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Enquanto a Zé-Lite dorme

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de dezembro

Se tenho insistido no tema do desconstrucionismo, é para mostrar que toda tentativa de discussão democrática com intelectuais ou líderes esquerdistas, hoje em dia, é tempo perdido. Eles criaram instrumentos verbais altamente sofisticados para escapar de toda cobrança racional e impor seus desejos e caprichos sem ter de dar satisfações senão à sua vontade de poder. Mais ainda: inventaram um sistema de pretextos infalíveis para sentir que, ao fazer isso, são as melhores pessoas do universo, contra as quais só monstros de egoísmo e crueldade poderiam objetar alguma coisa. Pior: transmitiram essas atitudes e sentimentos a duas gerações de estudantes universitários, que hoje ocupam os espaços fundamentais na educação, na mídia, na administração pública, na justiça e, é claro, numa infinidade de ONGs e “movimentos sociais”.

Hegel dizia que aquele que nas discussões públicas se abstém de razões e apela à autoridade secreta da sua “voz interior” é um inimigo da espécie humana. Extinta a possibilidade de aferição objetiva, suprimidos os instrumentos de prova, reduzido o debate a um confronto de vontades, a única autoridade que resta é a pura habilidade de impressionar, de assombrar, de seduzir, de hipnotizar. E para isso vale tudo: desde o sex appeal até a intimidação autoritária, passando pela ostentação de títulos e cargos, a forma mais tosca e besta do argumento de autoridade, característica do bacharelismo provinciano que volta à moda meio século depois de parecer definitivamente superado. Uma vez conquistada a adesão estudantil pelo fascínio vulgar de charlatães bem-falantes, a autoridade se transfere a gerações inteiras de jovens enragés que saem da faculdade imbuídos do dever de “transformar o mundo” por meio da mentira e do engodo.

Por toda parte, esses “agentes de transformação social” se empenham em fazer com que as engrenagens da sociedade funcionem ao contrário das suas finalidades nominais, criando o caos em lugar da ordem, a revolta e o ódio em vez da paz, a malícia em vez da confiança. Em suma, caro leitor, você está rodeado de ativistas cínicos, capazes de mentir e trapacear ilimitadamente no interesse do seu grupo político. Se você abre um jornal, não pode ter a certeza de ler fatos em vez de balelas interesseiras. Se tem uma demanda na justiça, não pode estar seguro de que não cairá nas mãos de um comissário do povo, decidido a julgar não segundo as razões do processo, mas segundo a classe social das partes. Se envia a esposa nervosa a um consultório de psicoterapia, não sabe se ela será tratada dos seus males ou envenenada de ódio ao marido. Se envia os filhos à escola, sabe que eles voltarão de lá tatuados e viciados, admirando bandidos e abominando as leis, falando alto, dando ordens ao pai e à mãe, indignados com a proibição das drogas, cheios de revolta sacrossanta contra a instituição familiar que os sustenta e protege.

E ainda há quem, no meio disso, acredite poder confiar nas leis e instituições, no funcionamento normal da sociedade, na sanidade do processo democrático.

