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Casta de malditos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de abril de 2007

Há mais de dois séculos a casta dos intelectuais ativistas espalha terror e sofrimento por toda parte, sempre sob a desculpa de conduzir a humanidade a um reino de justiça igualitária. Não há genocídio, não há violência, não há brutalidade que não tenha por trás a criatividade incansável desses tagarelas iluminados, cujo maior talento é o de jogar os demais grupos humanos uns contra os outros enquanto mantêm oculta sua própria existência de agentes históricos principais, dirigentes máximos do processo e mandantes últimos de todos os crimes.

O intelectual ativista distingue-se do filósofo, do erudito, do cientista, do escritor, embora possa atuar sob a camuflagem de um ou vários desses papéis sociais, confundindo a platéia. A diferença é que, enquanto estes se esforçam para tentar compreender e expressar a realidade, ele só se ocupa de condená-la e de tentar transformá-la em outra coisa. O homem de estudos tem diante de si um mundo que já lhe parece complicado demais para a sua pobre cabecinha. O intelectual ativista tem na cabeça inchada um projeto de mundo, o plano integral de uma nova humanidade, que ele acha infinitamente superior a tudo quanto já existiu ou existe neste universo desmasiado estreito para a sua grandiosa imaginação.

Como não se pode interferir numa coisa sem jamais pensar nela, o intelectual ativista às vezes estuda algo da realidade, com o objetivo de alcançar prestígio num domínio especializado para depois poder falar com uma tremenda autoridade científica sobre assuntos dos quais ele sabe pouco ou nada e dos quais na verdade não quer saber coisa nenhuma. Voltaire ganhou fama como expositor da física de Newton, que ele havia estudado com certa atenção, para depois posar de guru em todas as áreas da atividade humana nas quais sua erudição era sofrível ou nula. Karl Marx estudou razoavelmente Epicuro e Demócrito para depois entrar na história como reformador da filosofia de Hegel, da qual ele tinha conhecimentos muito limitados e uma compreensão barbaramente deficiente. Richard Dawkins estudou genética e saiu dando palpites sobre religiões que ele desconhece no todo e nos detalhes. Noam Chomski dedicou alguns anos aos estudos lingüísticos para depois poder orientar a humanidade em questões de economia, guerra, política, direito e relações internacionais, onde seus conhecimentos se limitam àquilo que qualquer um pode ler diariamente na mídia popular esquerdista.

A quota de atividade intelectual séria a que esses indivíduos se entregam durante a primeira parte da vida não reflete seus interesses verdadeiros. É apenas uma fase temporária de conquista de credenciais que depois serão usadas e abusadas fora da sua jurisdição. É por isso que eles se chamam intelectuais ativistas e não intelectuais tout court . O objetivo de suas existências é o ativismo. A vida intelectual é somente um meio e pretexto. Eles não querem compreender a realidade. Querem modificá-la, e não apenas em algum detalhe que esteja ao seu alcance. Querem modificá-la no todo, de alto a baixo, corrigindo a natureza e Deus, que tiveram o desplante de fazer as coisas como elas são sem consultar antes a sabedoria de Voltaire, Karl Marx e Richard Dawkins.

Vejam o caso deste último. O fato de que todas as civilizações conhecidas tivessem alguma religião pode ser facilmente explicado pela razão de que as religiões são universalmente necessárias para dar abertura a uma dimensão da realidade que não poderia ser conhecida sem elas. Richard Dawkins prefere atribuir a existência das religiões a um efeito residual da evolução das espécies, que não logrou produzir ao longo dos tempos nenhuma criatura tão inteligente quanto Richard Dawkins e por isso deixou a humanidade à mercê de crendices e superstições bárbaras.

Com o risco de afastar-me perigosamente do assunto principal deste artigo, não resisto a observar que a simples redução da questão religiosa a uma matéria de “crença” ou “descrença” já é uma simplificação intelectualista que jamais poderia ter-se produzido antes que um assunto tão complicado e exigente fosse entregue ao arbítrio de palpiteiros ativistas que não têm a mínima condição de compreendê-lo.

