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Andando na lua

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de dezembro de 2008

A ciência histórica, dizia Leopold von Ranke, é “contar as coisas como efetivamente se passaram”. Tal é também, em escala mais modesta, a missão do jornalismo. As dificuldades para cumpri-la são muitas. A principal é que cada personagem envolvido na trama tem sua própria versão dos acontecimentos, não raro concebida de antemão para produzi-los no sentido desejado, o que inclui forçosamente a dose de camuflagem necessária para que o público não apreenda o que está acontecendo, mas se limite a decorar e recitar a sua parte num enredo cujo nexo com os fatos lhe escapará por completo. Tal é a diferença entre “acontecimentos” e “narrativa”. A narrativa pode rastrear os acontecimentos depois que sucederam, mas pode também substituir-se a eles, antecipadamente, para ao mesmo tempo gerá-los e encobri-los. Para este último fim ela tem de ser mais atraente e parecer mais natural, mais fácil de acreditar do que os fatos que encobre. A primeira condição obtém-se amoldando-a às esperanças, sonhos, temores e ódios do público; a segunda, repetindo-a com insistência e por uma variedade muito grande de canais, dando uma impressão de testemunho universal convergente de tal modo que suspeitar da veracidade da coisa pareça um sinal de demência pura e simples.

Distinguir entre narrativa e acontecimentos é questão de inteligência. A mais decisiva operação da inteligência é distinguir entre o essencial e o acessório, ou, como dizia Aristóteles, entre a substância e o acidente. A substância é a “diferença específica” que destaca uma coisa daquelas que se lhe assemelham. Uma narrativa astuta pode trazer um elemento acidental e secundário para o centro da trama, bloqueando a percepção do essencial, de modo que este se realize discretamente enquanto todos estão olhando para o outro lado.

A narrativa da vitória de Barack Obama já estava pronta muitos meses antes das eleições: era o “presidente negro” que vencera a “herança racista” da nação americana, marcando “uma mudança histórica”. Tal era o discurso de propaganda, repetido, como traslado puro da realidade, por todas as grandes empresas de mídia, cujos proprietários e controladores aliás eram, eles próprios, adeptos e contribuintes do candidato.

No entanto, basta um pouco de inteligência para perceber que a cor da pele de Obama não é sua diferença específica, essencial: é apenas a sua diferença mais vistosa. Examinando sua história, sua formação, suas ligações políticas e sua conduta de campanha, verifica-se acima de qualquer dúvida possível que, como político, ele difere imensamente mais de todos os candidatos anteriores à presidência americana do que um negro difere de um branco ou um esquimó difere de um negro. Não há, afinal, grande originalidade em um negro eleger-se presidente dos EUA. Pela lei das probabilidades, isso acabaria acontecendo mais cedo ou mais tarde. E, ao contrário do que alardeia a narrativa forjada com base num estereótipo de cinco décadas atrás, as resistências à presença de negros nos altos postos são hoje praticamente nulas na sociedade americana; ao contrário, essa presença é aplaudida quase unanimemente, mesmo quando o personagem incumbido de personificá-la não é dos mais talentosos. Dos eleitores, apenas a sexta parte declarou que a raça foi importante na escolha do seu candidato e, desses, a quase totalidade votou em Obama. Por que então declarar, como o fez o candidato contra todo o senso das proporções, que sua vitória é um feito tão grandioso quanto o desembarque do primeiro homem na Lua? É fácil demais atribuir essa declaração à megalomania narcisista (que Obama tem, mas um pouco abaixo da dose demencial requerida para dizer uma coisa dessas). Obama tem razões para dizer o que disse: ele sabe que traz consigo uma diferença específica mais discreta, porém infinitamente mais significativa do que a cor da sua pele, e que essa diferença, ela sim, faz do seu acesso à presidência um acontecimento mais que espetacular, um acontecimento de proporções quase apocalípticas. Não é uma diferença totalmente invisível. As pessoas só não a enxergam porque a mídia não a aponta e porque, ao contrário do que acontece com a diferença epidérmica, ela não é animadora e sim temível, temível em grau maior do que a média dos seres humanos é capaz de suportar.

