À Mão Esquerda

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de maio de 2010

Tentei ler o livro de Fausto Wolff, À Mão Esquerda, mas não consegui chegar ao fim. Como atravessar impune quinhentas e tantas páginas de narrativas cruzadas, assinadas por vários personagens que, desde épocas e pontos de vista diversos, escrevem todos igualzinho, todos no mesmo estilo, o estilo jornalistico de Fausto Wolff?

A experiência foi tanto mais dolorosa porque eu tinha acabado de ler Une Vieille Maitresse, de Jules Barbey d’Aurevilly, obra-prima composta no intuito de dar a impressão de ter sido escrita por mulher, e que nos convence disso desde a primeira página, ao ponto de perguntarmos se, na vida real, o autor não desmunhecava ao menos um pouquinho, coisa que de fato ele não fazia. A comparação é acachapante. Louvado como um gênio do romance por seus companheiros de militância e de bebedeira, Fausto Wolff nunca foi um romancista. Ninguém pode ser romancista se não consegue pensar, sentir e escrever como seus personagens, desdobrando-se momentaneamente em eus imaginários. E para quê alguém faria isso, afinal? Justamente para captar no plano estético a unidade de experiências vivas que ainda são demasiado recentes, ou demasiado impactantes, para poder ser compreendidas intelectualmente.

Contar a história é o primeiro nível de elaboração da experiência. O romancista não escreve para explicar nada, mas para registrar um conjunto de experiências reais ou imaginárias cujo nexo último lhe escapa, cujo sentido ele só apreende como forma estética, não como conceito explicativo. Daí o sentimento de descoberta, e ao mesmo tempo de perplexidade, que nos assalta ao lermos um bom romance. Ele nos mostra algo de muito importante, mas que não sabemos precisamente o que seja. Por isso é que ninguém pode dizer qual “o” sentido de um romance. Ele tem necessariamente muitos, e até contraditórios. Um romance é um conjunto articulado de símbolos, e um símbolo, como ensinava Susanne K. Langer, é “uma matriz de intelecções” – não a expressão alegórica de intelecções prévias. Um romance deve dar o que pensar, não um pensamento pronto. Por isso é que homens de idéias, pensadores, ideólogos, formadores de opinião, fracassam com tanta freqüência ao escrever romances: eles falam daquilo que já entenderam, não nos dão uma experiência viva carregada de mistério, de perguntas sem resposta.

Dizer que alguém é um mau romancista não é o mesmo que acusá-lo de ser mau escritor. Grandes escritores – Maurice Barrès é talvez o exemplo mais alto – podem ser romancistas medíocres ou péssimos, porque conhecem demais o sentido daquilo que querem dizer; conhecem-no ao ponto de poder expressá-lo em oratória ou em discurso filosófico, que é o que deveriam fazer em vez de simular experiência viva com material velho e já esclarecido intelectualmente. Não digo que seja o caso de Fausto Wolff: ele nem é um grande escritor, nem tem propriamente idéias. Mas é um escritor razoável: tem aquela naturalidade de expressão que lembra as conversas de botequim entre intelectuais cariocas numa época em que eles falavam muito e falavam com graça. Todos os colaboradores do Pasquim dominavam esse estilo, que de certo modo ainda é modelo para muita gente. A facilidade dessa linguagem induz à tentação de imitá-la em romance. Mas, sinceramente, lavradores gaúchos falando como colunistas do Pasquim são uma experiência traumática da qual ainda estou tentando me recuperar. Há uma diferença abissal entre captar o coloquialismo da linguagem cotidiana e vestir a nossa própria linguagem cotidiana, como uma camisa-de-força, em personagens que jamais poderiam falar como nós. Para ficar em comparações cariocas, ninguém captou a linguagem do povo do Rio de Janeiro como Marques Rebelo, mas, pessoalmente, Rebelo não falava como seus personagens: falava como um erudito, um cultor dos clássicos, conjugando os verbos e colocando os pronomes com exatidão irritante. O gaúcho Fausto Wolff tornou-se um intelectual de Ipanema e, quando toma a palavra em nome de seus antepassados imigrantes, faz deles intelectuais de Ipanema. A coisa é tão desnivelada que, malgrado o interesse da história, e não obstante a própria graça dessa linguagem em si, À Mão Esquerda acaba se tornando insuportável depois de alguns capítulos. Wolff tinha ali o material para um excelente livro de memórias, que estragou tentando parir um romance.

Não obstante, é preciso concordar com Carlos Heitor Cony quando ele diz que, com isso, Wolff “escreveu o livro mais importante da sua geração”. Se por “geração” entendemos precisamente o grupo de intelectuais cariocas dos anos 60-70 que escreviam no Pasquim, Fausto Wolff realmente fez mais pela memória dela do que os velhinhos que, no auge da impotência criadora, tentaram reviver com dinheiro público as glórias daquele semanário mediante uma coisa chamada, muito apropriadamente, Bundas.

À Mão Esquerda é o epitáfio de uma geração que se achava extraordinariamente importante, mas cuja contribuição à cultura nacional se revela cada vez mais nula à medida que os ecos das conversas nos bares de Ipanema vão se extinguindo como um sussurro distante. Da patota, como essa geração se autodenominava, só sobrarão as obras de seus membros periféricos e honorários, Millôr Fernandes e Carlos Heitor Cony. O próprio Francis só sobrevive como personagem, não como autor. A história da intelectualidade brasileira está repleta desses episódios que, por um momento, parecem muito atraentes, mas dos quais só resta, no fim das contas, o esquecimento.

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