Desde logo, a noção de “fé” só existe nas religiões do grupo abraâmico – judaísmo, cristianismo e islamismo. Não se fala disso no budismo, no hinduísmo, no xintoísmo ou nas religiões cosmológicas do Egito, da Babilônia, da Pérsia, etc. Um elemento tão limitado no tempo e no espaço não pode, com alguma razoabilidade científica, ser apontado como o traço universal definidor das religiões em geral. Mesmo dentro do estrito domínio cristão, a fé não significa “crença”, muito menos crença irracional, mas apenas confiança numa presença divina cujas provas iniciais tendem a ser esquecidas na agitação e dispersão de uma vida ilusória. A fé não é “crença”, é antes a fidelidade a uma recordação espiritual evanescente. O sujeito que não sabe nem isso deveria ser autorizado a participar do debate religioso, na melhor das hipóteses, só como ouvinte atento e mudo.

Em segundo lugar, o religioso não se distingue do materialista só na superfície intelectual das suas “crenças”, mas na profundidade da sua vida interior, na sua percepção da realidade. O materialista identifica-se com o seu corpo porque não tem capacidade de abstração suficiente para conceber sua pessoa como unidade espiritual, como “tipo” cuja estrutura essencial antecedia como possibilidade sua existência temporal e continuará inalterada como tal depois da morte. “ Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change ”, dizia Mallarmé ante o túmulo de Edgar Allan Poe: a eternidade o transforma enfim naquilo que ele sempre foi. Esse nível de percepção de si é inacessível ao indivíduo sensorialista, hipnotizado pelo fluxo das impressões corporais. Para ele, o discurso espiritual não diz, nada, é vazio, porque trata de realidades que transcendem a sua esfera de experiência. Ele só pode compreender esse discurso como seqüência de afirmativas sobre o universo físico, as quais, não podendo ser testadas pelos meios da ciência de laboratório, só podem ser objeto de “crença” ou “descrença”. Por trás da afetação de superioridade olímpica de um Dawkins ou de um Daniel Dennett existe a consciência humilhante e dolorida de uma deficiência psíquica, de um handicap espiritual deprimente. É por isso que seu “materialismo” não é só uma teoria, é uma atitude integral, carregada de ódio às religiões e de uma vontade radical de eliminá-las da face da Terra. O sentimento de inferioridade e exclusão que corrói as almas desses indivíduos é ainda mais intolerável do que aquele que poderia resultar de qualquer discriminação meramente social ou cultural: o homem privado de acesso à dimensão divina da existência sente-se em vida um condenado do inferno, sua alma é permanentemente acossada por uma inveja espiritual insanável e sem descanso. Ele é, literalmente, um pobre diabo.

Não espanta que tantos materialistas – explícitos ou disfarçados – venham engrossar as fileiras dos intelectuais ativistas e explorar o ressentimento dos excluídos sociais. Incitando estes últimos ao ódio e à revolta contra uma condição social específica que pode ser acidental e passageira, eles buscam alívio para seu próprio sentimento de exclusão, muito mais permanente, geral e insanável.

Também não é de estranhar que muitas vezes os intelectuais ativistas gostem de ostentar o título de “malditos”, dando a este termo a acepção de meros excluídos da sociedade. Essa acepção é falsa, porque em geral eles não são excluídos sociais de maneira alguma, são os queridinhos do sistema, paparicados e bem remunerados. Esse uso do termo é pura camuflagem irônica: eles sabem que são malditos num sentido muito mais real e profundo. São malditos espiritualmente, excluídos da experiência do divino no mundo.

É claro que muitos crentes das religiões são, nesse sentido, tão materialistas quanto Dawkins ou Dennett: estão privados da vivência espiritual e só podem assimilar o conteúdo da religião como “crença”, na esperança de alcançar algum dia, ao menos na hora da morte, uma percepção mais consistente da realidade divina. Só que nessa esperança existe mais sabedoria do que num desespero travestido de orgulhoso desprezo. O puro “crente”, que tem apenas “crença” e ainda não a verdadeira “fé”, está no caminho da vida espiritual. Mas aquele que pensa que toda fé é crença, esse é o mais ignorante de todos os ignorantes, que discursa com ares de certeza tanto mais infalível quanto menos concebe a realidade de que fala.