A diferença a que me refiro salta aos olhos mediante o simples cotejo de três ordens de fatos bem comprovados:

(1) Desde ontem, Obama, como presidente eleito, passou a receber os relatórios reservados dos serviços de inteligência, tendo acesso a todos os segredos de Estado da nação americana.

(2) Ao mesmo tempo, continua severamente bloqueado ao público, à mídia e aos investigadores em geral todo acesso aos documentos do próprio Obama, seja referentes à sua biografia pessoal, seja à sua carreira política. Ninguém pode examinar sua certidão original de nascimento, seu histórico escolar, seus registros médicos, sua tese de doutoramento, sua agenda de audiências no Senado, a lista dos clientes do seu escritório de advocacia ou mesmo o rol completo de seus contribuintes de campanha. A vida de Obama é mais secreta do que os mais altos segredos de Estado. Nada se pode saber dela, exceto na versão aprovada por ele. É um privilégio que nem os imperadores da antigüidade ou os tiranos mais prepotentes da modernidade jamais desfrutaram. Lênin, Stálin, Hitler e Mussolini jamais fizeram de seus históricos escolares um segredo de Estado. As vidas de Vladimir Putin, de Fidel Castro, de Hugo Chávez, são muito mais transparentes que a de Barack Hussein Obama. O homem mais visível do universo é ao mesmo tempo o mais opaco, o mais incognoscível.

(3) Para completar, a biografia “oficial” de Obama é tão cheia de inconsistências e contradições que só um público reduzido à infantilidade mental pode aceitá-la sem perguntas. Ele diz que nasceu num lugar, sua avó diz que ele nasceu em outro. Ele diz que nasceu no Havaí quando sua mãe estudava e morava em Seattle, a duas mil milhas de distância. Não existe a mais mínima prova de que seu pai estivesse no Havaí – e muito menos em Seattle – na época em que Obama teria sido gerado. Nenhum dos colegas de universidade de sua mãe, em Seattle ou no Havaí, se lembra de tê-la visto grávida. Ele disse que só conhecera William Ayers de vista, mas os documentos provam que trabalharam juntos por muito tempo, que Ayers o indicou para diretor da ONG Chicago Annenberg Challenge e que muito provavelmente foi o ghost-writer da sua autobiografia. Ele disse que não foi favorecido na compra da sua casa com dinheiro do vigarista sírio Tony Resko (recebido de Sadam Hussein, by the way), mas o recibo prova que pagou 300 mil dólares abaixo do preço. Ele disse que nunca trabalhou na Acorn, mas aparece em fotos dando aulas para os militantes da organização. Ele negou qualquer ligação política com Raila Odinga, mas as fotos o mostram no palanque, fazendo comício na campanha presidencial do genocida. Ele disse que não sabia das idéias políticas do pastor Jeremiah Wright, mas passou vinte anos ouvindo todas as semanas os sermões dele, que só falavam de política. E ainda restam algumas perguntas vitais: Por que tantos árabes – um príncipe saudita, um vigarista sírio e dois famosos agitadores pró-terroristas estão na lista – decidiram, sem mais nem menos, pagar todos os estudos de um jovem negro americano que não tivera até então nenhuma atuação pública digna de atenção? Como o conheceram? Por que decidiram ajudá-lo a subir na vida? São perguntas que até um candidato a sargento de polícia teria de responder obrigatoriamente. Dispensar delas um presidente da República, ao mesmo tempo que se desvelam diante dos seus olhos os mais altos segredos de Estado, é dar a ele o privilégio de tudo saber sem ser conhecido por ninguém, mesmo sendo ele um personagem que dá razões de sobra para ser investigado, um tipo suspeito que, se não foi plantado no posto mais alto da República americana pelos inimigos da nação, ao menos consentiu que eles lhe pagassem para chegar lá – um tipo que, se não é o “candidato da Manchúria”, é o que já houve de mais parecido com ele na realidade.

