Artigos

Como ler a mídia nacional

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de setembro de 2009

A maneira mais pérfida de desviar o impacto de uma afirmação verdadeira é atribuí-la a alguma motivação ideológica dada implicitamente como repugnante, de modo a não precisar entrar no mérito dos fatos alegados. O artigo do colunista da Folha de S. Paulo, Michael Kepp, “Demonizando um presidente pós-racial”, publicado no último dia 20, foi construído inteiramente com esse método. Repete-o nada menos de dez vezes em trinta e poucas linhas. Mesmo para um jornal que faz essas coisas com habitual naturalidade, é um recorde notável. Quando, de uns vinte anos para cá, os artigos de opinião na “grande mídia” começaram a ficar cada vez mais curtos, tornou-se claro, para mim, que isso não se devia ao alegado intuito de economia de espaço (uma desculpa que não fazia sentido numa época em que o número de páginas dos jornais aumentava a cada semana), mas a um propósito consciente de bloquear toda discussão séria, reduzindo os artigos a uma compactação de slogans e passando a favorecer, automaticamente, sempre o lado mais mentiroso. Quem quer que tenha estudado um pouco a técnica da argumentação conhece esta regra infalível: toda mentira tem o privilégio de poder expressar-se com mais brevidade do que a sua refutação. Em trinta linhas, você pode acusar um sujeito de trinta crimes imaginários. Ele precisará de pelo menos trezentas para provar que não os cometeu. Artigos longos, de análise refletida, como aqueles que você poderia ler nos anos 50, subscritos por um Otto Maria Capeaux, por um Júlio de Mesquita Filho, por um Álvaro Lins, tornaram-se proibitivos na mídia atual, substituídos pela mentira breve e contundente, sustentada tão somente numa rotulação infamante, oferecida como prova cabal.

Vejam o desempenho do senhor Kepp:

1. “Grupos de extrema direita começaram a sabotar a campanha do candidato presidencial do seu próprio partido em 2004, John Kerry, com anúncios na TV que contestavam o heroísmo militar dele na guerra do Vietnã.”

Não há “grupos de extrema direita” no Partido Democrata, uma agremiação onde o espectro ideológico vai da extrema esquerda ao centro-esquerda e pára por aí mesmo. Quem lançou a campanha foram os próprios soldados que estiveram em combate ao lado de Kerry, incluindo o médico que cuidara dos ferimentos dele com um simples band-aid. Para contestar várias dezenas de depoimentos concordantes não apareceu um só veterano que confirmasse o suposto heroísmo do candidato democrata. Desqualificar essa massa de depoimentos concordantes por meio da rotulação ideológica é um expediente que, nos EUA, mesmo com todo o esquerdismo vigente, arriscaria abalar o prestígio do Sr. Kepp. No Brasil, onde mora há vinte e seis anos, ele pode praticá-lo com a certeza de que a safadeza pueril será aceita como jornalismo normal e louvável.

2. “No fim de semana passado, grupos ultra-conservadores reuniram 75 mil manifestante em Washington em uma marcha em protesto contra os gastos do governo.” O mais breve exame das fotos da passeata mostra que ali havia, no mínimo, dez vezes mais gente do que isso. O Departamento de Parques, que observa essas coisas de perto, disse que foi a maior manifestação popular já ocorrida em Washington. Carimbar os manifestantes como “ultraconservadores” autoriza o sr. Kepp a mentir sobre o número deles.

3. “Cartazes de oposição ao plano de saúde mostravam Obama como curandeiro africano.” Foi o próprio Obama que tirou fotografia vestido de curandeiro africano. Segundo o Sr. Kepp, todos têm a obrigação de esconder essa foto para provar que não são racistas.

4. Segundo o Sr. Kepp, é puro racismo enxergar racismo nas inumeráveis expressões anti-brancas e anti-ocidentais espalhadas pelos dois livros do atual presidente, bem como no apoio que ele deu a racistas negros notórios como Louis Farrakhan ou Jeremiah Wright. Racismo mesmo, na opinião dele, é protestar contra os gastos estatais do governo Obama.

5. “As acusações de Wilson foram falsas e sem precedentes.”. O senador Joe Wilson não fez “acusações”: fez apenas uma, a de que Obama mentia ao afirmar em seu discurso no Congresso, como em muitas ocasiões anteriores, que seu plano de saúde não oferecia assistência médica gratuita aos imigrantes ilegais. De fato, o plano não promete explicitamente fazer isso: apenas não proíbe que se faça. Como é lógico que um direito não vetado em lei não pode ser negado a quem o reivindique, a assistência gratuita aos ilegais está obviamente garantida. Wilson foi mal educado, mas não mentiu.