Mas, voltando aos intelectuais ativistas, dois acontecimentos recentes ilustram da maneira mais enfática o espírito que anima essas criaturas.

O primeiro, naturalmente, é a pressa indecente com que o prof. Roberto Mangabeira Unger aceitou um cargo no governo que ele vinha insistentemente rotulando – aliás com razão — de “o mais corrupto da nossa história”. Acrescentando à obscenidade o cinismo, o ex-professor de Harvard prontificou-se a retirar suas críticas, atribuindo-as à ingenuidade de ter acreditado na mídia antipetista, sem nem mesmo lhe ocorrer que alguém pudesse desejar saber por que o arrependimento de tê-las publicado só lhe veio depois do convite para o ministério, nem um minuto antes.

O objetivo do intelectual ativista é sempre e invariavelmente o poder. Sua atividade intelectual é apenas um instrumento ou um derivativo provisório, sem qualquer significado em si mesmo. Não li toda a obra do prof. Unger, mas a parte que li não continha uma só página de análise da realidade: só a expressão obsessivamente insistente de projetos, de utopias, de deveres que as pessoas deveriam cumprir se elas tivessem a felicidade de ser o prof. Unger e se o mundo não fosse injusto ao ponto de ter feito desse profeta iluminado um simples professor universitário e não uma reencarnação de Júlio César ou Gengis-Khan. O prof. Unger sempre discursa na clave do “dever ser”, com profundo desinteresse pelo “ser”. Ante a oportunidade de exercer ainda que uma migalha insignificante de poder no governo podre de um país falido, situado na extrema periferia do mundo, ele não se fez de rogado como Jonas ante o chamamento divino. Mais que depressa, atirou ao lixo a camuflagem de estudioso e mostrou o que é: um oportunista afoito, ávido de meios para “transformar o mundo” à sua imagem e semelhança.

Mas, já que ele se arrependeu de suas próprias palavras, deu-me também a oportunidade de me arrepender das minhas: qualquer coisa que eu tenha dito ou escrito em louvor do prof. Unger fica nula e sem efeito a partir da sua nomeação. Os atos públicos de um filósofo são interpretações – às vezes radicais – que ele dá à sua própria filosofia. Sócrates, enfrentando a morte com um sorriso, deu o melhor esclarecimento possível sobre como se deveria interpretar sua teoria da vida eterna. Integrando o establishment que antes ele fingia desprezar, o prof. Unger mostrou o que é sua filosofia: mero discurso de autopropaganda, trocável por qualquer outro que sirva ao mesmo objetivo.

O outro acontecimento foi o discurso bombástico da professora de Literatura Inglesa, Nikki Giovanni, na noite de vigília da Virginia Tech em homenagem às vítimas de Cho Seung-hui. “Nós somos a Virginia Tech! Nós não seremos derrotados”, exclamava ela, adornando com uma retórica de triunfalismo retroativo o vexame da inermidade de milhares ante um agressor solitário e sendo instantaneamente celebrada pela mídia como uma espécie de antípoda do assassino sul-coreano, a encarnação da vida invencível da coletividade em contraste com a morte de uns quantos indivíduos.

Nenhum outro orador seria melhor para essa farsa. Nikki Giovanni foi quem, nas suas aulas, deu sentido e orientação prática à loucura de Cho Seng-hui, infundindo-lhe o ódio assassino aos protestantes, aos judeus e aos brancos em geral. As duas peças de teatro, deformidades literárias medonhas nas quais o criminoso em preparação anuncia ao mundo as intenções que lhe passavam pela alma, são um traslado quase literal de poemas da sua professora, onde é explícito e enfático o apelo à matança dos “honkies” – o equivalente branco do pejorativo “nigger”. Num deles, “ The True Import of Present Dialog, Black vs. White ” (“O verdadeiro alcance do presente diálogo, negro versus branco”), ela não deixa por menos: “ We ain’t got to prove we can die. We got to prove we can kill ” (“Não temos de provar que somos capazes de morrer. Temos de provar que somos capazes de matar.”) E, num convite direto: “ Do you know how to draw blood? Can you poison? Can you stab-a-Jew? Can you kill huh? ” (“Você sabe como arrancar sangue? Sabe envenenar? Sabe esfaquear um judeu? Você sabe matar, hein?”). Mais adiante, ela sugere ao negro urinar numa cabeça loira e em seguida arrancá-la. Num outro poema, dedicado ao espirito das revoluções, ela propõe um kit especial para crianças, com gasolina e instruções sobre como montar um coquetel Molotov. Seus ensaios estão repletos de estereótipos racistas destinados a fomentar o ódio aos brancos. Mas talvez a melhor expressão da mentalidade que ela transmite a seus alunos seja a tatuagem que ela traz no braço, “Thug life”, (“vida de bandido”), em homenagem a Tupac Shakur, um delinqüente raper assassinado num tiroteio por outros rapers em 1997.

