Apostilas

Conhecimento e presença (Ser e conhecer – 2)

Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

27 de setembro de 1999

 

Se denominarmos “conhecimento” apenas o conjunto de dados e relações que um homem carrega consigo e tem à sua pronta disposição num dado momento da sua existência, o conhecimento será não apenas drasticamente limitado, mas informe e flutuante. Por isto incluímos nessa noção o conjunto mais amplo das informações registradas e disseminadas no seu meio social, sem as quais ele pouco poderia fazer por seus próprios recursos.

Mas esse conjunto de registros, por sua vez, subentende a existência do meio físico, isto é, não somente dos materiais onde se imprimem esses registros, mas também do mundo de “objetos” a que eles se referem e com os quais se relacionam de algum modo.

A noção de “conhecimento” como conteúdo da memória e da consciência humanas torna-se totalmente inviável se não admitirmos que o conhecimento, sob a forma de registro, existe também fora delas. Mais ainda, não podemos admitir que existam somente os registros feitos pelo homem, já que todo material que possa servir de tábua onde se inscrevam esses registros só pode se prestar a esse papel precisamente porque, na sua natureza e na sua forma intrínseca, ele traz os seus registros próprios, adequados a esse fim: não se escreve na água nem se produz uma nota musical soprando sobre uma rocha compacta. Registro é todo traço que especifica e singulariza um ente qualquer. Todo ente traz em si uma multidão de registros, alguns inerentes à forma da sua espécie, como por exemplo a composição química e mineralógica de uma pedra ou a fisiologia de um gato, outros decorrentes de sua interação com o ambiente em torno — como por exemplo as marcas da erosão na pedra ou o estado de saúde do gato considerado num momento qualquer da sua existência individual. Entre estes últimos, destacam-se os registros que nele foram impressos pelos seres humanos com a finalidade de torná-lo um suporte físico dos atos de reconhecimento e memória. A pedra esculpida traz em si os dados de sua composição físico-química e mineralógica, aos quais se superpõem as marcas da erosão e os sinais do trabalho do escultor. Ao contemplar a escultura, o espectador presta atenção consciente apenas às qualidades estéticas da forma esculpida e à aparência visível imediata da pedra que lhes serve de suporte, geralmente sem atentar para a composição íntima, física, química e mineralógica, a qual, no entanto, determina a aptidão da pedra para servir de suporte às qualidades que lhe são subseqüentemente superpostas, seja pela natureza, seja pelo escultor. Até que ponto essas qualidades íntimas da pedra são “indiferentes” ao efeito estético obtido? A resposta depende unicamente da amplitude da concepção do escultor, que tanto pode ter desejado imprimir uma forma significativa a um material qualquer, pronto a fazer o mesmo sobre um outro material se este estivesse à sua disposição, mas pode também ter desejado estabelecer uma ponte entre as qualidades da própria pedra e as da forma impressa. Quem leia o famoso parágrafo de Goethe sobre o granito terá uma idéia de quanto uma pedra, por si, pode sugerir determinadas qualidades esculturais e arquitetônicas. É só por uma comodidade prática que estabelecemos um limite entre as qualidades da forma intencional e as do próprio suporte, fisicamente considerado. Tudo são registros, e a amplitude maior ou menor do nosso horizonte de atenção só modifica a visão que temos de um determinado ente, e não o conjunto objetivo dos registros que estão nele.