A classe empresarial, os políticos pragmáticos e os analistas econômicos têm uma dificuldade quase intransponível de compreender o alcance político de modas culturais que, de início, parecem limitadas a um círculo de professores excêntricos e estudantes amalucados. Quase um século depois de Lukács, Gramsci, a Escola de Frankfurt e o próprio Stálin haverem descoberto que a cultura, e não a economia, é a força que move o processo revolucionário, esses observadores vesgos ainda acreditam que existe um abismo entre o mundo “prático” e a esfera dos interesses “abstratos”, “estratosféricos”, da intelectualidade acadêmica e artística. Estratosféricos são eles, habitantes do mundo da Lua. Quando o general Golbery do Couto e Silva inventou a teoria da “panela de pressão”, pontificando que a atividade repressiva do Estado deveria limitar-se à oposição armada, deixando as universidades e as instituições de cultura livres como válvula para o escoamento das pressões subversivas, mal sabia ele que, àquela altura, os esquerdistas mais avisados já haviam abandonado o projeto guerrilheiro e depositado todas as suas esperanças na “revolução cultural” gramsciana: a única arma de que precisavam era, precisamente, uma válvula. Ao optar implicitamente por não resistir ao comunismo em geral, mas só ao comunismo “violento”, o governo lhes forneceu essa arma. Um pouco de estudo teria bastado para mostrar ao sapientíssimo general que a “via pacífica” para o comunismo era nada mais que o adiamento da violência crua para depois da tomada do poder por meios anestésicos. Mas, no calor da luta contra as guerrilhas, a imagem de uma futura esquerda “pacífica” e “legalista” pareceu à elite militar uma alternativa roseamente desejável. Em poucos anos, essa esquerda, nascida das conversações gramscianas na USP, estava montada e em pleno funcionamento. Não houve, na “direita”, quem não celebrasse o seu advento como um formidável progresso da democracia. O general Golbery foi o pai da ascensão petista, restando apenas saber se o foi por pura presunção e ignorância ou se houve da sua parte um pouco de cegueira voluntária, alimentada por ambições nasseristas de absorver a esquerda continental num esquema militar nacionalista e anti-americano. Hoje sabemos que o esquema militar é que foi absorvido, subjugado e posto a serviço dos planos do Foro de São Paulo. Isso era perfeitamente previsível, mas não a quem alimentasse, como o general, a ilusão de poder manipular e “civilizar” o movimento comunista. A “queda” da URSS e a embriaguez triunfal dos liberais no início dos anos 90 levaram essa ilusão às últimas conseqüências, fazendo com que as “elites” (ou a Lite) celebrassem o sucesso do PT como uma promessa de melhores dias para a democracia capitalista. Frases como “o comunismo acabou” e “Lula mudou” adquiriram então o prestígio de dogmas inabaláveis, e quem sugerisse que as coisas não eram bem assim se tornava objeto de chacota da parte de banqueiros, empresários, políticos “de direita”, capitães da mídia e altos oficiais militares – a pura nata da Lite.

Hoje, quando esses senhores, de rabo entre as pernas, já entrevêem no colaboracionismo servil e trêmulo a sua única chance de sobrevivência, sinto-me até um tanto constrangido de lhes explicar, de novo, que os estrategistas da revolução comunista, por mais que lhes pareçam meros intelectuais avoados, de paletó sebento e barba por fazer, são um pouco mais espertos que eles. Um “homem prático” vive de olho nas cotações da bolsa e ri da sugestão de que algo tão abstrato e academicamente rebuscado como uma teoria literária possa ter alguma periculosidade política. O intelectual comunista aproveita-se dessa falsa sensação de segurança para fazer da teoria literária um instrumento de ação capaz de virar o mundo do avesso.

Vou contar, em linhas gerais, como isso aconteceu.

Na década de 30, Stálin estava persuadido de que a única função da arte e da literatura era a propaganda revolucionária. Parida às pressas pela Academia Soviética, a teoria estética do “realismo socialista” impregnou massas de escritores e artistas em todo o mundo comunista. Só não chegou a tornar-se um dogma universal porque, no Ocidente, Stálin reservava às celebridades das letras e artes uma função mais sutil. Queria usá-las como instrumentos de camuflagem: deviam abster-se da filiação explícita ao Partido Comunista (e portanto também às suas opções estéticas) e, conservando uma fachada de neutralidade, colocar o seu prestígio a serviço de causas específicas de interesse do Partido nos momentos decisivos. Isso deu aos escritores esquerdistas da Europa e das Américas a margem de liberdade que lhes permitiu escapar do realismo socialista e continuar fazendo literatura em sentido estrito. Por toda parte, poetas, romancistas e críticos – a começar pelo príncipe da crítica marxista, Georg Lukács em pessoa e seu fiel escudeiro Lucien Goldmann – desprezavam a estética oficial soviética e faziam a apologia dos cânones literários que construíram a grandeza de Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac e Dostoiévsky. Lukács escreveu páginas notáveis em defesa do “grande realismo burguês”, alegando que a representação fiel da realidade histórica era uma força revolucionária em si, sem necessidade de concessões à propaganda. Até em congressos do Partido a hostilidade ao realismo socialista acabava se mostrando, às vezes de maneira explosiva. Referindo-se ao chefe da escola, o nosso Graciliano Ramos exclamava: “Esse Jdanov é um cavalo.” Assim a literatura foi salva do embrutecimento ideológico. Os anos 30-50 acabaram sendo uma época de criatividade literária incomum. No Brasil, então, nem se fala. Nunca tivemos tantos escritores bons e ótimos ao mesmo tempo.