A história de Nikki Giovanni, que jamais aparecerá na mídia brasileira, pode ser lida no artigo de Steve Sailer, “Virginia Tech’s Professor of Hate” (“A professora de ódio na Virginia Tech”, publicado na revista de David Horowitz, Front Page Magazine. Mas quem melhor a resumiu foi um dos leitores que enviaram comentários ao blog de Sailer: “ Quantas vezes Cho Seng-hui ouviu na Virginia Tech as palavras ‘privilégio branco’? ” Não dá para contar, mas, só no website da escola essa expressão aparece 33 vezes.

Enfie todo esse ódio na mente de um maluco e ele só não sairá matando gente se estiver dopado. E a própria Nikki Giovanni sempre soube que Cho não era bom da cabeça. Mas que importa? Os intelectuais ativistas, por definição, são sempre inocentes das conseqüências de seus atos e palavras. Se o prof. Unger disse tais ou quais coisas contra o governo, a culpa é da mídia que o enganou, pobrezinho. Se Cho Seng-hui levou à prática o ódio anti-branco que uma professora lhe inoculou, a culpa é dos próprios brancos, do sistema, do capitalismo, do mundo mau – de todos, menos dela.

Essa crença do intelectual ativista na sua própria inocência e na culpa radical dos outros é uma herança direta das heresias do fim da Idade Média, cuja continuidade nas ideologias revolucionárias modernas é hoje uma realidade histórica bem provada.

Às vezes não é só convicção de inocência. É um sentimento de ser vítima no instante mesmo em que se comete o crime. É uma inversão total da relação de atacante e atacado. Se querem um exemplo, vejam o projeto de lei PLC 122/2006, que quer punir como crime toda crítica ao homossexualismo. A desculpa é proteger uma comunidade discriminada, mas que comunidade é mais discriminada do que os cristãos, que morrem aos milhares toda semana, nos países islâmicos e comunistas, e que nas democracias ocidentais são cada vez mais privados do direito de expor sua fé em público? É contra eles que essa lei iníqua se volta diretamente, numa ameaça tenebrosa aos seus direitos mais elementares – uma perseguição aberta e cínica incomparavelmente mais temível do que qualquer risco que os homossexuais possam ter sofrido neste país ou em qualquer outro. O que esse projeto consagra como lei é a inversão de nomes entre o perseguidor e o perseguido, entre o opressor e o oprimido, fazendo o primeiro de coitadinho e o segundo de criminoso.

Se a história da origem das ideologias modernas fosse contada ao público, este reconheceria imediatamente, nessa lei, nas declarações do prof. Unger ou no discurso da profa. Nikki Giovanni, a mesma velha pretensão demencial dos cátaros e dos albigenses à pureza intocável, coroada pelo direito de condenar o universo.

Como ninguém conhece isso, a ordem dos tempos também fica invertida, as velhas reivindicações de heresiarcas assassinos aparecem como o cume do progresso e das luzes, a objeção racional às suas pretensões se torna “fanatismo” e “fundamentalismo opressor”.

***

Sobre os intelectuais ativistas, leiam, se puderem, estes dois livros:

(1) “A Traição dos Intelectuais”, de Julien Benda, trad. Paulo Neves, São Paulo, Editora Peixoto Neto, 2007. É tradução de “ La Trahison des Clercs”, um clássico de 1927 em que o filósofo judeu, um dos homens mais lúcidos que a França já produziu, denuncia a abdicação geral dos deveres da inteligência por parte de intelectuais ávidos de poder. O editor Peixoto Neto foi meu aluno. Não o vejo há muitos anos, mas não é errado um professor ter orgulho de seus ex-alunos quando estão fazendo um belo trabalho.