Cada um de nós, enquanto existente, traz em si uma multidão de registros, aos quais se acrescentam os resultantes da interação com o meio e os auto-adquiridos (hábitos, por exemplo, ou a história dos nossos atos voluntários). Nessa multidão, onde começa o puro “conhecer” e onde termina o puro “ser”? Basta formularmos esta pergunta para nos darmos conta, de chofre, de que essa fronteira não existe. O puro “ser” só pode ser definido como o registro que está presente mas é desconhecido. Mas um traço meu qualquer que me seja desconhecido não o é mais, nem menos, do que um livro que esteja na minha biblioteca há anos sem que eu o tenha lido. Quando digo portanto que o livro “é conhecimento” e o traço desconhecido do meu ser é “pura existência”, é apenas porque os registros que constam do livro foram postos lá por um ser humano, o qual a fortiori os conhecia, ao passo que os registros desconhecidos do meu corpo nunca foram — ao menos assim me parece — conhecidos por ninguém. Mas esta distinção é bem ilusória, ao menos quando tomada ao pé da letra. No livro há decerto muitas qualidades objetivamente presentes que podem ter escapado a todos os seus leitores e mesmo ao próprio autor. Elas serão então “conhecimento” ou “puro ser”? No primeiro caso, terei de admitir um “conhecimento desconhecido”, no segundo terei de negar que os registros escritos sejam conhecimento. Por outro lado, até que ponto posso declarar que o traço desconhecido presente no meu corpo não é de modo algum conhecimento? Qualquer que seja a informação contida nesse “x”, ela não pode ser absolutamente contraditória com o meu corpo considerado enquanto sistema e organismo, pois é parte dele e se integra, de algum modo, no seu funcionamento, sendo portanto um complemento “inconsciente” das partes dele que operam “conscientemente”. Esse “x”, portanto, além de estar bem integrado num sistema do qual amplas parcelas são conhecidas, está aí à minha disposição para ser conhecido de um momento para outro, assim como o livro que, na estante, espera que eu o leia. O corpo é registro, o livro é registro, os entes todos à minha volta são registros: transitam incessantemente do ser ao conhecer, do conhecer ao ser, de tal modo que a distinção destes dois momentos é antes ocasional e funcional do que outra coisa.

Por isto mesmo a sensação tem sido o pons asinorum de todas as teorias do conhecimento, que, não sendo teorias do ser e sim do conhecer apenas, têm de encontrar um momento, uma passagem, um salto onde o ser se transmute em conhecer, e realmente jamais conseguem fazê-lo, pela simples razão de que esse salto é apenas uma mudança de ponto de vista e o ser não poderia transmutar-se em conhecer se já não fosse, em si e por si, o conhecer, apenas visto pelo avesso: nada poderia ser objeto de conhecimento se não contivesse registros, e nada pode conter registro sem ser, já, conhecimento “em potência”. Mas que esta potência passe ao ato num momento determinado, desde o ponto de vista de um determinado sujeito cognoscente, não quer dizer que este seja o único ou o primeiro a efetivá-la: o registro que me é desconhecido e que agora se torna conhecido já pode ter sido transmitido a milhares de outros entes — humanos ou não — que entraram em contato com o portador desse registro ontem ou um milhão de anos atrás. Não, o “puro ser” não existe: todo ser é conhecido, pois algo de seus registros foi transmitido a outros seres.

Há, portanto, uma forma de conhecer que consiste, simplesmente, em ser. É ser portador de registros e, de algum modo, receptor deles (só não sendo receptor o ente impossível que em nada se relacionasse consigo mesmo e fosse constituído de pura auto-ausência1).

A essa forma de conhecer que consiste em ser, denomino, sumariamente, presença. A presença é o fundamento de todas as demais modalidades de conhecimento. Todas as práticas de concentração, meditação, recolhimento, etc., criadas pelos homens espirituais de todas as épocas têm como finalidade primeira alcançar e conservar o senso da presença. O senso da presença é a plena assunção de um ente por si mesmo, na totalidade dos seus registros e na sua modalidade específica e particular de existência.

Peço a fineza de não confundir o senso da presença com algum tipo de “conhecimento inconsciente”, “instinto”, “mistério indizível” e coisas tais, já que as distinções entre consciente e inconsciente, instintivo e aprendido, dizível e indizível, etc., só se aplicam a formas derivadas e secundárias de conhecimento, que constituem o orbe daquilo que a rigor se denomina “a mente”. As distinções internas do mental não se aplicam ao senso da presença pela simples razão de que este abrange o mental como um conjunto de registros entre outros conjuntos de registros que compõem a nossa presença.

