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O povo e a ralé

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de abril de 2015

          

Karl Marx podia ter todos os defeitos do mundo, desde a vigarice intelectual até as hemorroidas, mas ele sabia que a palavra “proletário” significa “gente que trabalha” e não qualquer Zé-Mané.
Ele combatia o capitalismo porque achava que os ricos enriqueciam tomando o dinheiro dos pobres, o que é talvez a maior extravagância matemática que já passou por um cérebro humano, mas, reconheça-se o mérito, ele nunca confundiu trabalhador com vagabundo, povo com ralé.
Alguns discípulos bastardos do autor de “O Capital”, uns riquinhos muito frescos e pedantes, fundaram um instituto em Frankfurt com o dinheiro de um milionário argentino e resolveram que valorizar antes o trabalho honesto do que os vícios e o crime era uma deplorável concessão de Marx ao espírito burguês.
Usando dos mais requintados instrumentos da dialética, começaram ponderando que o problema não era bem o capitalismo e sim a civilização, e terminaram tirando daí a conclusão lógica de que para destruir a civilização o negócio era dar força aos incivilizados contra os civilizados.
Os frankfurtianos não apostavam muito no paraíso socialista, mas acreditavam que a História era movida pela força do “negativo” (uma sugestão de Hegel que eles tomaram ao pé da letra), e que, portanto, o mais belo progresso consiste em destruir, destruir e depois destruir mais um pouco.
Tentar ser razoável era apenas “razão instrumental”, artifício ideológico burguês. Séria mesmo, só a “lógica negativa”.
A destruição era feita em dois planos.
Intelectualmente, consistia em pegar um a um todos os valores, símbolos, crenças e bens culturais milenares e dar um jeito de provar que no fundo era tudo trapaça e sacanagem, que só a Escola de Frankfurt era honesta, precisamente porque só acreditava em porcaria – coisa que seu presidente, Max Horkheimer, ilustrou didaticamente pagando salários de fome aos empregados que o ajudavam a denunciar a exploração burguesa dos pobres.
Isso levou o nome hegeliano de “trabalho do negativo”. A premissa subjacente era:
– Se alguma coisa sobrar depois que a gente destruir tudo, talvez seja até um pouco boa. Não temos a menor ideia do que será e não temos tempo para pensar em tamanha bobagem. Estamos ocupados fazendo cocô no mundo.
No plano da atividade militante, tudo o que é bom deveria ser substituído pelo ruim, porque nada no mundo presta, e só a ruindade é boa. A norma foi seguida à risca pela indústria de artes e espetáculos. A música não podia ser melodiosa e harmônica, tinha de ser no mínimo dissonante, mas de preferência fazer um barulho dos diabos.
No cinema, as cenas românticas foram substituídas pelo sexo explícito. Quando todo mundo enjoou de sexo, vieram doses mastodônticas de sangue, feridas supuradas, pernas arrancadas, olhos furados, deformidades físicas de toda sorte – fruição estética digna de uma plateia high brow.
Nos filmes para crianças, os bichinhos foram substituídos por monstrengos disformes, para protegê-las da ideia perigosa de que existem coisas belas e pessoas boas. Na indumentária, mais elegante que uma barba de três dias, só mesmo vestir um smoking com sandálias havaianas — com as unhas dos pés bem compridas e sujas, é claro.
A maquiagem das mulheres deveria sugerir que estavam mortas ou pelo menos com Aids. Quem, na nossa geração, não assistiu a essa radical inversão das aparências? Ela está por toda parte.
Logo esse princípio estético passou a ser também sociológico. O trabalhador honesto é uma fraude, só bandidos, drogados e doentes mentais têm dignidade. Abaixo o proletariado, viva a ralé. De todos os empreendimentos humanos, os mais dignos de respeito eram o sexo grupal e o consumo de drogas.
De Gyorgy Lukacs a Herbert Marcuse, a Escola de Frankfurt ilustrou seus próprios ensinamentos, descendo da mera revolta genérica contra a civilização à bajulação ostensiva da barbárie, da delinquência e da loucura.
Vocês podem imaginar o sucesso que essas ideias tiveram no meio universitário. Desde a revelação dos crimes de Stálin, em 1956, o marxismo ortodoxo estava em baixa, era considerado coisa de gente velha e careta.
A proposta de jogar às urtigas a disciplina proletária e fazer a revolução por meio da gostosa rendição aos instintos mais baixos, mesmo que para isso fosse preciso a imersão preliminar em algumas páginas indecifráveis de Theodor Adorno e Walter Benjamin, era praticamente irresistível às massas estudantis que assim podiam realizar a coincidentia oppositorum do sofisticado com o animalesco.
Com toda a certeza, a influência da Escola de Frankfurt, a partir dos anos 60 do século passado, foi muito maior sobre a esquerda nacional que a do marxismo-leninismo clássico.
Sem isso seria impossível entender o fenômeno de um partido governante que, acuado pela revolta de uma população inteira, e não tendo já o apoio senão da ralé lumpenproletária remunerada a pão com mortadela e 35 reais, ainda se fecha obstinadamente na ilusão de ser o heroico porta-voz do povão em luta contra a “elite”.
Dois anos atrás, já expliquei neste mesmo jornal (leia aqui) que uma falha estrutural de percepção levava a esquerda nacional a confundir sistematicamente o povo com o lumpenproletariado, de tal modo que, favorecendo o banditismo e praticando-o ela própria em doses continentais, ela acreditava estar fazendo o bem às massas trabalhadoras, as quais, em justa retribuição de tamanha ofensa, hoje mostram detestá-la como à peste.
O Caderno de Teses do V Congresso do PT é um dos documentos mais reveladores que já li sobre o estado subgalináceo a que os ensinamentos de Frankfurt podem reduzir os cérebros humanos.

