Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 03 de março de 2007
Os detratrores da religião usam e abusam deste argumento que encontraram em Humboldt (não o explorador e naturalista Alexander, mas seu irmão filólogo Wilhelm): A moralidade humana, até mesmo a mais elevada e substancial, não é de modo algum dependente da religião, ou necessariamente vinculada a ela.
Todas as civilizações nasceram de surtos religiosos originários. Jamais existiu uma “civilização laica”. Longo tempo decorrido da fundação das civilizações, nada impede que alguns valores e símbolos sejam separados abstrativamente das suas origens e se tornem, na prática, forças educativas relativamente independentes.
Digo “relativamente” porque, qualquer que seja o caso, seu prestígio e em última análise seu sentido continuarão devedores da tradição religiosa e não sobrevivem por muito tempo quando ela desaparece da sociedade em torno. Toda “moral laica” não é senão um recorte operado em códigos morais religiosos anteriores.
Esse recorte pode ser eficaz para certos grupos dentro de uma civilização que, no fundo, permaneça religiosa, mas, suprimido esse fundo, o recorte perde todo sentido. A incapacidade da Europa laica de defender-se da ocupação cultural muçulmana é o exemplo mais evidente.
O presente estado de coisas nos países que se desprenderam mais integralmente de suas raízes judaico-cristãs está demonstrando com evidência máxima que a pretensa “civilização leiga” nunca existiu nem pode existir.
Ela durou apenas umas décadas, jamais conseguiu extirpar totalmente a religião da vida pública, malgrado todos os expedientes repressivos que usou contra ela e, no fim das contas, sua breve existência foi apenas uma interface entre duas civilizações religiosas: a Europa cristã moribunda e a nascente Europa islâmica.
A opinião de Humboldt é baseada num erro duplo, ou melhor, numa convergência de erros que dão a impressão de confirmar-se como verdades. De um lado, ele faz uma dedução lógica a partir dos significados gerais dos termos e, vendo que o conceito genérico de moralidade não implica nenhuma referência a Deus, aplica ao mundo dos fatos a conclusão de que uma coisa não depende da outra.
Isso é vício de abstratismo: inferir, de um raciocínio, os fatos, em vez de raciocinar com base nos fatos. De outro lado, porém, ele observa que em torno há indivíduos ateus “de moralidade elevada e substancial”, e acredita que com isto obteve uma comprovação empírica da sua dedução.
O que ele nem percebe é que a moralidade deles só é boa porque sua conduta coincide esquematicamente – e exteriormente — com aquilo que os princípios da religião exigem, isto é, que a possibilidade mesma de uma boa conduta laica foi criada e sedimentada por uma longa tradição religiosa cujas regras morais, uma vez absorvidas no corpo da sociedade, passaram a funcionar de maneira mais ou menos automatizada.
Em suma, só o homem abstrato – ou o herdeiro mais ou menos inconsciente de tradições religiosas – pode ter uma moral sem Deus. O primeiro é uma ficção lógica, o segundo é uma aparência que encobre a realidade das suas próprias origens.
Tomá-los como realidades, e mais ainda como realidades universais e incondicionadas, é um erro filosófico primário, que mostra escassa capacidade de analisar a experiência.