O senso da presença é o ponto de interseção onde todos esses pares de opostos se reúnem e de onde partem para constituir as várias modalidades do conhecimento mental. Ele não poderia, portanto, caber nas categorias que estas determinam.

 

NOTAS

  1. Neste sentido — e não no de Hegel — o puro ser é idêntico ao puro nada, pois a expressão puro ser designa aí o desconhecido absolutamente incognoscível; incognoscível até para si mesmo.

 

A unidade de sujeito e objeto

Olavo de Carvalho

Resumo do argumento fundamental contra o subjetivismo moderno

Seminário de Filosofia, 15 de julho de 1999.

O ciclo filosófico moderno começa com o giro de atenção que Descartes imprime ao pensamento, desviando-o da certeza “ingênua” do mundo exterior para o terreno supostamente firme do cogito. Daí por diante, o sujeito, considerado enquanto alma solitária que dialoga consigo mesma num ambiente vazio de seres e coisas, será tomado como o ponto arquimédico de toda meditação filosófica. O sujeito solitário está aí ligado diretamente à universalidade de Deus, e, garantido por esta, pode extrair de si mesmo, por dedução, a ciência inteira de Deus, do cosmos e dele próprio. É o que fará Spinoza, levando às últimas conseqüências o dedutivismo solitário e o desprezo pela experiência do mundo exterior.

É verdade que, em reação a esse extremismo solipsístico, surge na Inglaterra a escola dita empirista, que, de Locke a Hume, não admitirá outro ponto de apoio senão as sensações, consideradas atomísticamente, de cuja somatória indutiva (o único procedimento admitido) não se poderá obter a certeza de verdades universais ou mesmo a da unidade do próprio eu pensante.

Aparentemente, esta escola rejeita o primado do eu e nos coloca, portanto, fora do domínio cartesiano. Mas isto é uma impressão falsa. Na verdade, o empirismo não enfoca os objetos do mundo exterior senão como ocasião das sensações; e como as sensações se dão no sujeito, isso resulta em nunca encarar esses objetos diretamente, senão sempre pelo viés do sujeito.

O subjetivismo é a marca de toda a filosofia dita moderna, pouco diferindo nisto as duas escolas rivais, racionalista e empirista.

Tanto assim é que a confluência final dessas duas escolas, realizada na filosofia crítica de Kant, resulta em fazer do sujeito, por intermédio das formas a priori, o molde e razão da própria unidade do mundo. O objeto enquanto tal recua para a distância inatingível da “coisa-em-si”, definida, por sua vez, como aquilo que o objeto é independentemente do que o sujeito sabe dele, isto é, definida, ainda uma vez, pela sua dependência (ainda que negativa) do sujeito.

A prioridade do sujeito em relação ao objeto é, pois, a constante inabalável do ciclo filosófico moderno. Se quisermos portanto ir um passo além, só nos restam dois caminhos. O primeiro é negar o sujeito mesmo, esfarelando até mesmo a unidade puramente subjetiva que nos foi legada por Kant. Este é o caminho seguido pela psicanálise, pela filosofia analítica, pelo desconstrucionismo. O segundo caminho é restaurar o estatuto ontológico do objeto. Husserl tentou este caminho, mas, ainda prisioneiro do cartesianismo, voltou a tomar como ponto de partida a consciência solipsística e nunca mais pôde se livrar das conseqüências inapelavelmente idealistas a que este enfoque conduz.

O caminho para a restauração do objeto deve, no meu entender, tomar uma direção radicalmente diversa.