Pela primeira vez na história da humanidade a nação mais poderosa que já houve no mundo entrega seu comando e seus segredos de Estado a um completo desconhecido, envolto em segredos e mentiras como jamais um governante foi, mesmo nas ditaduras mais tenebrosas.

Perto dessa diferença abissal e imensurável, perto dessa originalidade inédita e absoluta, ser um candidato negro é, a rigor, um detalhe irrelevante, exceto no sentido de que a diferença epidérmica é usada justamente para encobrir a diferença profunda, tanto mais decisiva quanto mais proibida e inacessível. Se isso não é como andar na Lua, é pelo menos reinar na Terra sobre um eleitorado perdido no mundo da Lua, alienado da realidade pela sedução da narrativa.

Dória Vigaristinha e seu devoto seguidor

Olavo de Carvalho

6 de dezembro de 2008

Alguém me envia artigo de um tal Pedro Dória, que promete a seus leitores desmascarar a “lógica primária” (sic) daquilo que tenho dito e escrito sobre Barack Hussein Obama.

Não sabendo quem era Pedro Dória, fui averiguar no seu blog e descobri que é um jornalista cuja maior realização, no seu próprio julgamento, foi ter descoberto e divulgado Bruna Surfistinha, ex-prostituta autora de revelações de bordel que talvez provocassem um frisson nos anos 50, mas que hoje em dia soam como uma sessão nostalgia para leitores de Carlos Zéfiro.

A respeito do atestado de nascimento publicado pela campanha de Obama e confirmado como “autêntico” pelo site FactCheck.org, que se alardeia “organização apartidária”, o que afirmei foram três coisas principais e uma secundária:

1. O documento não é uma cópia da certidão de nascimento original (com a assinatura do médico e o nome do hospital), mas um atestado posterior, sem nenhum valor jurídico.

2. Além disso, havia razões para suspeitar que o documento fosse materialmente falso (v. http://www.worldnetdaily.com/index.php?pageId=82503).

3. Factcheck acrescentou a isso uma segunda falsificação: as fotos que exibiu para comprovar a “autenticidade” do documento publicado pela campanha de Obama mostravam um atestado assinado em 2007, mas num formulário impresso em 2008.

4. FactCheck não é uma organização “apartidária”, uma vez que pertence à ONG Chicago Annenberg Challenge, que contribuiu para a campanha de Obama.

Pedro Dória esquiva-se de discutir as três primeiras afirmações, mal chegando a citá-las de passagem (veja adiante), e concentra seu ataque na quarta, dando a entender que foi dela, sem nenhuma outra base factual, que deduzi tudo o que estou afirmando sobre o documento de Obama. Daí ele conclui, muito naturalmente, que faço uso daqueles métodos de difamação por associação de casualidades, tão característico dos filmes de Michael Moore. Já eu não posso dizer o mesmo de Pedro Dória. Michael Moore jamais usaria o método de difamação dele, porque tem QI superior a 12.

Isso não impede, no entanto, que Dória tenha discípulos. Un sot a toujours un plus sot qui l’admire. Um cidadão que se assina Leonardo Bernardes, em cujo currículo não consta sequer alguma realização comparável à de Dória no campo da proxenetagem literária, jura tomar seu artigo como fonte de inspiração e entra no picadeiro brandindo-o contra meus “fervosos preponentes” (sic, juro). Imaginem as reservas de caridade que precisei mover para continuar lendo a coisa depois desse início triunfal.