Aprendendo com o povão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de abril de 2015          

A queda abrupta na audiência da TV Globo ilustra algo que venho dizendo aqui há semanas: a revolta popular não é só contra meia dúzia de políticos ladrões, nem só contra a sra. Dilma Rousseff, o PT ou mesmo o Foro de São Paulo: é contra toda a elite que os protegeu e os legitimou no poder à força de mentiras e desconversas.
Sempre de joelhos ante as modas estrangeiras mais idiotas, e manipulados por intelectuais ativistas que, a despeito da sua mediocridade, sempre deslumbraram as suas mentes ainda mais medíocres, os donos dos nossos meios de comunicação puseram todos os seus formidáveis recursos a serviço de uma “revolução cultural”, cuja simples existência ignoravam, e que foi, aliás, concebida precisamente para ser levada a cabo por idiotas úteis que a ignoravam.
Antonio Gramsci é bastante explícito quanto a esse ponto: não se trata de “conquistar corações e mentes”, como afirmou esse asno pomposo que ocupa o Ministério da Educação, mas, bem ao contrário, de fazer com que “todos sejam socialistas sem sabê-lo”, de dominar o “senso comum” a tal ponto que massas inteiras da população repitam chavões e slogans sem ter a menor ideia da sua origem e da sua função num plano estratégico de conjunto.
A diferença entre o antigo militante proletário conquistado para a causa do comunismo e o moderno servidor da revolução cultural é tão imensurável que, por si, basta para ilustrar a elasticidade psicopática da mente revolucionária, sempre pronta a trocar de atitude, de discurso e de valores cada vez que julga isso necessário para o aumento do seu poder.
O primeiro decorava manuais de marxismo-leninismo, era hipersensível ao menor desvio da ortodoxia partidária e proclamava orgulhosamente sua condição de comunista militante, sacrificando bens, vida, honra e liberdade, tudo pela causa.
Em volta dele existiam, é claro, alguns idiotas úteis sem cultura marxista, que se associavam à luta por motivos subjetivos totalmente estranhos ao marxismo, que levavam o militante genuíno às gargalhadas.
Na militância gramsciana, as proporções inverteram-se: o grosso da contingente compõe-se de idiotas úteis, os militantes doutrinados reduziram-se a uma discreta elite dirigente que não faz a menor questão de que seus seguidores saibam por que a seguem.
Os motivos subjetivos, que antes eram apenas acréscimos acidentais ao corpo da luta revolucionária, tornaram-se a propaganda oficial, que na mesma medida perdeu toda unidade e coerência, estilhaçando-se numa poeira alucinante de chavões e cacoetes mentais desencontrados, bons para todos os temperamentos e preferências, incluindo a expressão histérica das insatisfações mais fúteis que o marxista puro-sangue de antigamente desprezava como “pequeno-burguesas”.
A pessoa e os feitos do sr. Jean Wyllys ilustram esse estado de coisas da maneira mais didática que se pode imaginar. Na sua ânsia de juntar num front comum tudo quanto lhe pareça antiocidental e anticristão, ele exige que as escolas esmigalhem de vez os cérebros das crianças com aulas simultâneas de gayzismo e de islamismo.
Cada pequeno brasileiro será portanto informado de que ele deve fazer aquilo que, se ele fizer, será punido com pena de morte.
Às vezes as pessoas clamam contra a “doutrinação marxista” nas escolas, mas “doutrinação” é eufemismo: os tempos da doutrinação já passaram. O que ali se faz é infinitamente mais destrutivo do que qualquer doutrinação. Pascal Bernardin, no livro Maquiavel Pedagogo (veja aqui), descreveu em minúcias como as técnicas adotadas na educação das crianças hoje em dia são calculadas para induzir mudanças de comportamento sem passar pela aprovação consciente.
Não se trata de “conquistar corações e mentes”, mas de adestrar os corpos no aprendizado da macaquice.
O apelo à consciência é cada vez mais reduzido, ao ponto de que aquele que passou por esse treinamento se torna incapaz de perceber as mais grotescas incoerências no seu discurso, mesmo quando elas tornam irrealizável na prática aquilo que ele proclama como seu sonho e ideal.
O sr. Jean Wyllys é o produto perfeito e acabado de um sistema de ensino montado para produzir idiotas úteis em escala industrial.
É evidente que, abolido o confronto ideológico explícito, dissolvida a ortodoxia marxista num farelo de estereótipos para todos os gostos, cada freguês podendo escolher à vontade os “direitos humanos”, a “anti-homofobia”, o “antirracismo”, o culto de uma lendária superioridade espiritual do Oriente, a mitologia indigenista, a liberação das drogas, os delírios da New Age, o ressentimento feminista, o islamismo ou tudo isso de uma vez, o mero fato de um sujeito ser pessoalmente um bilionário capitalista, e,  eventualmente o dono de uma rede de canais de TV, não o torna imune, no mais mínimo que seja, à contaminação de uma lepra mental que assume todas as formas e o assalta por todos os lados.
Foi assim que os donos da mídia, sem percebê-lo nitidamente, e até mesmo negando-o peremptoriamente, se tornaram servidores da “revolução cultural” que os abomina e despreza ao ponto de imaginá-los – pasmem! – responsáveis pelos movimentos de protesto anti-PT.
O sr. João Pedro Stedile proclamando “A Globo fez tudo isso”, ao mesmo tempo que os manifestantes escorraçavam os repórteres da Globo a cusparadas – eis uma cena representativa da confusão monstruosa que o gramscismo produziu na mente brasileira.
Enquanto os “intelectuais” e “formadores de opinião” mostravam cada vez mais nada entender do que estava acontecendo, exemplificando eles próprios o estado de turva inconsciência reinante, o povão, quase por milagre, apreendeu a unidade oculta por trás dos rostos cambiantes e inumeráveis do seu inimigo, e se voltou contra ele com uma determinação e uma coragem admiráveis.
Domingo ele vai nos dar mais uma lição a respeito.

