A Coerência das incertezas: símbolos e mitos na fenomenologia histórica luso-brasileira
Autor: Paulo Mercadante
Editora: É Realizações
Páginas: 352
Preço: R$ 50,00
Cláudio Lembo
Folha de São Paulo, sábado,16/03/2002
Em estilo sincopado, as histórias brasileira e portuguesa se desenvolvem com coerência e certezas. Esta é a convicção que surge da leitura de “A Coerência das Incertezas”. Ao iniciar a trajetória, o leitor sente alguma dificuldade. As trilhas parecem levar a lugar nenhum. Há um rompimento com o usual ou costumeiro na descrição dos acontecimentos históricos. Depois, adaptando-se ao estilo e passando a entender as veredas indicadas pelos símbolos construídos pelo autor, a partir de fatos reais, o envolvimento torna-se pleno e a ânsia por conhecer novos sinais e novas situações transforma-se em obsessão, muito mais a Freud que a Jung.
Aí, em rito obsessivo, avança-se e descobre-se que as histórias entrelaçadas de portugueses e brasileiros se encontram suportadas por símbolos nítidos. O domínio da “cruz” e a presença do “patrimonialismo” com “xenofobia” e “nepotismo” se encontram revelados desde os primórdios da nacionalidade luso-portuguesa.
Esses símbolos levam a outros. As “flechas” e as “armadilhas” são colocadas a todo tempo na caminhada das pessoas. Estas, cheias de cobiça, querem a “terra”, o “ouro”, a “madeira” e, em busca desses elementos, utilizam-se da “cruz”, das “flechas” e das “armadilhas”.
Neste enredo, o líder se utiliza dos símbolos, como em qualquer outras terras, mas, por aqui, busca, sem preocupação moral, o poder pessoal, utilizando-se de elementos vindos do exterior sem qualquer preocupação com os valores culturais locais. A prática é acentuada no período pombalino e permanece até nossos dias.
Ontem o francesismo, o anglicanismo ou o germanismo; hoje a globalização modelada pelos valores americanos. Assim, caminhamos sem a capacidade de gerar identidade própria.
Houve momento diferenciado. Este se deu quando Portugal, “cujo povo, de suprema intuição e inteligência, traçava seu projeto de unir e ligar no planeta diferentes povos e culturas”. Depois, findo o ciclo atlântico, chegam novos símbolos, que derrubam a “cruz”, os “nobres” e os “burocratas”. Implanta-se a corrupção e o autoritarismo, como herdeiros da Inquisição e das práticas religiosas deformadoras. Permanecem, contudo, os símbolos antigos: o “brasão” e o “ouro”. Os nobres desfilam “status”, “ainda que isso significasse apenas simulação”.
A partir da amarga legenda de d. Sebastião, paradoxalmente, nasce o “cadáver” como símbolo. João Pessoa, na Revolução de 1930, Jaime da Silva Telles e Demócrito de Souza Filho colocam fim ao Estado Novo e, em anos seguintes, Getúlio Vargas se transforma em cadáver e este em símbolo, após o seu suicídio. Esta deferência ao símbolo “cadáver” origina-se do “catecismo fanático”, que impõe o sofrimento para se atingir bem-aventuranças. Os jejuns prolongados e as agonias de fome levam a exaustão da vida e aparecem como caminho para se atingir o reino celeste, como apregoou Antônio Conselheiro, vítima de outro símbolo, o “bacamarte” empunhado pelo Estado.
Com a chegada da família real ao Brasil, um novo símbolo se revela àquela elite desorientada que aporta no país. Pela leitura do jornal parisiense “Monitor”, soube d. João 6º, antes mesmo da invasão francesa, que fora destronado. O veículo de comunicação apresentava o novo. Era jornal e este produz um símbolo que vem até nossos dias com insistência e presença, o “papiro”.
No “papiro”, encontraram os povos daqui e de além-mar o suporte para suas novas ficções, entre elas, a mais expressiva, o “constitucionalismo”. O “papiro” suporta todas as idealizações e, mistificando a realidade, a transforma em utopia jamais alcançável. Ao atingir a contemporaneidade, o autor não resiste e se transforma em crítico ácido e amargo de personagens e acontecimentos.
Jânio Quadros surge como idealizado pela plebe, como demagogo salvador, brandindo o símbolo da “vassoura”, como se fosse simulacro da lança templária. Tancredo Neves é indicado como salvador do sistema que sempre condenou. José Sarney sucedeu o morto antes de ser presidente e passa a ser “guiado por imprensa medíocre e por jornalismo alienado de inspiração esquerdista”. Ulisses Guimarães, o herói das diretas-já, é apontado como “declaradamente oportunista, revelou-se energúmeno político”.
O espaço maior é reservado à social democracia e a seus agentes brasileiros. São identificados como portadores da bagagem da Contra-Reforma. Apresentam-se como titulares do Saber da Salvação, montados no cavalo do atraso. E o atual governo?
Um punhado de burocratas socialistas, travestidos de liberais, egressos das universidades públicas, dirigido pelo corporativismo das estatais e por professores-banqueiros com fantasia de esquerda. No vértice, Fernando Henrique Cardoso, que, no governo, disfarçou a linguagem socialista, iludindo a opinião pública com o artifício da moeda estável, o real, graças a juros elevadíssimos pagos ao capital especulador.
A pergunta final do autor: que símbolos conduzem um país com potencialidades ao caos e ao risco de secessão? Ele responde de pronto. Estes símbolos são “cruzes”, “estandartes” e “brasões” transmudados em “passeatas”, “foices”, “martelos” e o “vermelho”. Cabe ao leitor, ao término da leitura, formular dois pedidos ao autor: a elaboração de um glossário para identificar tantos símbolos e tantas figuras e o acréscimo, na longa série produzida, de mais um símbolo: a “dinamite”, usada em muitos passos até atingir sua potência maior nos momentos derradeiros da obra.
CLÁUDIO LEMBO é professor de direito constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie e autor de “O Futuro da Liberdade” e “A Opção Liberal”, entre outras obras.