(2) “Le Socialisme des Intellectuels”, de Jan Waclav Makhaïski, trad. e ed. Alexandre Skirda, Les Éditions de Paris, 2001. Makhaïski, autor polonês que escrevia em russo, foi militante esquerdista e conheceu bem os meios revolucionários russos e internacionais no fim do século XIX. Das suas observações e experiências, tirou as seguintes conclusões: (1) a classe revolucionária efetiva não eram os proletários, mas os intelectuais; (2) eles não eliminariam o capitalismo, mas o modificariam até que ele começasse a trabalhar mais em proveito deles do que dos capitalistas. Batata. Não deu outra.

O esquerdismo veio para ficar

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 26 de abril de 2007

A absolvição de Lula e de seus colaboradores pelo Tribunal Superior Eleitoral no caso do dossiê antitucano confirma, novamente, aquilo que já venho dizendo desde antes mesmo da eleição presidencial (e não me refiro à de 2006, mas à de 2002): o PT não veio para ocupar o governo temporariamente, dentro do rodízio democrático normal. Veio para criar um novo Estado, forjado na medida-padrão da sua vontade de poder.

Aqueles que esperam usar as instituições existentes como freio às ambições petistas são sonhadores semidefuntos que já estão na lata de lixo da História e apenas não são inteligentes nem corajosos o bastante para reconhecer sua situação.

As instituições não são nada. O poder esquerdista é tudo.

O esquema que nos governa não será derrubado por meio judicial; não será derrubado por via eleitoral; não será derrubado por golpe militar ou parlamentar; não será derrubado por pressão estrangeira; e não passará sozinho, como um sonho mau, por decurso de prazo.

O PT só deixará o poder quando sentir que a situação está madura para transmiti-lo diretamente às organizações revolucionárias de massa que até agora consentiram em lhe servir de retaguarda paciente e dócil, aguardando a transmutação chavista prometida e, a rigor, inevitável. Esse momento chegará quando aquelas organizações estiverem fortes o bastante para dominar fisicamente o território, com a ajuda de bandos de narcotraficantes associados à guerrilha colombiana (e, por tabela, ao Foro de São Paulo). Elas já provaram ter o monopólio dos protestos de rua, o domínio quase completo do tráfego rodoviário e a capacidade de paralisar cidades inteiras. Faltava o controle do tráfego aéreo, que está sendo providenciado.

O governo petista tem plena consciência de ser uma etapa de transição para a revolução socialista. Sua duplicidade de línguas, sua incoerência alucinante, suas idas e vindas entre o intervencionismo ousado e a omissão abúlica – tudo isso reflete apenas a índole essencialmente ambígua e mutante da sua função histórica.

O PT só deixará o poder quando puder repassá-lo a algo de incomparavelmente pior.

A única força que poderia, em princípio, deter esse processo é a resistência espontânea do povo brasileiro às mudanças rebuscadas e antinaturais que a elite iluminada pretende lhe impor. O povo é conservador e cristão, não gosta de desarmanento civil, abortismo, gayzismo, neo-racismo, feminismo enragé , proibições politicamente corretas e demais frescuras nas quais o típíco pseudo-intelectual ativista imagina ver o suprassumo do progresso e da civilização. O apego desse povo a seus valores de sempre é uma energia tremenda, mas dispersa e marginalizada. Não tem canais de expressão política nem um lugar de respeito na cultura dita superior. Reunir essa energia, dar-lhe consciência de si e transformá-la em ação político-social organizada é trabalho para muitas décadas, que ainda nem começou e que dia a dia se torna mais difícil de começar, graças à traição de um clero vendido ao esquerdismo e dos “direitistas” ansiosos para parecer cada vez mais politicamente corretos.