Esse caminho consiste em negar desde logo a prioridade gnoseológica do sujeito mediante a simples constatação de que ele não poderia ser sujeito se não fosse também objeto. Para prosseguirmos nesta linha de considerações é necessário no entanto definir desde logo o que se entende por sujeito e por objeto, e as definições que proponho são as mais simples que se pode imaginar: sujeito (do conhecimento) é o que recebe informações, objeto é aquilo que as emite, ao menos no entender do sujeito. Assim definidos os termos, compreendemos de imediato que o sujeito, considerado apenas e estritamente enquanto sujeito, distinto e separado de todo objeto, nada poderia saber, pois não teria nem a si próprio como objeto do seu conhecimento. O ego cogitans cartesiano não pode ser, pois, puro sujeito, na medida em que algo sabe de si e tem portanto a si próprio como objeto.

De modo mais geral, nenhum puro sujeito é concebível, pois este somente receberia informações sem emiti-las nunca, e portanto nada poderia saber a respeito do que quer que fosse, nem mesmo a respeito de si próprio, e, no instante mesmo em que se definisse como puro sujeito cognoscente estaria afirmando eo ipso que nada conhece, não podendo, pois, ser sujeito cognoscente.

De outro lado, e complementarmente, é inconcebível o puro objeto, que apenas emitisse informações sem receber nenhuma, pois isto equivaleria a um puro agir sem qualquer feed back, o que é contraditório com a noção mesma de continuidade da ação no tempo e só poderia cumprir-se na hipótese, intrinsecamente absurda, de uma ação sem duração.

Ora, se o sujeito cognoscente não pode ser o que é sem ser também objeto, e se de outro lado o objeto não pode ser um radical não-sujeito, a conclusão fatal é que a condição de sujeito e a de objeto se exigem reciprocamente e não se separam senãoin verbis. Na melhor das hipóteses, sujeito e objeto são nomes de funções que, porém, para ser exercidas, se requerem mutuamente não só no sujeito como também no objeto, possuindo cada um deles ambas as funções e só podendo ser sujeito e objeto um para o outro porque cada um deles é em siambas as coisas.

Até o momento, todas as tentativas de reunir sujeito e objeto — como por exemplo no realismo escolástico ou na fenomenologia — tentaram fazê-lo na relação entre um sujeito dado e um objeto dado. Mas é evidente que esta união não se poderia realizar no plano da mera relação se já não estivesse dada na constituição mesma do sujeito (que é inseparavelmente objeto), bem como na do objeto (que é inseparavelmente sujeito).

Ora, toda dúvida cética com relação ao conhecimento humano surge precisamente da hipótese de um hiato entre sujeito e objeto, hipótese que, não podendo ser provada, não pode também ser contestada a partir do momento em que, no estudo dessa relação, se tome por ponto de partida o sujeito cognoscente em estado puro (solipsístico) e se tomem os termos da relação como se fossem, um, o puro sujeito cognoscente, o outro, o puro objeto conhecido. Não há aqui como saltar o abismo entre a representação, que estará sempre e fatalmente no sujeito, e o objeto representado que estará sempre e por hipótese fora dele.

Mas, se compreendemos que a união de sujeito e objeto não deve ser buscada na relação e sim, antes dela, na constituição de cada um deles — ou seja, nas constituições respectivas de dois entes que são, cada um por si, inseparavelmente sujeitos e objetos —, então compreendemos também que uma união que está na constituição mesma de um ente não pode ser desfeita pela simples relação que ele contraia com um outro ente; e que, ao contrário, esta relação não pode fazer senão manifestar, pela reciprocidade das informações emitidas e recebidas, a união indissolúvel de sujeito e objeto, agora considerada não em cada um desses entes tomado separadamente, mas na inter-relação do subjetivo-objetivo de um com o subjetivo-objetivo de outro. Esta relação é o que denominamos conhecimento, e ela é essencialmente união de sujeito e objeto, não cabendo operar sobre ela a disjunção céptica senão in verbis. Eis aí, de um relance, toda dúvida céptica reduzida a mero jogo de palavras. De quebra, eis aí derrubadas para sempre as muralhas da prisão subjetivista e, junto com elas, as colunas do palácio kantiano.