Mas foi uma salvação provisória. Aqui e ali, discretamente, intelectuais iluminados se davam conta de que a preservação dos cânones do realismo e, de modo geral, a concepção da literatura como conhecimento, eram incompatíveis com a meta escolhida pelo próprio Lukács: a destruição da civilização ocidental. Puseram-se então a trabalhar na idéia de que a literatura não podia conhecer a realidade, já que – segundo entendiam — a própria realidade era uma invenção literária. Para dar a essa idéia um arremedo de consistência, apelaram a um formidável arsenal de recursos extraídos da língüística, da antropologia, da lógica formal, da “teoria crítica” frankfurtiana e das filosofias de Nietzsche e Heidegger. Em menos de uma década a proposta havia evoluído para a formulação radical do desconstrucionismo: não existe realidade nem conhecimento, nenhum discurso tem significado, o significado é livremente inventado por “comunidades interpretativas” que aí projetam como bem entendem seus desejos e interesses, portanto tudo o que há para fazer é reunir a comunidade e ensinar-lhe os meios de usurpar o sentido dos textos em benefício próprio.

De súbito, a doutrina de Stálin-Jdanov era restaurada em todo o esplendor da sua brutalidade, mas agora resgatada da sua pobreza teórica originária e paramentada com todos os adornos da sofisticação acadêmica. O desprezo pela verdade, a legitimação da mentira politicamente útil, o cinismo das interpretações forçadas, enfim a prostituição total das atividades intelectuais superiores aos interesses de grupos de pressão tornaram-se não só legítimos e recomendáveis, mas intelectualmente elegantes e moralmente obrigatórios. Na mesma onda, as distinções entre o verdadeiro e o falso, entre cultura e incultura, entre o esteticamente superior e inferior, foram condenadas como instrumentos de opressão e substituídas pelo culto de qualquer bobagem politicamente oportuna que se apresentasse. Toni Morrison foi igualada a Shakespeare, as novelas de Gilberto Braga celebradas como portadoras da “universalidade de um Balzac” por ser bem aceitas em todos os mercados. Considerar Bach superior a Gilberto Gil tornou-se algo assim como um crime de racismo.

Não é preciso dizer que o primeiro resultado foi a pura e simples desaparição da grande literatura. A segunda metade do século XX não gerou nada que se comparasse nem de longe a um Thomas Mann, a um Proust, a um Jacob Wassermann, a um Hermann Broch, a um Robert Musil, a um Antonio Machado, a um Bernanos, a um Mauriac. Nas nações do Terceiro Mundo, as sementes da cultura superior em gestação foram impiedosamente arrancadas. O país que cinqüenta anos atrás tinha Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Annibal M. Machado, Marques Rebelo, José Lins do Rego, agora lê Luís Fernando Veríssimo e acha o máximo.

Se os efeitos se limitassem à esfera das letras, já seriam suficientemente perversos. À retração da criatividade literária corresponde, pari passu, a degradação da linguagem pública, a progressiva incapacidade de expressar a experiência real e, conseqüentemente, a fixação dos debates em estereótipos alienados, prenunciando a ascensão da loucura geral como alternativa política.

Mas, como não poderia deixar de ser, os procedimentos interpretativos da escola desconstrucionista e similares logo foram estendidos para as ciências humanas em geral, afetando todas as esferas do debate público. Aí os efeitos foram muito além do mero sucesso propagandístico. Ampliaram-se até à destruição de todo princípio de ordem e racionalidade na vida social. Avaliar, mesmo sumariamente, a extensão do dano, ocupará muitos artigos nas próximas semanas. Vou aqui dar um único exemplo, que depois explicarei melhor.

Um dos setores onde a influência desconstrucionista penetrou mais fundo é o Direito. Aí se evidencia como uma teoria literária pode ter conseqüências devastadoras sobre toda a ordem social. Juízes, promotores e advogados são hoje formados sob a crença dominante de que as leis, como qualquer outro texto, não têm nenhum significado originário objetivamente válido. Toda significação que elas possam ter é mera projeção de fora, vinda dos setores politicamente interessados. Só o que resta portanto é organizar uma “comunidade interpretativa” e impor a sua leitura dos textos legais por meio da gritaria, da chantagem, da intimidação. De um só golpe, a Justiça inteira se transforma em instrumento de subversão revolucionária. Para virar de cabeça para baixo a ordem pública, não é preciso mudar as leis: basta inverter-lhes o sentido.