Em todo caso, eis o parágrafo de Dória que encorajou o menino a proclamar a minha absoluta nulidade intellectual:

Alguém diz que o Obama não apresenta documentos, aí ele apresenta. Então dizem que o documento é falso porque não tem selo. Aí alguém vai lá, vê o selo, fotografa o selo. Então dizem que não basta que nem era um documento apenas um comprovante de que o documento existe. Aí sugere-se que, se ele não fosse elegível nos EUA, seus adversários teriam investigado isso – e este argumento não vale como argumento.”

Nessas linhas imortais, Dória não informa onde foi que usei essa seqüência de deduções. Ele nem poderia fazê-lo, porque jamais a usei.

O que ele faz é falar genericamente dos adversários de Obama e deixar no ar uma vaga insinuação de que sou culpado do que quer que eles façam. Bernardes, extasiado, acha que isso é uma demonstração científica irrefutável, porque não consegue distinguir entre método científico e fofoca de puteiro (o único ramo erudito, vale recordar, no qual Dória se orgulha de ter realizado alguma coisa).

Em todo caso, é claro que nem mesmo a campanha anti-obamista seguiu o trajeto lógico que Dória lhe imputou. O primeiro – não o segundo ou o terceiro – argumento que se alegou contra a certidão de nascimento publicada pela campanha de Obama foi o mais óbvio e imediato: ela não era uma certidão de nascimento. Qualquer cidadão americano que tenha tentado tirar um passaporte ou uma carteira de motorista com documento semelhante sabe disso: mandam que volte para casa e traga uma cópia da certidão original. Os exames técnicos que sugeriram a falsidade do atestado vieram depois, motivados justamente pela estranheza de que Obama quisesse impingir aquela coisinha como certidão de nascimento em vez de mostrar logo a certidão original. Dória inverte a seqüência dos fatos, em seguida transfigura essa ordem invertida num suposto “método de argumentação” e o atribui primeiro aos adversários de Obama e depois a mim, como se ele próprio não fosse o seu único e exclusivo inventor. Seu discípulo é ainda mais explícito, proclamando que a narrativa invertida criada pelo seu mestre desmascara o método de “retrocesso lógico” usado pelos anti-obamistas – e, naturalmente, por mim – na nossa ânsia de provar retroativamente uma tese escolhida de antemão.

Mas a maior realização de Dória no domínio dos métodos lógicos vem na frase seguinte. Procurando enfatizar a teimosia psicótica do anti-obamismo, ele exclama: “Aí sugere-se que, se ele não fosse elegível nos EUA, seus adversários teriam investigado isso – e este argumento não vale como argumento.” Ou seja: vocês não podem denunciar Obama como inelegível porque se ele fosse inelegível vocês o denunciariam. E Dória ainda fica indignado de que esse argumento não seja aceito!

Confiante no rigor exemplar das demonstrações dorianas, seu devoto exegeta proclama a minha total ignorância do método científico. Para maior ilustração da platéia, ele expõe em seguida um dos elementos essenciais do referido método tal como ele o concebe:

No lastro da ciência há uma noção de comunidade científica, isto é, de um grupo que inserido em contextos não apenas científicos mas políticos, decide sobre a forma como os enunciados científicos irão moldar o mundo.”

A comunidade científica, portanto, é algo assim como um coletivo do MST, que, em assembléia, decide quais os enunciados científicos convenientes e inconvenientes aos seu projeto de “transformação do mundo”, aprovando os primeiros e rejeitando os segundos como barbaramente anticientíficos.

Bernardes não cita um único exemplo de descoberta científica efetuada por esse método. Nem poderia. Mas eu posso citar dois: a embriologia fraudulenta de Ernest Haeckel e a falsa genética de Lyssenko, a primeira aprovada pelo coletivo nazista, a segunda pelo comunista. Ninguém pode negar que “transformaram o mundo”. A primeira levou um bocado de gente para Auschwitz, a segunda para o Gulag.