Que aqueles que têm olhos para ver consigam perceber as tremendas conseqüências filosóficas dessas constações, e que compreendam residir aí o verdadeiro princípio de toda ciência.

 

Quem come quem

Texto original. Distribuído aos alunos do Seminário de Filosofia em 12 de junho de 1999.

A luta pela “identidade nacional” na cultura brasileira tem sido uma longa comédia de erros. Enquanto nossos vizinhos buscavam sabiamente fortalecer os laços que os uniam à cultura hispânica de origem, lutávamos obsessivamente para cortar toda nossa raiz lusitana. Se é verdade que “pelos frutos os conhecereis”, está na hora de admitir que apostamos no cavalo errado. De um lado, há perfeita continuidade de Perez Galdós a Jorge Luís Borges, de Unamuno a Octavio Paz, enquanto entre nossos literatos (para não falar de estudantes de letras) não se encontrará um só que, lendo Camilo Castelo Branco, não esgasgue a cada linha, intimidado por um vocabulário que com apenas um século de idade se tornou impenetrável mistério antediluviano. De outro lado, o idioma espanhol se afirma poderosamente como língua de cultura mundial, enquanto o português vai perdendo terreno aqui dentro mesmo, acossado pelo barbarismo midiático, manietado pelos fiscais politicamente corretos, açoitado pelos feitores da incorreção obrigatória.

Um efeito cíclico da nossa obsessão identitária é que, quanto mais nos afastamos da nossa raiz autêntica lusitana, mais temos de tomar emprestada a seiva alheia, seja francesa ou americana, e mais a nossa sonhada autenticidade se torna uma caricatura do estrangeiro. E o motivo disto é bem evidente: recusando-nos a desenvolver formas e estilos a partir de uma tradição lingüística própria, não nos resta alternativa senão rebaixar-nos a fornecedores de matéria-prima. Já no Romantismo, nós entrávamos com os papagaios e os coqueiros, Chateaubriand com a fórmula literária. Ora, em literatura, a forma é tudo: cor local, temas, cenários e documentarismo lingüístico contribuem menos para definir a nacionalidade de uma obra do que o faz a forma interna, esta sim, inconfundivelmente americana ou russa, inglesa ou lusa. A narrativa ágil e quase jornalística dos romances de Hemingway é sempre americana, quer a história se passe em Paris ou se adorne de acento espanhol. Imitada em francês, em malaio ou em urdu, permanece americana, pela força da matriz lingüistica onde foi gerada como solução americana para problemas expressivos americanos. Mais nos valeria, pois, ter desenvolvido a novela camiliana, mesmo que fosse em histórias passadas na África ou no planeta Marte, do que adaptar os temas nacionais ao modelo proustiano ou ao realismo socialista, ainda que temperados de gíria baiana ou mineira. O primado da forma, a sujeição da matéria, são leis inescapáveis, em literatura como em tudo o mais: “Quando o coelho come alface, é a alface que vira coelho, não o coelho que vira alface”, resume Jean Piaget. Cobras e índios no molde literário de Apollinare não são cultura brasileira: são o delírio de um turista francês, intoxicado de cauim. O segredo da brasilidade autêntica do teatro de Ariano Suassuna não está nos temas, comuns a tantas obras epidermicamente nacionalistas, nem na imitação da linguagem popular, obrigação dogmática que se tornou cacoete: está em que a fórmula estrutural de suas peças não se inspirou em Sartre ou Brecht, e sim nos autos medievais lusitanos. Suassuna não é brasileiro porque come coco, mas porque digere a fruta local no estômago da tradição lusa. A forma é tudo. E um candomblé na Sorbonne não é sincretismo brasileiro: é a antropologia francesa engolindo o Brasil.