Nos EUA, o alucinógeno desconstrucionista chegou até à Suprema Corte, transformando-a numa frente de combate contra a religião, os valores americanos tradicionais e a própria Constituição. Amparado em teóricos acadêmicos da reputação de Ronald Dworkin e Stanley Fish, o juiz William Brennan, ex-presidente da Suprema Corte, proclama abertamente que tentar ater-se ao significado originário da Constituição é “falsa humildade”: o verdadeiro sentido do texto constitucional tem de ser livremente inventado conforme as pressões dos grupos abortistas, feministas, gays etc. É isso o que o ex-vice-presidente Albert Gore entende por “Constituição viva”. A profundidade da subversão judicial ocorrida nos EUA já não pode ser medida. Um pequeno indício é que, em plena guerra contra o terrorismo islâmico, crianças de escola pública, em vários Estados, são obrigadas a ouvir horas e horas de louvações à religião muçulmana, sendo ao mesmo tempo proibidas de expressar em voz alta sua fé cristã, sob pena de expulsão ou de medidas policiais mais graves. É a guerra psicologia ao contrário, movida não contra o inimigo mas contra o próprio país, sob a proteção da Suprema Corte.

Jornalismo de ficção

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 30 de novembro de 2006

Sugestão ao leitor: abra a página www.vcrisis.com, ou então http://notalatina.blogspot.com/2006_11_26_notalatina_archive.html#116477160950154777, compare as fotos da manifestação pró-Chávez com as da passeata-monstro pró-Rosales e pergunte a si mesmo por que a mídia brasileira tem tanto horror aos fatos e tanta fé em institutos de pesquisa subsidiados pela estatal chavista PDVSA.

Nas últimas eleições legislativas, 75 por cento dos eleitores venezuelanos abstiveram-se de ir às urnas, em protesto contra as máquinas de votar controladas pelo governo. São esses que agora saem às ruas para mostrar que preferem Rosales. A diferença entre as duas passeatas é de aproximadamente um milhão de manifestantes a mais na dos antichavistas. Sem uniforme, sem lanche grátis, sem transporte fornecido pelo governo.

Em desespero, Chavez apelou ao mais patético dos recursos: acusou a oposição de tramar o assassinato do seu próprio líder no dia das eleições. É lindo. Os venezuelanos agüentam a ditadura por anos a fio e, quando aparece um candidato capaz de desafiá-la, não encontram nada melhor para fazer com ele do que estourar-lhe os miolos. Só mesmo o Chávez para ter uma idéia dessas, medindo o QI dos adversários pela sua própria estupidez, a moral deles pela sua própria sem-vergonhice. Está mais do que na cara que, se alguém quer matar Rosales, é o mesmo Chávez. Lançando preventivamente a culpa nos partidários da vítima, ele cola na própria testa o rótulo de suspeito número um.

Mas já não me espanta que a mídia brasileira passe longe de tantas obviedades.    Anos atrás, quando demostrei a absoluta impossibilidade física do crime que uma espetaculosa reportagem de Caco Barcelos atribuía às Forças Armadas (veja http://www.olavodecarvalho.org/semana/nditadores.htm), fiquei chocado ao ver a denúncia ostensivamente falsa ser laureada não com um, mas com dois prêmios jornalísticos. Eu ainda não havia compreendido que, no novo jornalismo que se praticava no Brasil desde os anos 80, o desprezo pela diferença entre verdadeiro e falso não era um desvio da norma profissional: era a própria norma.  Só comecei a suspeitar disso quando, por força das pesquisas para o meu livro A Mente Revolucionária, me vi obrigado a prestar muito mais atenção do que desejaria às obras de Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Gianni Vattimo e outros autores “pós-modernos”. Então me dei conta, retroativamente, de que as idéias desses senhores haviam dominado tão amplamente o meio universitário brasileiro – principalmente as escolas de jornalismo e letras –, que a simples tentação de contrariá-las já era reprimida in limine por meio do escárnio, das rotulações humilhantes e das ameaças explícitas. Mas não é só por meio da pressão autoritária que os professores ativistas sufocam na massa estudantil a capacidade de pensar. O conteúdo mesmo da mensagem pós-moderna é repressivo e paralisante. Negando a verdade, o conhecimento, o significado, a razão e por fim a própria existência do sujeito cognoscente, o pós-modernismo cria um vácuo mental no qual a única referência, o único valor, a única autoridade que resta é ele próprio: a vontade de poder do grupo de intelectuais iluminados. A ela os jovens se rendem com devoção servil e cega, jurando, paradoxalmente, que com isso se elevam ao mais alto cume da rebeldia, da independência e do “pensamento crítico”.