Dória e Bernardes escrevem muitas outras tolices infames nos seus respectivos artigos, mas as que assinalei já bastam para mostrar que, intelectualmente, aquele é um vigarista pé-de-chinelo e este um aspirante a ser Pedro Dória quando crescer. Nem eu nem meus “fervosos preponentes” nos sentimos nem um pouco ofendidos por gente que cospe para cima. Também não rimos deles mais do que a caridade permite. Tudo o que sentimos é uma humilhação profunda por termos nascido num país onde os Dórias e Bernardes, reproduzindo-se aos milhares e aos milhões como memes ou vírus de computador, dão o tom dos debates ditos intelectuais e decidem, no aconchegante uniformismo mental do seu coletivo, “sobre os instrumentos de verificação e refutação, sobre os meios pelos quais conversar, concordar e discordar”. Deve ser por isso que há décadas a ciência e a tecnologia, no mundo, não avançam um passo sem as contribuições da universidade brasileira…

Só mais um ponto tem de ser mencionado, porque é difamação porca de um grande artista falecido. Bernardes diz que “Bruno Tolentino só se ergue mediante ataques a Augusto e Haroldo de Campos, ou a Giannotti, ou cantando loas ao próprio Olavo.” Tolentino, quando chegou ao Brasil, já era reconhecido como um dos maiores poetas do mundo por Jean Starobinsky, W. H. Auden, Geoffrey Hill, Giuseppe Ungaretti e Elizabeth Bishop, entre outros inumeráveis. Imaginar que ele precisasse “se erguer” depois disso, e que a tanto se destinassem suas denúncias contra o charlatanismo dos Campos ou a inépcia de José Arthur Gianotti, é coisa de uma mesquinharia tão doente e de uma estupidez tão abissal, que só poderia vir mesmo de um membro mirim do “coletivo” brasileiro.

P. S. – Ao contrário do que afirma Pedro Dória, a inutilidade legal do atestado publicado pela campanha de Obama não é um “argumento dos adversários”. É um simples fato da lei americana. O próprio Governo do Havaí não aceita esse documento como prova de nacionalidade. O site oficial do registro imobiliário do Governo havaiano (Department of Hawaiian Home Lands, DHHL) explica a diferença entre a Certidão de Nascimento (Certificate of Live Birth) e o mero atestado (Certification):

“Certidão de Nascimento (Certificate of Live Birth)… é um registro mais completo do seu nascimento do que o Atestado (Certification) gerado por computador. Apresentar a Certidão de Nascimento poupará tempo e dinheiro, pois o Atestado requer verificação adicional pelo DHHL. Ao solicitar uma cópia autenticada ao Departamento de Saúde (DOH, Department of Health), informe ao funcionário que você a está requerendo ‘para fins da DHHL’ e que você precisa de uma cópia da Certidão de Nascimento original de nascimento, e não do Atestado gerado por computador.” (V. http://hawaii.gov/dhhl/applicants/Loaa%20Ka%20Aina%20Hoopulapula.pdf.)

Em suma: Obama não poderia comprar uma casa, um apartamento, um lote de terra, uma kitchenette no Havaí só com aquela porcaria de atestado que ele impingiu aos eleitores como prova cabal da sua elegibilidade à Presidência dos EUA. Todos os candidatos à presidência sempre apresentaram cópias de suas certidões originais. Obama poderia receber a sua em casa, pelo correio, preenchendo um formulário de menos de uma página e pagando uma taxa de dez dólares.

No próprio Estado onde ele se elegeu senador – Illinois – Obama não poderia tirar sequer uma carteira de motorista só com aquele atestado. O DMV (Department of Motor Vehicles) de Illinois exige ou uma cópia autenticada da certidão original ou qualquer outro documento, de uma lista de dezenove – por exemplo histórico escolar, cartão de residente temporário, etc. – que não inclui a tal Certification. Em suma, esta vale menos, como prova de nacionalidade, do que um histórico escolar (mas Obama também não mostra o histórico escolar, porca miséria). Confira em http://www.dmv-department-of-motor-vehicles.com/IL_Illinois_dmv_department_of_motor_vehicles.htm.

