Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de março de 2010

Já observei mil vezes que no Brasil de hoje a linguagem da elite soi disant alfabetizada se reduziu a um sistema formal de pressões e contrapressões, onde as palavras valem pela sua carga emocional acumulada, com pouca ou nenhuma referência aos dados correspondentes na experiência real de falantes e ouvintes.

A mais alta função da linguagem – a transposição da realidade em pensamento abstrato e o retorno deste à realidade, como instrumento de iluminação da experiência – fica assim bloqueada, restando apenas, de um lado, a expressão tosca e direta de desejos e temores, e, de outro, a imposição de reações estereotípicas, como os comandos emitidos por um amestrador de bichos que não espera de seus amestrados nenhuma compreensão racional, apenas a obediência automática, sonsa, impensada.

As causas desse estado de coisas remontam à “contracultura” dos anos 60, sob cuja influência formou-se a mentalidade dos homens que hoje dirigem o país. Enquanto pura expressão do protesto juvenil ante um mundo complexo demais, a contracultura podia até exercer alguma função positiva, como estímulo crítico à renovação do legado milenar que legitimava, cada vez mais da boca para fora, a cultura dominante. Transmutada ela própria em cultura dominante, a onda contracultural cristaliza-se em inversão compulsiva, mecânica e burra, de todos os valores e de todos os príncípios. No prazo de uma geração, os mais altos conhecimentos, as mais ricas e delicadas funções da inteligência, os valores mais essenciais da racionalidade, da moral e das artes cedem lugar à repetição maquinal de slogans e chavões carregados de ódios insensatos e apelos chantagistas, boa somente para despertar aquela obediência servil extremada que, para maior satisfação do manipulador, se camufla sob afetaçôes de espontaneidade e até de rebeldia no instante mesmo em que tudo cede às injunções de cima. Transmutado ele próprio em estereótipo, o inconformismo torna-se o pretexto oficial do conformismo mais extremo e mais abjeto, aquele que não se contenta em obedecer, mas procura mostrar serviço, agradar, bajular.

Num primeiro momento, a única vítima é a alta cultura, que desaparece sob a glorificação do pior e do mais baixo. Logo em seguida, o sistema educacional inteiro é infectado: substituída a exigência de qualidade pela da “correção política”, o clamor dos grupos de pressão torna-se a única fonte da autoridade pedagógica, impondo novos padrões de conduta em vez das regras da gramática, da lógica e da aritmética, premiando o sex appeal em vez das boas notas e, nos casos mais escandalosos, incentivando abertamente atos criminosos sob a desculpa de que são próprios da juventude ou justas expressões de protesto contra o establishment, como se os propugnadores dessa idéia não fossem eles próprios, agora, o establishment.

Até aí, a velha elite dominante pode permanecer indiferente ao processo, que não a afeta diretamente. Pode até sentir uma ponta de satisfação malévola ao ver que os revolucionários se contentam em destruir a educação e a cultura, que para ela não significam nada, sem tocar no seu rico dinheirinho. Quando, ante a devastação revolucionária de todos os valores, o homem de posses assegura com tranqüilidade olímpica que “nossas instituições democráticas são sólidas”, o que ele quer dizer é que pouco lhe importa a destruição do mundo, desde que permaneça intacto o seu patrimônio – como se este fosse uma entidade metafísica, subsistente no vácuo, independentemente das contingências político-sociais.

Mas o passo seguinte da demolição revolucionária da sociedade já vem abalar até a falsa segurança do burguês. Isso acontece quando a geração de jovens formados sob a influência da contracultura começa a ocupar os altos postos na burocracia legislativa, fiscal e judiciária e a transmutar em estados de fato as fantasias torpes de seus cérebros meticulosamente desengonçados: diante dos feitos dessas criaturas, pela primeira vez os ricos começam a tomar ciência de que o dinheiro não é um poder em si, é apenas um símbolo provisório garantido pelo poder efetivo, o poder político, agora em mãos de pessoas que já não querem garanti-lo mais.

Já nem falo, por óbvio demais, do Plano Nacional de “Direitos Humanos”, que assegura ao invasor a posse imediata do imóvel invadido e faz dele o juiz soberano do seu próprio crime. Igualmente perverso, e muito mais sorrateiro, o Projeto de Lei 2412 modifica os critérios para o processamento administrativo das execuções fiscais. Conforme alertou recentemente o Prof. Denis Rosenfield, “o projeto está atemorizando o setor jurídico do país e começa a mobilizar o grande empresariado. Ele simplesmente concede o direito de transferência de bens de devedores tributários para a União, excluindo o devido processo legal.” Você deve ao fisco? Ele vem e toma as suas propriedades instantaneamente, diretamente, sem precisar de uma sentença judicial para isso.

Você dirá que é inconstitucional? De que serve isso, diante da Súmula Vinculante nº. 10 do Supremo Tribunal Federal, com base na qual se sustenta a tese de que os juízes singulares não podem mais, por si, suspender a aplicação das leis ou atos normativos que lhes pareçam inconstitucionais? Inconstitucional ou não, cada lei, decreto ou portaria continuará valendo para todos os casos particulares até que o plenário do tribunal ou o STF, ao fim de alguns anos ou décadas e de uma série infindável de danos, decidam em contrário. (Aguardem uma denúncia mais completa dessa bestialidade no 35º. Simpósio de Direito Tributário, a realizar-se sob a direção do Prof. Ives Gandra da Silva Martins.)

Esse tipo de justiça hedionda não surge do nada. Ela pressupõe décadas de destruição da inteligência jurídica, substituída gradativamente por automatismos verbais politicamente agradáveis à mentalidade revolucionária. E essa substituição não ocorre antes que toda a esfera da cultura superior e da educação tenha sido infectada de contracultura. De que adianta “mobilizar o empresariado” para neutralizar este ou aquele efeito específico de um processo geral de degradação cultural ante o qual esse empresariado permaneceu neutro ou alegremente cúmplice ao longo de trinta anos? De que vale tentar enxugar uns respingos, quando a onda que os dispara já se avolumou ao ponto de submergir o território inteiro? De que vale tentar vencer uma batalha, quando já se aceitou perder a guerra?

Ou o empresariado se dispõe a combater em todos os fronts, inclusive os mais remotos do seu interesse imediato, ou pára logo com essa farsa suicida de defender no varejo aquilo que já cedeu no atacado.

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