Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de setembro de 2009

O terceiromundismo, que foi uma invenção de Stálin, acabou por se tornar – e é até hoje – uma das fontes maiores da autoridade do espírito revolucionário, instilando na alma da civilização ocidental um complexo de culpa inextinguível e obtendo dele toda sorte de lucros morais, políticos e financeiros. Subscrita pelos organismos internacionais, alimentada por fundações bilionárias e várias dúzias de governos, trombeteada por incansáveis tagarelas como Noam Chomsky e Edward Said, entronizada como doutrina oficial por toda a grande mídia da Europa e dos EUA, essa ideologia toda feita de mendacidade oportunista acabou por se impregnar tão profundamente na opinião pública que qualquer tentativa de contestá-la, mesmo em tom neutro e acadêmico, vale hoje como prova inequívoca de “racismo”.

Um de seus dogmas principais é justamente a acusação de racismo, atirada genericamente ao rosto de toda a cristandade por incontáveis exércitos de intelectuais ativistas e, nas últimas décadas, por todos os porta-vozes do radicalismo islâmico. Imbuído da crença na inferioridade congênita dos negros, o homem branco europeu teria sido, segundo essa doutrina, o escravagista por excelência, dizimando a população africana e financiando, com a desgraça do continente negro, a Revolução Industrial que enriqueceu o Ocidente.

Tudo, nessa teoria, é mentira. A começar pela inversão da cronologia. Os europeus só chegaram à África por volta da metade do século XV. Muito antes disso o desprezo racista pelos negros era senso comum entre os árabes, como se vê pela palavra de alguns de seus mais destacados intelectuais. Extraio estes exemplos do livro de Bernard Lugan, Afrique, l’Histoire à l’Endroit (Paris, Perrin, 1989):

Ibn Khaldun, o historiador tunisino (1332-1406), assegura que, se os sudaneses são caracterizados pela “leviandade e inconstância”, nas regiões mais ao sul “só encontramos homens mais próximos dos animais que de um ser inteligente. Eles vivem em lugares selvagens e grutas, comem ervas e grãos crus e, às vezes, comem-se uns aos outros. Não podemos considerá-los seres humanos”.

O escritor egípcio Al-Abshihi (1388-1446) pergunta: “Que pode haver de mais vil, de mais ruim do que os escravos negros? Quanto aos mulatos, seja bom com eles todos os dias da sua vida e de todas as maneiras possíveis, e eles não lhe terão a menor gratidão: será como se você nada tivesse feito por eles. Quanto melhor você os tratar, mais eles se mostrarão insolentes; mas, se você os maltratar, eles mostrarão humildade e submissão.”

Iyad Al-Sabti (1083-1149) escreve que os negros são “de todos os homens, os mais corruptos e os mais dados à procriação. Sua vida é como a dos animais. Não se interessam por nenhum assunto do mundo, exceto comida e mulheres. Fora disso, nada lhes merece a atenção.”

Ibn Butlan, reconhecendo que as mulheres negras têm o senso do ritmo e resistência para os trabalhos pesados, observa: “Mas não se pode obter nenhum prazer com elas, tal o odor das suas axilas e a rudeza do seu corpo”.

Em contrapartida, teorias que afirmavam a inferioridade racial dos negros não se disseminaram na Europa culta senão a partir do século XVIII (cf. Eric Voegelin, The History of the Race Idea. From Ray to Carus, vol. III das Collected Works, Baton Rouge, Louisiana State University Press, 1998). Ou seja: os europeus de classe letrada tornaram-se racistas quase ao mesmo tempo em que o tráfico declinava e em que eclodiam os movimentos abolicionistas, dos quais não há equivalente no mundo árabe, de vez que a escravidão é permitida pela religião islâmica e ninguém ousaria bater de frente num mandamento corânico.

O racismo antinegro é pura criação árabe e, na Europa, não contribuiu em nada para fomentar o tráfico negreiro.

Característica inversão do tempo histórico é o estereótipo, universalmente aceito, do colonialista europeu invadindo a África com um crucifixo na mão, decidido a impor a populações inermes a religião dos brancos. O cristianismo foi religião de negros muito antes de ser religião de brancos europeus. Havia igrejas na Etiópia no tempo em que os ingleses ainda eram bárbaros pagãos. Mais de mil anos antes das grandes navegações, era na África que estavam os reinos cristãos mais antigos do mundo, alguns bastante cultos e prósperos. Foram os árabes que os destruíram, na sanha de tudo islamizar à força. Boa parte da região que vai desde o Marrocos, a Líbia, a Argélia e o Egito até o Sudão e a Etiópia era cristã até que os muçulmanos chegaram, queimaram as igrejas e venderam os cristãos como escravos. Quatro quintos do prestígio das lendas terceiromundistas repousam na ocultação desse fato.

À inversão da cronologia soma-se, como invariavelmente acontece no discurso revolucionário, a da responsabilidade moral. Não é nem necessário dizer que a fúria verbal dos árabes de hoje contra a “civilização cristã escravagista” é pura culpa projetada: se os europeus trouxeram para as Américas algo entre doze e quinze milhões de escravos, os mercadores árabes levaram para os países islâmicos aproximadamente outro tanto, com três diferenças: (1) foram eles que os aprisionaram – coisa que os europeus nunca fizeram, exceto em Angola e por breve tempo -; (2) castraram pelo menos dez por cento deles, costume desconhecido entre os traficantes europeus; (3) continuaram praticando o tráfico de escravos até o século XX. O escravagismo árabe foi assunto proibido por muito tempo, mas o tabu pode-se considerar rompido desde que a editora Gallimard, a mais prestigiosa da Franca, consentiu em publicar o excelente estudo do autor africano Tidiane N’Diaye, Le Genocide Voilé (2008), que comentarei outro dia.

Mas não são só os árabes que têm culpas a esconder por trás de um discurso de acusação indignada. A escravidão era norma geral na África muito antes da chegada deles, e hoje sabe-se que a maior parte dos escravos capturados eram vendidos no mercado interno, só uma parcela menor sendo levada ao exterior. Quando os apologistas da civilização africana enaltecem os grandes reinos negros de outrora, geralmente se omitem de mencionar que esses Estados (especialmente Benin, Dahomey, Ashanti e Oyo) deveram sua prosperidade ao tráfico de escravos, do qual sua economia dependia por completo. Especialmente o reino de Oyo, escreve Lugan, “desenvolveu um notável imperialismo militar desde fins do século XVII, buscando atingir o oceano para estabelecer contatos diretos com os brancos. Já antes disso, a força guerreira de Oyo, especialmente sua cavalaria, permitia uma abundante colheita de escravos que ela aprisionava ao sul, entre os Yoruba, e no norte entre os Bariba e os Nupê. Tradicionalmente, os numerosos cativos tornavam-se escravos no seio da sociedade dos vencedores. Com a aparição do tráfico europeu, uma parte – mas só uma parte – foi encaminhada ao litoral.”

Num próximo artigo mostrarei mais algumas inversões prodigiosas que o discurso terceiromundista opera na história da escravidão africana.

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