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Meras coincidências

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 31 de dezembro de 2007

Quando se divulgou que a organização abortista “Católicas pelo Direito de Decidir” (CDD) tinha escritório num edifício de propriedade da Igreja Católica, ao lado das salas ocupadas pela CNBB, logo vieram os beatos de sempre, jurando que era tudo uma inocente coincidência imobiliária.

Quando a mesma CDD promoveu uma conferência sobre “A Bíblia e o Homossexualismo” em parceria com a Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi também mera coincidência.

Mera coincidência, ainda, o fato de que essa universidade católica aprovasse com louvor a tese de Yury Puello Orozco, militante daquela organização, que culpava a Igreja Católica pela disseminação da Aids.

Coincidência, pura coincidência, que a Casa de Retiro Sagrado Coração de Jesus, entidade católica de São Paulo, acolhesse em sua sede um seminário sobre “Masculinidade e Religião”, depois outro sobre “Gênero , Religião  e  Mídia”, por fim mais um sobre “Aids, Sexualidade e Religião”, os três promovidos pela CDD, e pelo menos o último deles anunciado no próprio jornal da Arquidiocese de São Paulo.

E que mente maliciosa veria algo mais que coincidência no fato de que a Escola Dominicana de Teologia, em São Paulo , promovesse uma comemoração dos cinqüenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos com apoio e patrocínio de quem? Das “Católicas pelo Direito de Decidir”.

Diante de tantas coincidências, é portando dever dos fiéis bradar, com devota confiança na idoneidade do bispado nacional: a CNBB não tem nada, absolutamente nada a ver com a essa organização abortista. Qualquer sugestão de que haja uma aliança cúmplice entre as duas entidades só pode ser obra de malvados como o signatário deste artigo.

Tanto mais que esse mesmo colunista, em dois artigos publicados em O Globo ( Escolha o adjetivo e Católicas, uma ova!), já demonstrou que a referida CDD não é de maneira alguma uma entidade católica, que só se denomina assim para ludibriar os fiéis, que é na verdade a filial nacional de uma organização satanista, criada com o propósito explícito de lutar pela destruição da Igreja. A presidente dessa organização esperneou um pouco diante do argumento, mas, com a desonestidade flagrante da sua resposta, acabou por lhe dar total confirmação.

A CNBB, é claro, jamais se associaria com uma entidade dedicada à destruição da Igreja.

Portanto, foi também por mera coincidência, e sem nenhuma culpa da CNBB, que uma entrevista com a Sra. Dulce Xavier, porta voz das “Católicas pelo Direito de Decidir”, foi parar no DVD oficial da “Campanha da Fraternidade” deste ano. Se o católico compra uma cópia do disco na expectativa de aí encontrar o discurso anti-abortista que a fé cristã e sucessivos decretos papais tornam obrigatório a todos os fiéis, e aí se depara, ao contrário, com a apologia do aborto, ele nem por um minuto deve suspeitar das elevadas intenções e da perfeita ortodoxia católica da CNBB. Obediente ao culto da hierarquia, mais que às palavra de Jesus Cristo e às tradições da Igreja, deve tratar de buscar logo alguma explicação tranqüilizante para o ocorrido. Se encontrar, me avise, porque eu não encontro nenhuma.

Discurso requentado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 27 de dezembro de 2007

No começo da década de 90, a ilusão triunfalista do “fim do comunismo” produziu nos liberais brasileiros a mais desconcertante das mutações: fez com que daí por diante eles concentrassem suas baterias na propaganda das vantagens da economia de mercado e na apologia abstrata do Estado de Direito, como se não lhes restasse outro inimigo a enfrentar. A esse programa acrescentou-se apenas, a partir de 2002, o combate à corrupção petista – muito mais brando e educado do que aquele que o PT havia travado contra os governos Collor e FHC. Se esse mesmo período foi também o da ascensão da esquerda ao controle hegemônico do Estado e da sociedade, só um cérebro monstruosamente letárgico poderia ver aí só coincidência.

Ao desmantelamento parcial e aparente da URSS seguiu-se, na América Latina, a fundação do Foro de São Paulo. Quando as Farc, em carta ao PT, celebram essa fundação como o acontecimento providencial que salvou da extinção o movimento comunista no continente, elas sabem muito bem do que estão falando: partidos legais e organizações criminosas de esquerda são hoje os dominadores incontestes da América Latina.

Isso aconteceu precisamente no período em que os liberais, desejando limpar-se de toda contaminação com a imagem de um passado conservador, não só se abstinham de toda menção ao perigo comunista, mas não escondiam sua má vontade hostil ante quem quer que ousasse tocar no assunto. Se, numa disputa política, um dos lados está disposto a todos os sacrifícios para reconquistar o terreno perdido e o outro se sente comprometido a jamais denunciar o que o adversário está fazendo, não é preciso ser muito esperto para saber quem vai ganhar a briga. Mas os liberais já a perderam, e a maioria deles ainda se recusa a entender o porquê.