Faça o leitor uma experiência: tente apelar ao conceito de “verdade” numa discussão com estudantes de comunicações, de letras, de ciências sociais, de filosofia. Será objeto de chacota. Em seguida, raciocine: que confiabilidade podem ter jornais, revistas e programas de TV escritos por gente que despreza a idéia mesma de veracidade objetiva e, seguindo os gurus pós-modernos, só acredita na “vontade de poder”, na eficácia da ficção ideologicamente útil?

É claro que ainda existem, nas redações, profissionais imunes a essa influência corruptora. Mas seu número diminui dia a dia.

O sucesso do fracasso

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de novembro

Todos os “movimentos sociais” atuantes no Brasil, sem exceção, bem como as entidades que os representam e as leis baseadas nas suas reivindicações, nasceram da seguinte maneira:

1. Com dez, vinte, trinta anos de antecedência, os intelectuais esquerdistas de maior peso discutem e elaboram os conceitos e a linguagem das novas idéias destinadas a revigorar e ampliar o movimento revolucionário mundial.

2. Em seguida essas propostas passam à alçada das grandes fundações bilionárias e organismos internacionais, onde o segundo escalão intelectual – técnicos, planejadores sociais, publicitários, ativistas — lhes dá o formato operacional para transmutá-las em propostas concretas.

3. Essas propostas são então espalhadas pelo mundo por meio de uma infinidade de livros, artigos, conferências, filmes, espetáculos de teatro, sempre subsidiados pelas mesmas fontes, mas apresentados como iniciativas independentes, de modo a dar a impressão de que a mudança planejada provém de uma fatalidade histórica impessoal e não de uma ação organizada. Ao mesmo tempo, desencadeia-se um conjunto de operações preventivas destinadas a neutralizar, reprimir e, se necessário, criminalizar toda resistência.

4. Só então as propostas chegam aos países do Terceiro Mundo, por meio de ONGs e agentes pagos que as inoculam primeiro nos círculos de intelectuais mais ativos, que as retransmitem aos estudantes e à mídia, não raro apresentando-as como suas criações pessoais e originalíssimas, de modo que a multidão dos aderentes não tenha a mais mínima idéia da existência de um empreendimento internacional organizado por trás dos efeitos políticos que se seguem inexoravelmente.

5. A última etapa é a produção desses efeitos, por meio dos agentes políticos – militância organizada, agentes de influência, legisladores – que transformam as propostas em leis e instituições.

Na última etapa, as origens intelectuais das propostas, bem como sua base internacional de sustentação financeira e organizacional, já se tornaram praticamente invisíveis para a população em geral, de modo que toda a discussão a respeito, destinada a fazer com que a adoção das novas medidas pareça surgir do fluxo normal e espontâneo da vida democrática, se atenha às definições nominais e aos aspectos mais periféricos das questões respectivas, sem possibilidade de examinar seja o esquema de poder que articulou a seu belprazer a situação de debate, seja as implicações históricas de longo prazo que advirão das transformações pretendidas. Quando essas conseqüências se revelam catastróficas, a culpa pelo erro que as produziu já está tão disseminada pela sociedade que toda tentativa de rastrear e responsabilizar os autores das propostas iniciais, caso ainda ocorra a alguém a tentação de empreendê-la, começa a parecer rebuscada e artificiosa como uma “teoria da conspiração”.

A primeira condição para a existência de um movimento conservador ou liberal é a formação de equipes de estudiosos qualificados para fazer esse rastreamento e expor aos olhos da multidão o processo inteiro da “transformação social”, para que ela perca seu prestígio místico de fatalidade histórica ou vontade divina e possa ser discutida às claras como qualquer outro projeto de poder.