6. “Nenhum legislador até então jamais havia gritado calúnias a um Presidente, nem mesmo a George W. Bush quando este mentiu ao Congresso para conseguir sua aprovação para a invasão do Iraque.” Essa afirmativa ilustra a própria conclusão do artigo do Sr. Kepp, segundo a qual “as campanhas difamatórias se baseiam… na tática aperfeiçoada por Joseph Goebbels” – a tática da mentira repetida. “Bush lied, people died” é claramente a mentira mais repetida da última década. De um lado, Bush não mentiu coisíssima nenhuma: apenas repassou ao congresso a informação recebida dos serviços de inteligência, na qual seus opositores na época acreditavam tanto quanto ele. De outro lado, essa informação, que falava das armas de destruição em massa estocadas por Sadam Husseim, não era de maneira alguma inexata. A lista dessas armas encontrada efetivamente no Iraque – reproduzida no livro de Richard Miniter, Disinformation –, é mais que suficiente para comprovar que elas de fato existiam, mesmo sem contar a parte que foi removida em tempo para a Síria. Apenas, essa informação jamais se condensou num slogan publicitário nem foi trombeteada ad nauseam por milhões de Kepps.

7. Durante as eleições presidenciais a cartada racial foi jogada milhares de vezes pela própria campanha obamista, embora ninguém, do outro lado, fizesse a menor insinuação quanto à cor da pele do candidato democrata. A presunção de racismo foi dada como prova de si mesma e usada abundantemente para inibir quaisquer críticas a Barack Obama. Isso está tão bem documentado que nem é preciso insistir no assunto. Também é certo que ninguém viu o menor sinal de racismo no boicote ao candidato conservador negro Alan Keyes – um negro de verdade e não um mulato diluído –, que acabou até saindo do Partido Republicano. Depois da eleição, o expediente de campanha continuou sendo usado, mas agora, por incrível que pareça, associado à imagem de Obama como “presidente pós-racial”, sem que o povão notasse a incongruência entre o esforço para criar uma imagem racialmente neutra do presidente e a insistência em chamar seus críticos de racistas – um caso típico de estimulação contraditória, tanto mais imperceptível quanto mais intensa. O Sr. Kepp mostra dominar perfeitamente a técnica ao chamar Obama de “presidente pós-racial” e, linhas depois, levar às ultimas conseqüências a exploração do fator “raça”, ao endossar a monstruosidade escrita pela colunista no New York Times, Maureen Dowd, segundo a qual a acusação lançada por Joe Wilson a Obama “continha uma insinuação racista não verbalizada: You lie, boy! – mais ou menos o equivalente a ‘você mente, garoto!’.” Primeiro, Wilson não disse “boy”. A gravação é muito clara. Segundo, “boy” não corresponde ao pejorativo “moleque”, e sim a “menino” em geral. Terceiro, vocês querem me dizer em que consiste uma “insinuação não verbalizada”?

8. “Em maio, grupos conservadores tacharam a americana, de origem porto-riquenha, Sonia Sotomayor, a juíza indicada por Obama para a Suprema Corte, de racista por ter dito que ‘uma mulher latina sábia, dotada da riqueza das suas experiências, normalmente, espero, chegará a uma conclusão melhor do que um homem branco que não viveu essa vida’.” A sra. Sotomayor não foi acusada de racismo por isso (seria mesmo um absurdo que o fosse), mas por ser membro da ONG La Raza (o nome já diz tudo), que prega a ocupação da Flórida, do Texas e da Califórnia pelo México e a expulsão de todos os cidadãos não latinos.

9. Para provar que a oposição conservadora a Obama é racista, Kepp lembra que o comentarista de TV Glenn Back juntou sua voz ao coro de protestos quando “Obama disse que um policial branco ‘agiu estupidamente’ ao prender o professor negro da universidade Harvard Henry Louis Gates Jr. na sua própria casa simplesmente porque Gates ficara indignado quando o policial exigira provas de que ele não estava tentando arrombar a residência.” A inversão aqui, chega ao limite do maravilhoso. O policial não exigiu “provas de que Gates não estava tentando arrombar a residência”, porque isso era justamente o que Gastes estava fazendo. O que ele exigiu foram provas de que a casa pertencia ao arrombador – exatamente o que o manual de instruções determina que qualquer policial no seu juízo perfeito faça em tais circunstâncias. O próprio Obama percebeu o vexame e tentou uma conciliação com o policial, ao qual só atribuíra motivos racistas por óbvia prevenção racista.