Mais fez pela brasilidade do romance um Machado de Assis, criando com assunto urbano e em português castiço a fórmula inédita das Memórias Póstumas (não há por que exgerar a influência de Sterne), do que dezenas de imitadores de Zola narrando histórias de escravos com sintaxe de cangaceiro. Uma nova fórmula vale mil assuntos. Ser brasileiro, para um romancista, é integrar a experiência — local ou mundial, pouco importa — numa chave intelectual e estética criada por nós segundo as nossas necessidades, e não integrar materiais locais e trejeitos lingüísticos regionais numa tradição narrativa francesa ou inglesa. É uma simples questão de quem come quem.

O protesto de Evaldo Cabral de Melo, de que só povos complexados se preocupam com a própria identidade, pode ser aceito como um exagero corretivo, mas continua exagero. A obsessão germanizante de um povo em luta com o complexo de inferioridade gerou Hermann e Dorothea e a filosofia de Fichte, Schelling e Hegel. E a afirmação xenófoba do russismo contra a hegemonia franco-germânica produziu Dostoiévski, Soloviev e Lossky. Abençoada neurose!

Nosso erro não está em buscar uma identidade. Está em três fontes de engano, nas quais bebemos compulsivamente há mais de um século. Primeira: revoltamo-nos sempre contra o dominador errado. Escravos da Inglaterra, continuávamos a nos bater contra o extinto domínio português. Intoxicados de francesismo, esforçávamo-nos por expelir de nosso ventre os últimos resíduos da herança portuguesa. E hoje, paralisados sob as patas do império mundial anglófono, encenamos ainda um ridículo Ersatz de rebeldia, não anti-anglo-saxônica e sim antilusitana, jogando bombas ideológicas contra a “língua dos dominadores”, como se o FMI fosse presidido por Cândido de Figueiredo e a Gramática Metódica de Napoleão Mendes de Almeida fosse a Carta da ONU. Vista sob esse prisma, nossa pretensa busca de independência não é senão afetação e disfarce para encobrir nosso compulsivo puxa-saquismo, nossa incoercível devoção ao poder mais forte, nossa renitente hipnose de botocudos ante os prestígios internacionais do momento.

A segunda coisa: acreditamos demais na mágica besta do popular, do local, do costumeiro e corriqueiro. Achamos que falando de coisinhas do nosso dia a dia e imitando a fala do povo seremos nacionais, quando a força da criação nacional não está na sua matéria, muito menos no populismo do seu estilo, e sim na originalidade das soluções estéticas e intelectuais que, uma vez bem sucedidas, se transformam em soluções e modelos para outros escritores de outras nações. Dostoiévski não representa o gênio russo porque fala da Rússia ou porque imita a fala dos russos, mas porque inventou, desde a Rússia, um sistema de enfoques narrativos que desde então se tornou necessário para todos nós, seja para falarmos da Rússia, seja de nós mesmos. A originalidade de uma literatura nacional é enfim uma só e mesma coisa que a originalidade criativa de seus escritores, a qual por sua vez não é senão a capacidade de dar respostas sérias a ansiedades autênticas. E, quando isto falta, não há documentarismo, populismo ou automacaquice lingüística que o substitua.