Infelizmente, as forças econômico-sociais cuja sobrevivência a longo prazo depende do sucesso de um movimento liberal-conservador – principalmente a classe empresarial que é a concorrente número um dos planejadores e burocratas iluminados – têm um horizonte de visão histórica muito restrito e dificilmente compreendem a necessidade de uma estratégia de longo prazo. Concentram-se na defesa dos seus interesses imediatos reais ou imaginários e, sem perceber, acabam colaborando com os planos mais vastos e gerais da esquerda, seja por meio de concessões conscientes que lhes parecem muito espertas na hora, seja por meio de resistências pontuais arbitrárias e inconexas que sempre podem ser absorvidas e neutralizadas no quadro maior da estratégia esquerdista, seja por meio da adaptação passiva, lenta e quase imperceptível à linguagem e à cosmovisão de seus inimigos.

O domínio do tempo histórico das transformações político-sociais tornou-se monopólio da elite esquerdista internacional. O mero fracasso econômico das propostas socialistas não diminui em nada o poder hipnótico que exercem sobre a multidão nem o controle hegemônico da esquerda sobre o processo histórico, porque esse fracasso é apenas um fato, e os fatos não se transformam por si em elementos de persuasão quando não integrados como símbolos num universo imaginário, isto é, quando não trabalhados dentro de um plano cultural abrangente e de longo prazo, precisamente o que falta por completo às forças liberal-conservadoras.

O próprio preconceito economicista que se apossou dessas forças, induzindo-as a esperar que a fraqueza econômica do socialismo se transmute automaticamente em fracasso político-cultural do movimento esquerdista, já mostra o quanto o imaginário liberal-conservador foi infectado e moldado pela cosmovisão esquerdista, hoje “onipresente e invisível” como a desejava Antonio Gramsci.

Desse preconceito, em simbiose com o imediatismo político, nasce o profundo desinteresse que os liberais e conservadores têm pelo debate interno de idéias na esquerda. Como o conteúdo desse debate lhes parece falso e alucinatório e por isso supremamente tedioso, não percebem que por trás dessa falsidade e alucinação há um método e uma estratégia. Nem muito menos que a falsidade louca de uma idéia jamais foi obstáculo ao seu sucesso político. Enquanto os liberais e conservadores discutem economia, criando esquemas saudáveis e racionais que jamais serão levados à prática, os esquerdistas, a salvo de qualquer fiscalização crítica da parte de seus adversários, inventam as mentiras e alucinações com que dominarão a consciência das multidões e conduzirão o processo histórico para onde bem entendam, com a facilidade com que um menino-pastor puxa um búfalo de uma tonelada pela argola do nariz.

Vou dar aqui um único exemplo de doutrina alucinatória que jamais vi despertar o interesse dos liberais e conservadores brasileiros e que por isso mesmo consegue praticamente dominar o ambiente universitário, cultural e midiático nacional, influenciando o curso dos acontecimentos e impondo derrotas humilhantes à racionalidade econômica liberal-conservadora.

Refiro-me à escola “desconstrucionista” de Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Paul de Man, Gianni Vattimo e outros, que torna inviável toda idéia de veracidade objetiva e instaura em seu lugar o primado da ficção militante.

Como em artigos vindouros pretendo abordar aqui vários fenômenos da política brasileira que jamais teriam podido produzir-se exceto num ambiente intelectual dominado por essa escola, a utilidade essencial de conhecê-la se tornará mais evidente nas próximas semanas.

Usei o termo “escola”, mas os próprios desconstrucionistas o rejeitam. Também não aceitam que o desconstrucionismo seja definido como uma filosofia, um método de interpretação, um projeto acadêmico ou qualquer outra coisa. Não aceitam definição nenhuma, o que já coloca o recém-chegado na obrigação de escolher entre embarcar às cegas na aventura sem nome ou, ficando de fora, não poder criticá-la sem ser acusado de incompreensão leiga. À entrada do templo desconstrucionista, portanto, um cartaz em letras de fogo já anuncia: “Ame-o ou deixe-o.” Mas deixá-lo significa excluir-se a si próprio da comunidade acadêmica e ser considerado um ignorante ou reacionário, um escravo do universo lingüístico pré-desconstrucionista e, portanto, um virtual objeto de desconstrução. Não há terceira alternativa entre desconstruir e ser desconstruído – e esta última hipótese não significa apenas ser objeto de análise corrosiva, mas de destruição social e profissional.

