cabeça de esquerdista é assim: uma vez que você aboliu todos os princípios morais consagrados pela civilização, substituindo a clareza implacável das suas deduções por uma maçaroca obscura de slogans politicamente corretos, todos os arranjos casuísticos são possíveis: você está pronto para se tornar um príncipe da embromação e ainda acreditar que desonestos são os outros. Quando um sujeito está intelectualmente persuadido de que o bem e o mal são apenas construções ideológicas mas ao mesmo tempo insiste em cultivar o sentimento reconfortante de que está do lado do bem absoluto, não há mais limites para o exercício do auto-engano, que culmina quando o mentiroso passa a acreditar nas próprias mentiras ao ponto de emocionar-se com elas. A essência da moral esquerdista é a auto-persuasão histérica.

O caso do sr. Martins, em si mesmo, não significa nada, e sua desavença com o sr. Mainardi é tão decisiva para o futuro da humanidade quanto uma trombada de velocípedes num playground. O que torna o sr. Martins interessante é a tipicidade da sua forma mentis, cujos similares, hoje, superlotam as universidades, as redações, a burocracia filantrópica e a rede internacional de ONGs ativistas. Por enquanto, a lógica moral antiga, negada em palavras, permanece vigente no fundo, como um referencial semiconsciente a que até seus detratores mais ferozes voltam a apelar quando precisam. Em uma ou duas gerações, ela terá desaparecido por completo da memória geral: o casuísmo politicamente correto usurpará o prestígio do Decálogo, da ética aristotélica, do Direito Romano e do Código de Hamurabi. A mentira indignada, apoiada na vociferação da militância organizada, será a única autoridade moral restante. Então será preciso escolher entre ela e o caos integral. Nesse dia, as chuteiras de Franklin Martins se tornarão monumentos à honestidade.

Loucuras americanas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 20 de abril de 2006

A ONG  “Parents and Friends of Ex-gays and Gays” foi expulsa da convenção annual da Associação de Conselheiros Educacionais da Virginia por distribuir dois folhetos considerados inaceitáveis naquele ambiente familiar: num deles, pessoas que tinham abandonado as práticas homossexuais informavam que outros homossexuais podiam fazer o mesmo; no outro, uma transexual arrependida advertia contra os riscos das cirurgias de mudanças de sexo. Enquanto isso, entidades dedicadas a ensinar as práticas homossexuais às crianças de escola participavam livremente da convenção, convidadas pela própria Associação organizadora do evento.

Mas isso não é nada. David Parker, pai de um garoto de seis anos, foi preso por protestar contra as aulas de homossexualismo que seu filho era obrigado a freqüentar numa escola pública de Lexington, Massachusetts. Passou a noite na cadeia e, levado à corte no dia seguinte, recebeu uma reprimenda do juiz, por desacato à autoridade, ao reclamar que a polícia não lhe havia permitido consultar seu advogado. O governador do Estado, Mitt Romney, fez um pronunciamento em favor de Parker, mas nos EUA o executivo não tem o mínimo poder sobre os tribunais. O processo continua rolando.

No mesmo Estado, Brian Camenker e Scott Whiteman, diretores da “Parents Rights Coalition”, gravaram e denunciaram as sessões de uma conferência, promovida pelo Departamento Estadual de Educação e a Tutts University, na qual estudantes de doze anos, trazidos em ônibus de várias escolas públicas, estavam recebendo instrução quanto à delicada prática do “fist fucking” — penetração anal com a mão fechada, até o antebraço. Denunciado nos programas de TV de Alan Keyes, Bill Bennett e Sean Hannity, o caso provocou revolta entre as famílias americanas, mas adivinhem quem está sendo processado? A srta. Margot Abels, militante da “Gay, Lesbian, Straight Education Network”, responsável pelas eruditas explicações dadas às crianças? Que nada! Os acusados são Camenker e Whiteman, por “atentado contra a liberdade de expressão” da srta. Abels. 

 Ao longo dos últimos trinta anos, os movimentos esquerdistas vieram “ocupando espaços” na Justiça americana. Juízes que se arvoram em legisladores, usando interpretações forçadas do texto legal para criar situações revolucionárias, são hoje uma praga nos EUA. Ninguém sabe o que fazer com eles. Há movimentos organizados tentando reverter o estado de coisas, mas substituir os magistrados levaria décadas, e até lá o mal que eles podem fazer é incalculável. Transformar uma geração inteira de meninos americanos em joguetes nas mãos de adultos pervertidos é o mínimo que se pode prever. O beautiful people de Hollywood tem contribuído ativamente para esse resultado, glamurizando tipos como Alfred Kinsey, o charlatão (e pedófilo nas horas vagas) que enganou metade do país entrevistando criminosos sexuais sobre suas práticas eróticas e depois alardeando as respostas como se viessem da população média.

O Brasil imita, de longe, esses trejeitos simiescos de uma sociedade que por tolerância excessiva para com seus inimigos acabou por se tornar inimiga de si própria. Imita de longe, mas, por isso mesmo, com devoção mais crédula e integral. O que mais impressiona, na comparação entre os EUA e o nosso país, é a pujança da reação conservadora à decadência planificada, lá, e aqui a subserviência geral, o silêncio cúmplice, mesmo das autoridades religiosas, empenhadas em salvar antes o PT do que as almas.

Intelectualmente, os conservadores americanos já podem se considerar vitoriosos, tal o estado de atrofia do pensamento esquerdista reduzido à macaqueação de seus próprios slogans dos anos 60. Socialmente, o seu poder de organização e de ataque, sobretudo entre os religiosos, cresce dia a dia. É politicamente que eles não estão muito bem, pois o Partido Republicano e o governo Bush não refletem adequadamente suas expectativas. A ascensão do senador George Allen, do governador Mitt Romney e sobretudo o crescimento de uma nova geração de republicanos negros e chicanos – um fenômeno que a mídia chique oculta por todos os meios possíveis – parecem anunciar grandes mudanças num partido que, se quiser continuar em cima do muro, vai cair.     

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