Mensagem do passado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de abril de 2015          

A Editora Boitempo publicou em tradução o romance de Leonardo Padura, “El Hombre que Amaba a los Perros”, com o título de “O Homem que Amava os Cachorros”.
Eu teria preferido “Cães”, porque, ao lidar com uma língua irmã da sua própria, o tradutor deve ter o bom gosto e bom senso de escolher, seja palavras de igual raiz com significado idêntico nas duas línguas, seja palavras que inexistem no idioma original, jamais palavras idênticas com significado diverso. “Cachorro”, em espanhol, é “filhote”. Talvez o tradutor achasse que “cão” é termo do vocabulário “burguês”.
Mas o problema maior não é esse. Dedicada eminentemente à promoção de ideias e autores comunistas, a equipe da Boitempo mostrou que é capaz de traduzir e divulgar um dos grandes romances do século, ganhando algum dinheiro com ele, sem se deixar afetar pelo seu conteúdo no mais mínimo que seja.
É um caso de insensibilidade literária que raia a psicastenia. Pois raramente, no mundo, o comunismo, não nos detalhes do imensurável horror físico que produziu, mas nas profundezas da deformidade psicopática que o inspira, foi descrito em termos tão cruamente realistas como nesse livro: é uma imagem do inferno ou, para usar as palavras do autor, algo que se parece “antes a um castigo divino do que a uma obra de homens”.
Com base em farta documentação, só complementando-a com a especulação imaginativa nos pontos onde isso é indispensável, o livro conta a história dos últimos anos de vida de Leon Trotski e do seu assassino, Ramon Mercader, paralelamente à do narrador, um escritor cubano reduzido à impotência criadora pelas imposições da burocracia castrista empenhada em tudo rebaixar e mediocrizar.
Os três são homens que apostaram tudo no socialismo e aos quais só resta, no fim da história, a consciência amarga da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.
Embora a maior parte do enredo se passe no tempo de Stalin, o romancista não apela ao expediente costumeiro de trocar “comunismo” por “stalinismo”, usado para branquear a imagem do regime nas épocas subsequentes, mas mostra com muita clareza que, de um modo ou de outro, a mistura de violência assassina e mendacidade alucinante que caracterizou o stalinismo se conservou em ação em todos os países comunistas, muitas décadas depois da morte do ditador.
Padura, que nasceu e ainda mora em Cuba, publicando seus livros no México, viveu tudo isso de perto e colocou no personagem do narrador de “El Hombre que Amaba a los Perros” muito da sua experiência pessoal.
Hoje os brasileiros se espantam ante um governo que lhes rouba bilhões de reais enquanto, com a maior cara dura, continua posando de paladino da moralidade, e, rejeitado por noventa por cento da população, ainda se faz de porta-voz do “povo” contra a “elite”.
Se conhecessem algo da história do comunismo, como a trama urdida por Stalin para dar cabo de Trotski, entenderiam que a mendacidade psicopática, em proporções tão vastas que raiam o diabolismo puro e simples, não é uma invenção do PT: é inerente à mentalidade comunista em todas as épocas e lugares.