A desconstrução parte da premissa lingüística de Ferdinand de Saussure de que a língua é um sistema no qual o sentido de cada palavra é a diferença entre ela e todas as outras. O sacerdote supremo do desconstrucionismo, Jacques Derrida, joga essa premissa contra as pretensões científicas da própria lingüística, ao concluir daí que, se a língua é um sistema de diferenças entre signos, ela não tem qualquer referência a um “significado” externo. Tudo o que o ser humano diz, escreve ou pensa é apenas a exploração das possibilidades internas do sistema. Não tem nada a ver com “realidade”, “fatos” etc. O universo inteiro ao alcance do pensamento humano é constituído de “textos” ou “discursos”, mas, como não há nenhuma realidade externa pela qual esses discursos possam ser aferidos, não tem sentido falar de discursos “verdadeiros” ou “falsos”. Não existe representação da realidade. Todo discurso é livre invenção de significados.

Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido nietzscheano, afirmando que, se o dircurso não é representação da realidade, é expressão da “vontade de poder”. Mas isso não quer dizer que por trás do discurso exista um “eu” manifestando sua vontade de poder. A idéia de um eu estável e autoconsciente é ela própria uma representação da realidade. Como nenhuma representação da realidade pode funcionar, o eu também não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu”. Se a língua estava totalmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o desconstrucionista vai agora separá-la do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera “différence” a “différance”, com “a”, termo criado por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como autor do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto assunto do discurso. Em português ele não precisaria inventar esse trocadilho medonho, pois aí existe a palavra “diferição”, sinônima de “adiamento”, que, por aquela mistura de pedantismo e ignorância, típica do meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a usar, preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de uma nuance sutilíssima. Qualquer que seja o caso, Derrida está falando simplesmente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a si mesmo. Separado do objeto pela circularidade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela diferição, ou, se preferem, “différance” (como diria Dirty Harry: Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o que pensar, será sempre uma ausência falando de outra ausência.

Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe, só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu” e outra ficção chamada “objeto”. O motivo que produz a necessidade de criar essa ficção é o desejo de escapar da morte, da aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a “realidade”. Portanto a função de todos os discursos é negar a realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste o poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João, VIII:32) dizia que a liberdade nasce do conhecimento da verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em geral, a liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com isso, o próprio poder.

No início alguns marxistas ficaram alarmados com a nova filosofia, que, ao negar a realidade, punha em xeque toda pretensão de conhecer as leis objetivas do processo histórico. Mas Derrida logo conseguiu acalmá-los, mostrando que, se o desconstrucionismo era ruim para a teoria marxista, era bom para o movimento revolucionário, dando-lhe não só os meios de corroer toda a cultura ocidental por meio da negação do significado em geral, mas também de afirmar o seu próprio poder ilimitadamente: livre das coerções da realidade objetiva, imune portanto a qualquer cobrança na esfera dos argumentos racionais, ele poderia impor sua vontade por todos os meios ficcionais possíveis, enquanto seus adversários, travados por escrúpulos de realidade e lógica, observariam inermes a sua ascensão irresistível.

Todo o empreendimento desconstrucionista é, de fato, uma resposta prática ao apelo formulado pelo marxista húngaro Georg Lukacs, ao perceber que o grande obstáculo ao comunismo não era o poder econômico da burguesia, mas dois milênios de civilização judaico-cristã. “Quem nos livrará da civilização ocidental?”, perguntava angustiado Lukacs. Quem logo se apresentou como primeirão da fila foi o nazista Martin Heidegger. Destruição – Destruktion – é a palavra-chave de tudo o que ele fez na vida: desde escrever e depois desescrever Ser e Tempo até aplaudir a ascensão do Führer e recusar-se a esclarecer o assunto depois da II Guerra, deixando seus fãs numa dúvida perturbadora que dava à sua filosofia ainda mais sex appeal. A essência da filosofia de Martin Heidegger consiste em abolir o Logos, o verbo divino que faz a ponte entre o pensamento humano e a realidade externa, e colocar em seu lugar a “vontade de poder” do Führer. Heidegger foi o primeiro herói da guerra contra o “logocentrismo”. A convergência entre seus esforços filosóficos e os objetivos de Georg Lukacs foi o pacto Ribbentropp-Molotov da filosofia. Mas Heidegger, afinal, não criou como substitutivo para a civilização judaico-cristã nada além da filosofia de Martin Heidegger, que só serve para quem a entende. Derrida et caterva transmutaram essa filosofia num projeto acadêmico indefinidamente subsidiável e num movimento político do qual milhões podem participar sem entender coisa nenhuma do que estão fazendo. Tinha de ser mesmo um sucesso triunfal.