A terceira fonte de engano é a perpétua confusão que fazemos entre o universal e o atual. Achamos que, para integrar-nos na cultura mundial, temos de acompanhar o debate que se desenrola entre os povos mais ricos e supostamente mais cultos. Nunca nos ocorre a hipótese de que, no curso desse debate, esses povos possam ter perdido o fio da sua própria tradição cultural, de que possam estar reduzidos à mais profunda incompreensão de si mesmos, de que possam estar mergulhados numa inconsciência que só um maluco suicida desejaria imitar. Tomamos sempre os povos importantes de hoje como se fossem os únicos intérpretes autorizados da tradição ocidental (para não dizer mundial), e nos recusamos a lançar um olhar direto e sem fiscais sobre um passado que eles mesmos, tantas vezes, confessam já não compreender mais. Quem nos garante que, examinando por nossa conta a antigüidade greco-romana, a cristandade medieval, a remota herança dos povos orientais, não seremos capazes de descobrir aí certos tesouros que foram esquecidos pelo establishmentcultural euro-ianque ou que mesmo escaparam completamente ao seu horizonte de visão? Quem, que autoridade, que dogma inabalável nos reduz à condição de herdeiros indiretos que só podem ler Marco Aurélio com os olhos de Renan, Parmênides com os de Heidegger ou Aristóteles com os de Jaeger? Quem nos arrebata o privilégio de desfrutar diretamente de uma herança que não pertence só aos povos ricos e que os povos ricos tantas vezes desprezaram, traíram, aviltaram e perderam? Quem nos assegura que a linha de evolução intelectual da Europa moderna foi a única ou a melhor possível que poderia ter-se desenvolvido a partir do legado medieval e antigo? Por que embarcar na paralisante suposição apriorística de que não podemos descobrir aí novos e inéditos desenvolvimentos? Por que fazer da história intelectual européia o modelo paradigmático e inescapável da sucessão dos tempos? Por que repetir, como um disco rachado, que as coisas não poderiam ter sido de outro modo e recusar-nos a experimentar outros modos possíveis? Por que não podemos escandalizar e chacoalhar a empáfia dos usurpadores, lendo Heidegger através de Parmênides, Nietzsche através de Sócrates, a modernidade através da Idade Média? Por que não podemos, em vez de medir o passado com a régua dos senhores do dia, julgar os senhores do dia à luz das sementes cujo máximo e perfeito desenvolvimento eles, sem a mínima prova, asseguram representar? Por que não nos atravemos a provar que as antigas sementes, plantadas em terra nova, podem dar melhores e mais doces frutos do que as ideologias européias, o comunismo, o fascismo, duas guerras mundiais e a presente degradação intelectual do mundo?

Não fomos só nós que caímos na esparrela de abdicar de uma herança que nos pertence. Os portugueses, inferiorizados por não acompanhar pari passu o pensamento moderno, acabaram se esquecendo daqueles fantásticos filósofos de Coimbra, mestres de Leibniz, que em pleno século XVI já pensavam em economia de mercado e física probabilística, saltando três séculos sobre a ilusão mecanicista cujo prestígio, tão invejado pelos ìluministas lusos, só fez atrasar o desenvolvimento das ciências e inspirar, na política, os frutos mais letais do estatismo centralizador. Até hoje Portugal, como um príncipe bêbado que se imaginasse mendigo, atribui suas desventuras ao fato de não ter tido seu Voltaire ou seu Rousseau, quando seu único erro foi o de esquecer-se de si, o de não conseguir olhar seu próprio passado senão no espelho enganoso da modernidade alheia.

Por ironia, justamente nisso continuamos imitando servilmente Portugal. Iludidos pelo dogma de que o presente abrange todo o passado — quando por definição nenhum conjunto de fatos esgota o possível —, recusamo-nos a receber o legado das grandes épocas e continuamos mendigando às portas da mediocridade européia (e americana) atual. Barramos assim nosso acesso a uma verdadeira universalidade e continuamos nos agitando em vão na falsa alternativa cíclica do estrangeirismo e do localismo, ora em formato puro, ora ressurgida sob o disfarce do elitismo e do populismo.