Os capítulos finais deste livro mostram o próprio assassino de Trotski, Ramon Mercader, consciente de haver jogado sua vida fora numa farsa demoníaca, concebida para fazer de Trotski, então um exilado sem dinheiro e quase sem seguidores, chutado de cá para lá por todos os governos do mundo, o todo-poderoso líder de uma conspiração global para derrubar o governo soviético com a ajuda simultânea – porca miséria! — dos nazistas e dos americanos.
Durante décadas, Mercader foi adestrado para odiar Trotski com todas as suas forças, só para descobrir, depois, que na realidade nada sabia contra ele além de balelas e invencionices absurdas e antinaturais, injetadas em sua cabeça com violência comparável à do golpe de picareta no crânio com que ele deu fim à existência da sua vítima.
Após ter ido parar na cadeia num dos muitos expurgos que eram rotina na política soviética, o próprio agente secreto que treinou e disciplinou a mão assassina de Mercader tem, na velhice, a mesma consciência de ter servido apenas aos caprichos insensatos de um ditador enlouquecido pelo medo, que não se acalmaria antes de haver eliminado da face da Terra todos os seus inimigos reais, hipotéticos, virtuais ou totalmente imaginários.
Especialmente significativa é uma personagem secundária, a mãe de Mercader, Caridad. Mulher frígida que o marido burguês corrompe para ver se desperta nela o desejo sexual, ela se entrega então a uma vida devassa e ao consumo de drogas, chegando a uma tentativa de suicídio.
Só emerge da depressão quando encontra uma saída existencial no comunismo e reestrutura sua personalidade com base nos valores da militância, tornando-se uma combatente fanática, odiando o marido e o capitalismo como se fossem uma só entidade e contribuindo decisivamente para fazer do filho um assassino a soldo de Stalin.
Eu não poderia ter encontrado melhor ilustração para o conceito do outsider como militante, que descrevi em artigo recente neste mesmo jornal (leia aqui).
No fim, o desencanto de Caridad é o mesmo de Ramón e de seu instrutor, com a diferença de que ela não tem nem mesmo a força deles para meditar sobre a insensatez do seu passado.
O vazio, a secura, a tristeza vã e desesperançada que são tudo o que resta a esses homens quando compreendem a pantomima tola e sangrenta da qual se fizeram servidores e agentes, são a mensagem derradeira legada pelo século XX à presente geração, aí incluídos os editores brasileiros incapazes de ouvi-la.
Não é preciso dizer que perseguições em massa, cruéis e insensatas, no mais puro modelo stalinista, aconteceram também na China comunista, em Cuba, no Vietnã, no Camboja, em todos os países-satélites da URSS e por toda parte onde a opinião comunista tenha saído do subsolo psicopático que lhe é natural e conquistado um lugar de respeito na sociedade.
O modelo universalizou-se. A única coisa que varia é a dosagem respectiva da violência e da mendacidade que a fórmula da loucura comunista assume em distintos lugares do mundo.
Nos países onde não tem força bastante para tomar o poder pelas armas, o comunismo apela à estratégia gramsciana do engodo geral e, por isso mesmo, como aconteceu no Brasil, rouba mais do que mata, pelo menos até que o produto do roubo, crescendo até dimensões oceânicas, lhe assegure a posse dos meios de matar.

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