Ainda mais triunfal foi essa ascensão no Brasil, onde o temor reverencial à moda acadêmica francesa, o prestígio sacral do discurso incompreensível e a síntese de pedantismo e ignorância que constitui a forma mentis inconfundível da nossa classe universitária erigiram o desconstrucionismo num culto fanático que não apenas repele contestações mas nem mesmo admite a existência delas.

Um traço peculiar do desconstrucionismo, que no Brasil foi acentuado até suas últimas conseqüências, é que, ao negar a existência da verdade, ele não abdica de atacar a “mentira”. Quando ele o faz perante um público que desconhece a nuance específica que o termo tem para um desconstrucionista, a platéia acredita que ele está defendendo a “verdade”. Mas, no círculo interno, sabe-se que não existe verdade. “Mentira”, pois, é apenas aquilo que se opõe à ficção preferida do grupo desconstrucionista, à sua “vontade de poder”. Inversa e complementarmente, o termo “verdade”, ao ser usado pelo desconstrucionista perante os leigos, significará para estes uma representação adequada da realidade comprovável, mas, entre os iniciados, sabe-se que isto não existe e que o emprego do termo se destina apenas a explorar as ilusões do público para induzi-lo a submeter-se às ilusões e desejos do grupo ativista. Nesse sentido, pode-se e deve-se estigmatizar como “mentira” os fatos mais amplamente comprovados e impor como “verdade” qualquer mentirinha boba conscientemente inventada para vitaminar a “vontade de poder” do movimento.

Objetivamente falando, o valor inteiro do projeto desconstrucionista depende da premissa saussuriana de que o sentido de uma palavra é apenas a diferença entre ela e todas as outras. Essa premissa é falsa. Suponham a frase: “Jacques Derrida morreu.” A diferença entre Jacques Derrida e todos os outros seres dotados de nomes humanos é a mesma quer ele esteja vivo ou morto. A diferença entre morrer e estar vivo, por sua vez, é a mesma quer você esteja vivo ou morto. Mas, se Jacques Derrida morreu, a diferença entre ele e todos os outros continua intacta, enquanto ele, o indivíduo Jacques Derrida, não será mais visto por aí dando palestras e encantando milhões de idiotas. Ou a expressão “Jacques Derrida” significa algo mais do que a diferença entre ela e todas as outras, ou tabnto faz Jacques Derrida estar morto ou vivo. Do mesmo modo, uma frase como “Não há mais comida” é a mesma – e suas diferenças em relação a todas as outras são as mesmas — quer você a diga como puro exemplo verbal ou como expressão de um estado de fato. A diferença neste último caso está na presença ou ausência física de comida, que não é a mesma coisa que a “ausência do objeto” na mera formulação saussuriana do significado como diferença entre uma frase e todas as demais. Esta diferença é a mesma com comida ou sem comida. A falta de comida não é bem isso.

Reparando em detalhes como esse, o próprio Jacques Derrida foi obrigado a moderar as pretensões do seu método, reconhecendo a existência de “indesconstruíveis” e, no fim, admitindo que entre eles estava – que raiva, pô! – o próprioLogos. Desconstrua você o que desconstruir, estará sempre, pelo simples fato de pensar e falar, dentro de um quadro de referências balizado pelo Verbo Divino ou por seus reflexos na tradição metafísica. No fim das contas, a Destruktion, como o projeto nazista, pode destruir muitas coisas em torno, mas se destrói a si mesma – e àqueles que embarcaram na sua proposta – em escala infinitamente maior. Proclamando que a liberdade consiste em negar a verdade, o desconstrucionista só exerce sua liberdade de viver da ficção e sentir um gostinho de poder até o momento em que a morte substitui todas as ficções por uma verdade “indesconstruível” e a vontade de poder pela impotência definitiva dos cadáveres. Expressão modernizada da revolta gnóstica contra a estrutura da realidade, o projeto desconstrucionista está destinado ao fracasso, mas o fracasso cognitivo pode ser um sucesso político-social, na medida em que arraste na sua voragem milhões de idiotas hipnotizados pela atração do abismo.

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