10. “A ironia dessa campanha de difamação é que, como presidente, Obama não fez até agora nada para promover o direito dos negros.” O que o Sr. Kepp não informa é que isso, obviamente, não prova que Obama não odeie os brancos: prova apenas que seu alegado amor pelos negros era um expediente publicitário, abandonado tão logo cumprida sua finalidade de campanha.

Não digo que sejam somente essas as mentiras patentes que o Sr. Kepp conseguiu quase miraculosamente comprimir em trinta linhas. Há mais algumas, mas são apenas variantes das mesmas. O que digo, sim, é que a análise dos artigos editoriais de maior destaque na Folha, no Globo ou no Estadão, jamais deixou de me mostrar a presença de truques semelhantes aos do Sr. Kepp, embora, em geral, não tantos por centímetro de coluna.

Imaginem, agora, o impacto de longo prazo exercido, sobre as mentes dos leitores, por esse bombardeio incessante, obsessivo, que só a análise longa e trabalhosa – inacessível, em geral, ao leitor comum – pode neutralizar. Que os próprios autores dessa patifaria institucionalizada citem com freqüência o método Goebbels é, com toda evidência, apenas uma autovacina preventiva contra a denúncia de que não há, em todo o território nacional, outros praticantes mais tenazes desse método do que eles próprios.

Honduras contra a mentira global

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de setembro de 2009

Se algo os acontecimentos recentes em Honduras confirmam, é aquilo que venho dizendo há anos: quem quer que, sem ser esquerdista, preste algum favorzinho aos esquerdistas, acaba sendo acusado por eles de fazer exatamente o contrário do que fez, de ser um direitista feroz e intolerante que só os persegue, maltrata e atemoriza.

Em 28 de junho, a Suprema Corte de Honduras determinou a prisão do presidente Manuel Zelaya por ter infringido a Constituição e ameaçado usar a força contra o poder legislativo. Os militares, em vez de executar a ordem, deixaram-se enternecer pelo desgraçado e permitiram que ele escapasse para a Costa Rica. Resultado: a esquerda mundial inteira os acusa de ter “expulsado” Zelaya, de ter dado um “golpe”, de ter “rompido a estabilidade das instituições”.

Se tivessem prendido o delinqüente e o levado a julgamento, a esquerda mundial poderia estar tão enfezada quanto está agora, mas não teria nenhum pretexto para dizer essas coisas. Teria de inventar outras mentiras, mais trabalhosas, menos persuasivas.

Não sei quantas décadas ou séculos de experiência e de sofrimento inútil a humanidade ainda precisará para compreender que indivíduos contaminados pela mentalidade revolucionária não são pessoas normais, confiáveis, das quais se possa esperar lealdade, gratidão, bondade ou acordo racional, mesmo em doses mínimas.

A história está repleta de casos de conservadores, católicos, protestantes, judeus, que arriscaram suas vidas para salvar comunistas perseguidos. Não consta dos anais do mundo um só episódio de comunista de carteirinha que tenha feito o mesmo por um reacionário, um só exemplo de radical islâmico que tenha arriscado o pescoço para livrar um infiel das garras dos aiatolás vingadores.

A mentalidade revolucionária não admite leis ou valores acima do poder revolucionário, não conhece caridade ou humanitarismo exceto como expedientes publicitários a serviço da revolução, não admite lealdade senão ao aparato revolucionário, não aceita a existência da verdade senão como simulacro de credibilidade da mentira revolucionária.

Com toda a evidência, é assim que funciona a mente dos srs. Luís Inácio Lula da Silva, Hugo Chávez, Marco Aurélio Garcia e demais próceres do Foro de São Paulo.

O sr. Lula acaba de dar mais um exemplo da sua mendacidade revolucionária infatigável, ao afirmar que o governo brasileiro nada sabia do retorno de Manuel Zelaya a Honduras, quando o próprio Zelaya confessa que foi tudo combinado com o sr. Marco Aurélio Garcia.

Colaboracionistas em profusão, espalhados pela mídia internacional, apressam-se em alardear que a presença do presidente criminoso na embaixada brasileira desestabiliza o regime hodurenho e o predispõe a concessões. Isso é pura guerra psicológica. Quem quer trégua não priva o inimigo de água e comida, nem atira nos agentes chavistas que o apóiam, camuflados de cidadãos hondurenhos. Quem está desestabilizada é a “ordem global”, que mostrou toda a sua fraqueza, todo o seu desespero, ao ficar provado que, para destruí-la, basta um povo pequeno e corajoso dizer “Não”.