Educando para a boiolice

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de abril de 2007

Mal eu havia acabado de escrever que os alunos das escolas americanas são “sitting ducks”, e um dos sobreviventes do massacre da Virginia Tech apareceu no show “Today”, da MSNBC, dizendo a mesma coisa. Mas justamente esse, Zach Petkewicz, não foi pato nem ficou sentado. Encostou uma mesa na porta e impediu que Cho Seung Hui fizesse na sua sala de aula o que acabara de fazer nas salas vizinhas. Salvou uma classe inteira. Por que tão poucos, entre milhares de alunos, professores e funcionários, tiveram idêntica presença de espírito? Por que ninguém atacou o coreano maluco enquanto ele recarregava sua pistola automática ou trancava as portas com corrrentes?

Meu filho Pedro, que suportou pacientemente um ano e meio de escola pública na Virginia, garante: “É uma educação para boiolas.” O equivalente inglês da palavra é sissies . Uma sissy não é necessariamente um gay . Sujeitos que nunca tiveram um único impulso homossexual podem ser sissies perfeitas. Basta lhes ensinar que o macho branco heterossexual cristão americano é o bicho mais desprezível da face da Terra e que, se ele for exatamente um deles, deve fazer o possível para parecer outra coisa. Aos mais sortudos dentre eles ocorrerá a idéia, ridícula mas inofensiva, de usar trancinhas afro nos cabelos louros. Outros tentarão formas de adaptação mais incisivas – e, dentre elas, a mais popular e politicamente correta é tornar-se tão tímidos, fracotes e efeminados quanto possível. Depois de alguns anos desse adestramento, o sujeito está pronto para desmaiar, ter crise histérica ou ficar paralisado de medo ante o agressor, exibindo ainda mais fragilidade na esperança insensata de comovê-lo.

Impossível, diante do espetáculo de pusilanimidade coletiva na Virginia Tech, não recordar aquela vovó tagarela e empombada do conto “A Good Man is Hard to Find”, de Flannery O’Connor, que, diante do assassino armado que acaba de matar a tiros toda a sua família, se apega até o último instante à crença idiota de que ele é no fundo um homem bom, incapaz de lhe fazer dano. Mais ou menos a mesma idéia com que aqueles cabeças-de-toucinho do “Viva Rio” subiram o morro levando flores no “Dia do Carinho” – e foram expulsos a bala.

gays valentes e heterossexuais boiolas. A quintessência da boiolice não tem nada a ver com sexo. É uma covardia abjeta, um desfibramento da alma, uma pusilanimidade visceral – que os educadores de hoje em dia consideram o suprassumo da perfeição moral e os engenheiros sociais da ONU gostariam de espalhar por toda a humanidade. É a fórmula da pedagogia usada nas escolas públicas americanas. É por isso que o pessoal cristão foge delas, preferindo o homeschooling . Os meninos educados em casa só vão à escola no fim do ano, fazer exame, e tiram sempre melhores notas do que os trouxas que ficaram lá o ano inteiro só aprendendo boiolice.

Para os negros, as mulheres, os gays e os membros de “minorias” em geral, o establishment usa uma outra receita corruptora, simetricamente inversa. Lisonjeia-os até enlouquecê-los por completo. Infla seus egos até à divinização. Ensina-os a achar que são credores do universo, que o simples fato de dirigirem a palavra a um branco adulto é um ato de generosidade imperial. O fato de que negros e asiáticos, aqueles vindos nas tropas muçulmanas, estes nas hordas bárbaras, tenham atacado e escravizado milhões de europeus séculos antes de que o primeiro português desembarcasse na África é suprimido da História como se jamais tivesse acontecido. O branco – e, por ironia, especialmente o americano, dos povos ocidentais o que escravizou menos gente e por menos tempo – é definido como escravagista por natureza, o escravagista eterno, herdeiro de Caim, só digno de viver por uma especial concessão da ONU. Cada página dos manuais didáticos usados nas escolas americanas traz essas crenças insinuadas nas entrelinhas. Cada vez que um professor abre a boca em sala de aula, espalha mais um pouco desse entorpecente pedagógico nos cérebros infanto-juvenis. A coisa foi evidentemente calculada para estragar as almas, para alimentar o ódio e o ressentimento, para destruir o país por desmontagem sistemática.