Não percebem, essas angélicas criaturas, que toda a sua retórica não pode fazer nenhum mal à esquerda, a qual já se apossou dela quase que por inteiro, ao ponto de ser acusada, por alguns de seus membros mais loucos e por seus próprios agentes de desinformação empenhados em espalhar falsas pistas, de haver se bandeado para a direita.

O inimigo que hoje se perfila diante dos liberais e conservadores do continente não é um nebuloso “populismo”, não é um mero estatismo administrativo, não é um adocicado burocratismo social-democrata de estilo europeu: é o marxismo-leninismo, é o bom e velho comunismo de sempre, hoje com uma estratégia mais abrangente e flexível do que nunca e com adversários mais tímidos e bobocas do que seus sonhos mais róseos poderiam jamais ter concebido.

Conhecimento e controle

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 27 de dezembro de 2007

Num dos últimos números da Prospect , Ian Stewart, professor de matemática na Universidade de Warwick, observa que os computadores tornaram possível construir demonstrações matemáticas que se estendem por milhões e milhões de páginas, subtraindo-se ao controle humano. Acreditar nessas provas – ou negá-las – será um salto no escuro: o hiperdesenvolvimento da racionalidade matemática ameaça desembocar na total irracionalidade. Será, pergunta Stewart, “a morte da prova”? Muitos dizem “sim”; ele se alinha com os que dizem “não” – mas, é claro, uma vez colocada a questão nesses termos, a prova da resposta teria de prolongar-se por alguns milhões de páginas.

O problema, porém, não está na dificuldade da resposta: está na questão mesma. Quem disse que a racionalidade humana pode ser incrementada mediante o aprimoramento da técnica lógico-matemática? Esta última consiste essencialmente da silogística, ou combinação de duas premissas para obter uma conclusão. Vários silogismos em seqüência formam uma cadeia dedutiva, ou demonstração.

As normas básicas dessa arte foram lançadas por Aristóteles e bastaram para as necessidades gerais da mente humana durante uns 2.300 anos. Foi a partir da segunda metade do século 19 que alguns estudiosos acharam conveniente preencher os hiatos, de modo que o raciocínio fosse contínuo, sem saltos intuitivos. Para facilitar o empreendimento, trocaram a linguagem verbal da lógica clássica pela simbolização matemática. Isso acelerava a construção das cadeias dedutivas e permitia a mecanização do raciocínio, antecipando os computadores.

Com o advento dos computadores, o processo tornou-se ainda mais rápido – tão rápido que permitia montar em poucos segundos demonstrações tão complexas que a mente humana já não as podia acompanhar. O projeto de tornar as demonstrações mais precisas e confiáveis acabou por torná-las impossíveis de conferir. É confiar nos computadores ou desistir de provar o que quer que seja.

Isso é alarmante só em aparência. Qualquer instrumento que se descubra ou invente, afinal, só existe precisamente para desempenhar alguma função com mais eficácia do que o ser humano poderia fazê-lo diretamente com os meios de que a natureza o dotou. O primeiro sujeito que teve a idéia de montar um cavalo só obteve nisso algum sucesso porque era mais rápido andar a cavalo do que a pé. As roupas só continuam sendo usadas há milênios porque protegem mais do que a pele.

O problema é que é muito incômodo você alimentar um computador com umas dúzias de milhares de premissas e dois segundos depois ele devolver a você uma conclusão pronta sem que você possa ter a menor idéia do trajeto que ele percorreu. Você se sente como se estivesse consultando um oráculo. Isso não seria nem um pouco desconfortável, é claro, se além da solução do problema você não desejasse também ter o controle da situação. E a desgraça é que os primeiros lógico-matemáticos se meteram nisso justamente com a esperança idiota de obter maior controle da situação. Como todos os cientistas modernos, eles não estavam interessados em conhecimento propriamente dito, mas em poder. “Savoir pour prévoir, prévoir pour pouvoir”, era a divisa de Auguste Comte. Eles queriam construir um Golem, mas um Golem obediente. O Golem, uma vez crescidinho, já não podia concordar com isso.

Toda técnica tem seus inconvenientes, e é pura bobagem acreditar que técnicas aumentam o poder “do” ser humano. Na melhor das hipóteses, elas aumentam o poder de uns à custa de diminuir o dos outros. Para compensar a diferença, é preciso inventar outras técnicas – políticas e sociológicas – cujos inconvenientes, em geral, são maiores ainda.

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