Reincide no engano —só para dar um exemplo recente — o livro de Marcos Bagno, Preconceito Lingüístico. O Que É, Como Se Faz (1), ao assumir a defesa do mais entrópico laissez-faire gramatical contra toda tentativa de conservar a unidade da norma culta, abominada como mecanismo de exclusão social e opressão dos pobrezinhos. Adornando de terminologia técnica uma argumentação que no fundo não passa do habitual apelo ao ressentimento populista contra os adeptos do purismo vernáculo, supostamente também senhores do capital — ai, meu Sacconi! —, o autor nem de longe dá sinal de perceber que, afrouxada a norma portuguesa, o que haverá de predominar não será o democratismo igualitarista das falas populares, autoneutralizantes por sua multiplicidade mesma, e sim a influência ordenadora da norma anglo-americana, ocupando substitutivamente — e usurpatoriamente — o lugar da regra vernácula. Isso aliás já vem acontecendo, como se vê pela alarmante disseminação do uso de palavras portuguesas montadas segundo uma sintaxe inglesa — “amanhã estarei indo viajar” —, o que já não é mais a corriqueira assimilação de vocábulos estrangeiros e sim precisamente o contrário de uma assimilação: é uma adaptação do material nacional à forma dominante estrangeira, é ser assimilado, é fazer o papel da alface na fisiologia do coelho. Toda cultura nacional é um vasto sistema de incorporações, no qual manifestações isoladas e locais vão se integrando numa unidade superior, e isto acontece com a língua tanto quanto com as idéias. Se, no topo, esse movimento não encontra um critério de unidade que lhe seja próprio, ele logo se amolda a um de fora, preferindo antes ser assimilado do que voltar à dispersão de onde partiu. Se o prof. Bagno fosse um agente consciente do imperialismo, pretendendo dissolver a nossa unidade lingüistica para lhe sobrepor a americana, seu livro seria obra de inteligência, mista de maquiavelismo. Mas não: ele é apenas mais um esquerdista doido, desses que, ansiosos para expressar sua miúda revolta imediatista e cega, não sabem a quem servem em última instância e aliás não querem nem saber: falam o que lhes dá na telha e, de tempos em tempos, constatam, mais revoltados ainda, que tudo deu errado e seu mundo caiu.

Para cúmulo de inconsciência, o prof. Bagno, citando indevidamente Aristóteles, proclama que sua obra é política, quando a política para o Estagirita é o cuidado do bem comum, isto é, a vigilância sobre os rumos da sociedade como um todo, e nunca a adesão parcialista a exigências de grupos ou classes, defendidas como se valessem por si e sem o mínimo exame das conseqüências que seu atendimento possa produzir sobre o corpo da sociedade integral. Para os meninos da Febem ou para o lavrador de Ponta Grossa, pode ser bom ou pelo menos cômodo, a curto prazo, que os deixem escrever como falam, sem subjugá-los à uniformidade da norma. Subjetivamente, eles talvez se sintam, assim, menos excluídos. Mas, objetivamente, aí sim é que estarão excluídos, aprisionados na sua particularidade e sem acesso à conversação das classes cultas. Tudo depende de saber se preferimos enfraquecê-los pela lisonja ou fortalecê-los pela disciplina. Há nisso uma escolha moral que os amigos do povo preferem não enxergar. E se, levando as opiniões do prof. Bagno às últimas conseqüências, as próprias classes cultas desistirem da norma unitária e, para não passar por preconceituosas ante o olhar malicioso dos ressentidos, adotarem como obrigatória a entropia populista, então das duas uma: ou a entropia arrastará na sua voragem o pouco de possibilidade de diálogo racional que ainda resta neste país, ou então uma norma substitutiva acabará por se impor, e ela certamente virá da rede das telecomunicações, cujo idioma e padrão é o inglês. Qualquer das duas coisas será indiscutivelmente boa, mas para os Estados Unidos. E, se me perguntarem se o que é bom para os Estados Unidos não é bom para o Brasil, direi, de novo, que é uma simples questão de quem come quem. (2)

NOTAS

(1) São Paulo, Loyola, 1999.

(2) Erros idênticos aos do Prof. Bagno já podiam ser encontrados, com um ano de antecedência, em Por Que (Não) Ensinar Gramática na Escola, de Sírio Possenti, professor da Unicamp (Campinas, Mercado de Letras, 2ª impressão, 1998. As idéias de Bagnos e Possentis vêm fazendo as cabeças — isto é desfazendo os cérebros — da maioria dos estudantes de Letras neste país.

Veja todos os arquivos por ano