Todos os preconceitos que existem no mundo surgiram espontaneamente dos conflitos entre os seres humanos. Agora, pela primeira vez na História, há o preconceito planejado, calculado matematicamente por engenheiros comportamentais e inoculado com requintes de técnica pedagógica nas cabeças da molecada. É por isso que há aqui um verdadeiro abismo entre as gerações. As pessoas de quarenta anos para cima são simpáticas, prestativas, generosas e patriotas. Os jovens são ranhetas insuportáveis, tanto mais pretensiosos e arrogantes quanto mais dependentes, incapazes de cuidar de si próprios e defender-se nas situações difíceis. Falo, é claro, daqueles que foram educados nas escolas públicas. Os que não querem ficar como eles buscam refúgio nas escolas particulares conservadoras (que existem aos montões mas são caras), nas igrejas, no homeschooling e nas Forças Armadas.

Alguns anos atrás, a escritora Christina Hoff Sommers, em The War Against Boys: How Misguided Feminism is Harming Our Young Men (Simon & Schuster, 2000) já advertia contra a epidemia de frescura planejada que educadores e psicólogos feministas, desarmamentistas, pacifistas, gayzistas etc. estavam montando, muitos deles imbuídos da alta missão de amansar por meio da castração generalizada a “cultura americana da violência” – um estereótipo hollywoodiano em cuja realidade acreditavam piamente pelo simples fato de ter sido inventado por feministas, desarmamentistas, pacifistas, gayzistas iguais a eles. “Asinum asinus fricat”, já observavam os romanos: o asno afaga o asno – um panaca esquerdista inventa uma lenda difamatória, os outros levam a coisa mortalmente a sério, e dali a pouco há milhares de teses universitárias a respeito, com ares de profunda ciência social, e comissões técnicas pagas a peso de ouro pelas fundações beneméritas para criar soluções geniais. O resultado é Cho Seung Hui. Cada um desses garotos que de repente saem matando gente a esmo tem a cabeça cheia de ódio ao país que lhe deu tudo. Tim McVeigh queria derrubar o sistema, os meninos de Columbine eram gays intoxicados de falatório anticristão, Cho Seung Hui sonhava em tornar-se um vingador ismaelita para fazer o Ocidente em cacos. Cada um foi educado e doutrinado para fazer o que fez. Enquanto uns intelectuais iluminados lhe infundiam o desejo de vingança contra quem nunca lhe fez mal algum, outros votavam leis que desarmavam os professores e funcionários nas escolas, os padres e pastores nas igrejas. Uns preparavam psicologicamente o assassino, outros amarravam as mãos das vítimas. Vocês já repararam que os invasores armados de pistolas e rifles só atacam igrejas e escolas? Já ouviram falar de algum que invadisse um clube de caça, um estande de tiro, uma assembléia da National Rifle Association? Aí vigora o princípio do “loco si, pero no tonto”. O país está repleto de estandes de tiro ao pato – e os Zachs Petkewicz se tornam cada vez mais raros. E depois aqueles que criaram propositadamente essa situação saem diagnosticando o fenômeno como produto da “cultura americana”, recomendando mais desarmamento civil, mais anti-americanismo, mais efeminamento compulsório da juventude nas escolas. Tiram proveito publicitário retroativo da sua própria maldade. É a receita infalível da propaganda revolucionária: “Xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz.”

Mas o pessoal por aqui já começou a perceber o truque, ainda que com um bocado de atraso. Allen Hill, um consultor de segurança entrevistado no mesmo programa que divulgou o episódio de Zach Petkewicz, declarou alto e bom som que as escolas têm de ensinar os meninos a ser mais valentes e agressivos. “Os bandidos estão contando com que os americanos fiquem sentados e não façam nada.”

“Os maus planejam seus ataques. As escolas têm de planejar sua defesa e reagir com igual agressividade. O treinamento tem de ser tão intensivo e levado tão a sério quanto o assassino leva a sério sua missão de matar.”

Há um país da América do Sul que, se ouvisse esse conselho, talvez não fosse vítima de cinqüenta mil homicídios por ano. Com uma diferença: ali os jovens não são tão fracotes. A boiolice está espalhada entre os homens adultos, nas ruas, nas fábricas, nos escritórios. Essa gente tem medo de armas até quando vistas pelo lado do cabo. E o governo, a Rede Globo e a Folha de S. Paulo querem lhe infundir mais medo ainda. É uma situação muito mais desesperadora que a dos americanos. Com o dobro da população brasileira, os EUA têm cinco vezes menos crimes violentos do que o Brasil.

