A animalização da linguagem

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 6 de maio de 2013

          

No penúltimo estágio da degradação cultural, a linguagem perde toda referência aos objetos de experiência e se reduz a um conjunto de sinais de reconhecimento grupal. O que as pessoas dizem já não tem nada a ver com fatos e coisas de um “mundo” objetivo, mas expressa apenas o reflexo de simpatia ou antipatia com que os membros de um grupo distinguem os “de dentro” e os “de fora”. Quando o ouvinte de um discurso diz que “concorda” ou “discorda”, isso não significa que o conteúdo ouvido reflete ou nega os dados acessíveis da sua experiência real, mas apenas que o falante usou dos cacoetes de linguagem que parecem identificá-lo como um membro do grupo ou como um estranho, como um “amigo” ou “inimigo”. Desaparecido do horizonte o quadro externo que deve servir de mediador entre falante e ouvinte, o acordo ou desacordo entre estes baseia-se agora nos puros sinais de uma identidade coletiva automaticamente reconhecível, como, entre os cães e lobos, o cheiro dos seus genitais ou os resíduos da sua urina no chão. Os sinais sonoros ainda são os mesmos da linguagem humana, mas a regra semântica imanente é a da comunicação animal.

Mas também é claro que esse tipo de reconhecimento não pode expressar uma concordância no sentido profundo e etimológico dos corações que se encontram. Sentimentos pessoais não são signos lingüísticos, são dados de realidade, que, por isso mesmo, permanecem inacessíveis ao uniformismo dos códigos de reconhecimento. Seria mesmo inconcebível que uma modalidade de comunicação incapaz de apreender até os dados da experiência exterior e pública pudesse lidar com a matéria mais fina dos sentimentos individuais. Estes recuam para o subsolo do inconsciente e do inexpressável, o que torna ainda mais enfáticas e vigorosas, como compensação, as ostentações de afinidade grupal. O reflexo de aprovação ou repulsa é expresso com tanto mais feroz intensidade quanto menos corresponde à individualidade da experiência interior e quanto mais reflete apenas a ânsia de identificação com um grupo mediante a hostilidade ao grupo contrário.

Não é de espantar que, suprimida a possibilidade de expressar sentimentos pessoais autênticos, o código uniforme que os substitui e encobre apele, com freqüência crescente, à expressão direta e ostensiva dos impulsos sexuais, que nem por serem de uma repetitividade desesperadoramente mecânica deixam de simular, nesse novo panorama das relações humanas, a função outrora desempenhada pelas confissões íntimas. “Sair do armário”, “assumir-se”, exibir-se despudoradamente em palavras ou gestos, já nada tem de uma confissão: é a inscrição pública num grupo de pressão, premiada imediatamente por manifestações gerais de solidariedade.

O último estágio atinge-se quando esse tipo de comunicação se alastra para fora das conversações banais e debates de botequim e invade a esfera da linguagem “culta” dos jornais, dos debates parlamentares e das teses acadêmicas.

        Quase que obrigatoriamente, o que hoje em dia passa por “argumento”, nesses meios, é o chavão identificador que não procura impugnar as provas do adversário, nem mesmo seduzi-lo, mas apenas reiterar o apoio dos concordantes, fazer número, aumentar o poder de pressão mediante a ostentação de uma força coletiva unida, coesa, cada vez mais impaciente, cada vez mais intolerante. Ninguém debate para mostrar que tem razão, mas apenas para separar quem está do “seu” lado de quem está “do lado dos outros”. As discussões não têm mais objetos: só sujeitos.

        Quando, trinta anos atrás, o comunista chamava o inimigo de “reacionário”, isso correspondia a uma catalogação ideológica precisa, com traços discerníveis na realidade. Quando hoje a feminista enragée  ou o gayzista histérico clamam contra a “elite patriarcal conservadora e machista”, estão aludindo a uma entidade perfeitamente inexistente. A elite neste país, como aliás na Europa e nos EUA, é acentuadamente feminista e gayzista. Resíduos de machismo só subsistem nas classes mais baixas, e um autêntico conservadorismo moral só permanece vivo entre religiosos banidos dos ambientes chiques. Por que, então, atacar um dragão de papel? Precisamente porque é de papel. Nada reforça mais a unidade e a agressividade de um grupo odiento do que a investida fácil, barata e sem riscos contra um inimigo imaginário. De passagem, o inimigo real, o povo cristão, é pintado com as cores repulsivas da classe capitalista que o despreza e marginaliza. Se usassem de categorias sociológicas objetivas para descrever a situação, os inflamados próceres desses movimentos teriam de reconhecer que não lutam contra um poder discriminador, mas contra discriminados e perseguidos, gente sem chance na grande mídia, na carreira universitária e nas festas dobeautiful people. Seria terrivelmente desmoralizante. A linguagem dos sinais animais contorna esse perigo, sufocando a realidade sob o apelo histérico da identidade grupal.

       

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        Se querem um exemplo de como ainda é possível, mesmo nesse estado de coisas animalizante, usar a linguagem no pleno sentido humano, tornando a realidade presente e fazendo-a falar por si mesma com eloqüência quase angélica, ouçam a pregação da advogada e pastora Damares Alves, da Igreja Batista, em http://www.youtube.com/watch?v=BKWc0sUOvVM, sobre a guerra de extermínio moral empreendida pelo governo petista, com a ajuda de grupos bilionários nacionais e estrangeiros, contra as crianças deste país. Mesmo feministas e gayzistas não podem ouvi-lo com indiferença. É, sem favor nenhum, o discurso mais importante e mais valioso proferido em português do Brasil no último meio século.

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