Não acreditem em jornalistas que lhes apresentam a crise hondurenha como uma questão de aceitar ou rejeitar Zelaya na presidência. Esse problema nem sequer existe. Como presidente ou como cidadão, há uma ordem de prisão contra ele. Recolocá-lo no Palácio Presidencial é apenas garantir que ele irá para a cadeia com honras de chefe de Estado. Honduras não está lutando para se livrar de um político safado, mas para assegurar que a ordem legal e constitucional do país valha mais que a opinião de bandidos e tagarelas estrangeiros autonomeados “consenso internacional”.

Para lidar com essa gente, toda precaução é pouca, toda suspeita é modesta, toda conjeturação de motivos sórdidos corre o risco de ficar muito aquém da realidade. Os hondurenhos parecem ser o primeiro povo do mundo que percebeu isso.

A revolução globalista

Olavo de Carvalho

Digesto Econômico, setembro/outubro de 2009

Para quem quer que deseje se orientar na política de hoje – ou simplesmente compreender algo da história dos séculos passados –, nada é mais urgente do que obter alguma clareza quanto ao conceito de “revolução”. Tanto entre a opinião pública quanto na esfera dos estudos acadêmicos reina a maior confusão a respeito, pelo simples fato de que a idéia geral de revolução é formada quase sempre na base das analogias fortuitas e do empirismo cego, em vez de buscar os fatores estruturais profundos e permanentes que definem o movimento revolucionário como uma realidade contínua e avassaladora ao longo de pelo menos três séculos.

Só para dar um exemplo ilustre, o historiador Crane Brinton, em seu clássico The Anatomy of Revolution, busca extrair um conceito geral de revolução da comparação entre quatro grandes fatos históricos tidos nominalmente como revolucionários: as revoluções inglesa, americana, francesa e russa. O que há de comum entre esses quatro processos é que foram momentos de grande fermentação ideológica, resultando em mudanças substantivas do regime político. Bastaria isso para classificá-los uniformemente como “revoluções”? Só no sentido popular e impressionista da palavra. Embora não podendo, nas dimensões deste escrito, justificar todas as precauções conceptuais e metodológicas que me levaram a esta conclusão, o que tenho a observar é que as diferenças estruturais entre os dois primeiros e os dois últimos fenômenos estudados por Brinton são tão profundas que, apesar das suas aparências igualmente espetaculares e sangrentas, não cabe classificá-los sob o mesmo rótulo.

Só se pode falar legitimamente de “revolução” quando uma proposta de mutação integral da sociedade vem acompanhada da exigência da concentração do poder nas mãos de um grupo dirigente como meio de realizar essa mutação. Nesse sentido, jamais houve revoluções no mundo anglo-saxônico, exceto a de Cromwell, que fracassou, e a Reforma Anglicana, um caso muito particular que não cabe comentar aqui. Na Inglaterra, tanto a revolta dos nobres contra o rei em 1215 quanto a Revolução Gloriosa de 1688 buscaram antes a limitação do poder central do que a sua concentração. O mesmo aconteceu na América em 1786. E em nenhum desses três casos o grupo revolucionário tentou mudar a estrutura da sociedade ou os costumes estabelecidos, antes forçando o governo a conformar-se às tradições populares e ao direito consuetudinário. Que pode haver de comum entre esses processos, mais restauradores e corretivos do que revolucionários, e os casos da França e da Rússia, onde um grupo de iluminados, imbuídos do projeto de uma sociedade totalmente inédita em radical oposição com a anterior, toma o poder firmemente resolvido a transformar não somente o sistema de governo, mas a moral e a cultura, os usos e costumes, a mentalidade da população e até a natureza humana em geral?

Não, não houve revoluções no mundo anglo-saxônico e bastaria esse fato para explicar a preponderância mundial da Inglaterra e dos EUA nos últimos séculos. Se, além dos fatores estruturais que as definem – o projeto de mudança radical da sociedade e a concentração do poder como meio de realizá-lo –, algo há de comum entre todas as revoluções, é que elas enfraquecem e destroem as nações onde ocorrem, deixando atrás de si nada mais que um rastro de sangue e a nostalgia psicótica das ambições impossíveis. A França, antes de 1789, era o país mais rico e a potência dominante da Europa. A revolução inaugura o seu longo declínio, que hoje, com a invasão islâmica, alcança dimensões patéticas. A Rússia, após um arremedo de crescimento imperial artificialmente possibilitado pela ajuda americana, desmantelou-se numa terra-de-ninguém dominada por bandidos e pela corrupção irrefreável da sociedade. A China, após realizar o prodígio de matar de fome trinta milhões de pessoas numa só década, só se salvou ao renegar os princípios revolucionários que orientavam a sua economia e entregar-se, gostosamente, às abomináveis delícias do livre mercado. De Cuba, de Angola, do Vietnã e da Coréia do Norte, nem digo nada: são teatros de Grand Guignol, onde a violência estatal crônica não basta para esconder a miséria indescritível.