Teses sobre o movimento revolucionário mundial

Para informação dos leitores, transcrevo abaixo umas notas que tomei para a conferência que vou pronunciar hoje para oficiais de Estado-Maior, americanos e brasileiros, na Academia Militar de West Point. Elas são só um esquema para desenvolvimento oral, mas nos próximos artigos darei mais detalhes a respeito.

1. O movimento revolucionário é um fenômeno único e contínuo ao longo do tempo, pelo menos desde o século XV. Cada geração de revolucionários tem consciência de ser herdeira e continuadora das anteriores. Isso está abundantemente documentado nos seus escritos. É um fato, não uma interpretação minha.

2. O movimento é contínuo mas não linear nem unidirecional. Ele progride através de mutações e revoluções internas e alimenta-se de seus próprios fracassos, que fornecem â geração seguinte uma poderosa motivação para o aprofundamento crítico das metas e da estratégia.

Como suas metas declaradas mudam de geração em geração, o movimento geral tem flexibilidade bastante para absorver ou repelir os movimentos parciais, conforme as necessidades estratégicas e retóricas de cada situação. Um mesmo movimento parcial pode ser considerado revolucionário num momento e contra-revolucionário no momento seguinte.

3. A continuidade consciente do movimento revolucionário não implica de maneira alguma que as gerações subseqüentes assumam a responsabilidade pelos erros e crimes das anteriores. A consciência de continuidade histórica que é afirmada no plano dos fatos é negada no plano do julgamento moral. Como na perspectiva do movimento revolucionário as culpas pertencem ao passado, a inocência de cada nova geração de revolucionários é um pressuposto da própria existência do movimento. Por isso mesmo, os revolucionários antigos, se alguma culpa têm, a têm enquanto personagens do passado, e não enquanto revolucionários. Suas culpas são imputáveis ao “seu tempo”, não à sua atividade revolucionária em si. O inimigo do movimento, ao contrário, arca não só com suas próprias culpas mas também com as de seus antepassados reais ou figurados, isto quando não é acusado também pelos crimes da revolução: o revolucionário, depois de matar meia dúzia de reacionários, os odeia mais ainda porque esses malvados o obrigaram a matá-los, sujando de sangue suas mãos puríssimas.

4. O movimento revolucionário não se identifica com nenhuma de suas metas em particular, mas também não sabe definir de uma vez por todas a “essência” permanente por trás de todas elas. Essa essência, de fato, não pode ser definida substantivamente, só negativamente: (1) o movimento é efetivamente um movimento , uma agitação permanente em busca de (2) uma meta móvel que não pode ser definida no presente porque só o futuro que a realizar a terá diante dos olhos como objeto de conhecimento. O movimento revolucionário é portanto movimento permanente e movimento futurista . O futuro, por definição, permanece futura. O dia do ajuste de contas do revolucionário com sua própria consciência é adiado automaticamente. A coisa mais próxima de um exame de consciência, na mente de um revolucionário, é a crítica aos antecessores.

5. O movimento revolucionário é, desde suas origens, um esforço para tomar o lugar do Cristo anunciado no Apocalipse e substituí-lo por um agente terrestre no papel de salvador da humanidade. Os fins concretos do movimento prevalecem-se assim da dignidade de um mistério que pode ser vagamente anunciado mas não pode ser revelado antes do fim dos tempos. Daí o descompromisso do movimento revolucionário para com suas próprias metas concretas, que ele muda ou abandona à vontade.

6. É inútil usar contra o movimento revolucionário, em qualquer das suas épocas ou versões, a retórica que opõe os ideais aos feitos. O movimento revolucionário troca de ideais com a mesma desenvoltura com que se isenta de responsabilidade pelos seus próprios feitos. Ele vive da tensão entre ideais indefinidos e feitos não assumidos. A essa tensão articulam-se duas outras (v. diagrama): entre o culto dos santos do panteão revolucionário e a crítica devastadora das revoluções; e entre o movimento perpétuo e a esperança num “fim da história”, paraíso estático da justiça e da paz universais.

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