A ilusão corporalista

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 4 de dezembro de 2008

O que separa da humanidade normal os abortistas, gayzistas, globalistas, marxistas, liberais materialistas e outras criaturas afetadas de mentalidade revolucionária não é uma questão de opinião ou crença: é uma diferença mais profunda, de ordem imaginativa e afetiva.

Aristóteles já ensinava – e a experiência de vinte e quatro séculos não cessa de confirmar – que a inteligência humana não forma conceitos diretamente desde os objetos da percepção sensível, mas desde as formas conservadas na memória e alteradas pela imaginação. Isso quer dizer que aquilo que escape dos limites do seu imaginário será, para você, perfeitamente inexistente. O imaginário, por sua vez, não reflete somente as disposições do indivíduo, mas os esquemas lingüísticos e simbólicos transmitidos pela cultura. A cultura tem o poder de moldar o imaginário individual, ampliando-o ou circunscrevendo-o, tornando-o mais luminoso ou mais opaco.

O imaginário da espécie humana quase inteira, ao longo dos milênios, foi formado por influências culturais que o convidavam a conceber o universo físico como uma parte, apenas, da realidade total. Para além do círculo da experiência imediata, existia uma variedade de outras dimensões possíveis, ocupando o território imensurável entre o infinito e o finito, a eternidade e o instante que passa.

A partir do momento em que o universo cultural passou a girar em torno da tecnologia e das ciências naturais, com a exclusão concomitante de outras perspectivas possíveis, era inevitável que o imaginário das multidões fosse se limitando, cada vez mais, aos elementos que pudessem ser expressos em termos da ação tecnológica e dos conhecimentos científicos disponíveis. Gradativamente, tudo o que escape desses dois parâmetros vai perdendo força simbolizante e acaba sendo reduzido à condição de “produto cultural” ou “crença”, sem mais nenhum poder de preensão sobre a realidade. O empobrecimento do imaginário é ainda agravado pela crescente devoção pública ao poder da ciência e da tecnologia, depositárias de todas as esperanças e detentoras, por isso mesmo, de toda autoridade. Isso não quer dizer que as dimensões supramateriais desapareçam de todo, mas elas só se tornam acessíveis ao imaginário popular quando traduzidas em termos de simbologia tecnológica e científica. Daí a moda da ficção científica, dos extraterrestres e dos deuses astronautas. Mas é claro que essa tradução não é uma verdadeira abertura para as dimensões espirituais, e sim apenas a sua redução caricatural à linguagem do imediato e do banal.

Uma das conseqüências disso é que o corpo, milenarmente compreendido como um aspecto entre outros na estrutura da individualidade, passou a ser não apenas o seu centro, mas o limite último das suas possibilidades. Aquelas potências do ser humano que só aparecem quando ele é confrontado com a dimensão da infinitude e da eternidade tornam-se absolutamente inacessíveis e passam a ser explicadas como “crenças culturais” de épocas extintas, com a conotação de atraso e barbarismo. Daí, também, que as mais hediondas realizações da sociedade tecnológica, como a guerra total e o genocídio, tenham de ser explicadas, de maneira invertida e totalmente irracional, como resíduos de épocas incivilizadas em vez de criações originais e típicas da nova cultura. O “formador de opinião” dos dias que correm é incapaz de perceber a diferença específica entre o totalitarismo moderno e as formas imensuravelmente mais brandas de tirania e opressão conhecidas na antigüidade e na Idade Média. Para ele, o Gulag e Auschwitz são a mesma coisa que a Inquisição. Quando lhe demonstramos que as formas extremas de controle totalitário da conduta individual eram perfeitamente desconhecidas em toda parte antes do século XIX, ele sente aquele mal-estar de quem vê o chão abrir-se sob seus pés. Então muda de conversa imediatamente ou nos amaldiçoa como fanáticos fundamentalistas.

Mais sobre isto na semana que vem.

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