Todos os equívocos em torno da idéia de “revolução” vêm do prestígio associado a essa palavra como sinônimo de renovação e progresso, mas esse prestígio lhe advém precisamente do sucesso alcançado pelas “revoluções” inglesa e americana que, no sentido estrito e técnico com que emprego essa palavra, não foram revoluções de maneira alguma. Essa mesma ilusão semântica impede o observador ingênuo – e incluo nisso boa parte da classe acadêmica especializada – de enxergar a revolução onde ela acontece sob a camuflagem de transmutações lentas e aparentemente pacíficas, como, por exemplo, a implantação do governo mundial que hoje se desenrola ante os olhos cegos das massas atônitas.

O critério distintivo suficiente para eliminar todas as hesitações e equívocos é sempre o mesmo: com ou sem transmutações súbitas e espetaculares, com ou sem violência insurrecional ou governamental, com ou sem discursos de acusação histéricos e matança geral dos adversários, uma revolução está presente sempre que esteja em ascensão ou em curso de implantação um projeto de transformação profunda da sociedade, se não da humanidade inteira, por meio da concentração de poder.

É por não compreenderem isso que muitas vezes as correntes liberais e conservadoras, opondo-se aos aspectos mais vistosos e repugnantes de algum processo revolucionário, acabam por fomentá-lo inconscientemente sob algum outro de seus aspectos, cuja periculosidade lhes escape no momento. No Brasil de hoje, a concentração exclusiva nos males do petismo, do MST e similares pode levar liberais e conservadores a cortejar certos “movimentos sociais”, na ilusão de poder explorá-los eleitoralmente. O que aí escapa à visão desses falsos espertos é que tais movimentos, ao menos a longo prazo, desempenham na implantação da nova ordem mundial socialista um papel ainda mais decisivo que o da esquerda nominalmente radical.

Outra ilusão perigosa é a de crer que o advento da administração planetária é uma fatalidade histórica inevitável. A facilidade com que a pequena Honduras quebrou as pernas do gigante mundialista mostra que, ao menos por enquanto, o poder desse monstrengo se constitui apenas de um blefe publicitário monumental. É da natureza de todo blefe extrair sua substância vital da crença fictícia que consegue inocular em suas vítimas. Com grande freqüência vejo liberais e conservadores repetindo os slogansmais estúpidos do globalismo, como por exemplo o de que certos problemas – narcotráfico, pedofilia, etc. – não podem ser enfrentados em escala local, requerendo antes a intervenção de uma autoridade global. O contrasenso dessa afirmativa é tão patente que só um estado geral de sonsice hipnótica pode explicar que ela desfrute de alguma credibilidade. Aristóteles, Descartes e Leibniz ensinavam que, quando você tem um problema grande, a melhor maneira de resolvê-lo é subdividi-lo em unidades menores. A retórica globalista nada pode contra essa regra de método. Ampliar a escala de um problema jamais pode ser um bom meio de enfrentá-lo. A experiência de certas cidades americanas, que praticamente eliminaram a criminalidade de seus territórios usando apenas seus recursos locais, é a melhor prova de que, em vez de ampliar, é preciso diminuir a escala, subdividir o poder, e enfrentar os males na dimensão do contato direto e local em vez de deixar-se embriagar pela grandeza das ambições globais.

Que o globalismo é um processo revolucionário, não há como negar. E é o processo mais vasto e ambicioso de todos. Ele abrange a mutação radical não só das estruturas de poder, mas da sociedade, da educação, da moral, e até das reações mais íntimas da alma humana. É um projeto civilizacional completo e sua demanda de poder é a mais alta e voraz que já se viu. Tantos são os aspectos que o compõem, tal a multiplicidade de movimentos que ele abrange, que sua própria unidade escapa ao horizonte de visão de muitos liberais e conservadores, levando-os a tomar decisões desastradas e suicidas no momento mesmo em que se esforçam para deter o avanço da “esquerda”. A idéia do livre comércio, por exemplo, que é tão cara ao conservadorismo tradicional (e até a mim mesmo), tem sido usada como instrumento para destruir as soberanias nacionais e construir sobre suas ruínas um onipotente Leviatã universal. Um princípio certo sempre pode ser usado da maneira errada. Se nos apegamos à letra do princípio, sem reparar nas ambigüidades estratégicas e geopolíticas envolvidas na sua aplicação, contribuímos para que a idéia criada para ser instrumento da liberdade se torne uma ferramenta para a construção da tirania.

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