Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 20 de março de 2013
A baixeza de caráter sempre acaba transparecendo na deformidade da linguagem, especialmente sob a forma dos cacoetes de estilo e da impropriedade do vocabulário.
Em artigo recente e muito oportuno, Roberto Romano lembra um desses cacoetes, que se tornou marca registrada da linguagem fascista: o uso de aspas pejorativas como armas de extermínio das reputações. Quando não se sabe o que alegar contra um sujeito, apela-se a esses sinais gráficos na esperança de que, fincados dos dois lados de um qualificativo – mesmo que seja o simples nome de uma atividade profissional –, valham magicamente como sua total e peremptória negação.
Entre aspas, a vitória transfigura-se em derrota, o talento em inépcia, o advogado em rábula, o general em recruta e o santo em charlatão: pelo menos tal é a expectativa dos aspeadores. Disso deveria saber eu, que cheguei a ser, no dizer de Bruno Tolentino, “o mais aspeado filósofo brasileiro” – mas por que deveria preocupar-me com um truque bobo que só revela, nos seus praticantes, a mentalidade pueril e um toque de analfabetismo funcional? Escritores que se prezam empregam as aspas para indicar citações, conotações alusivas ou ambiguidades deliberadas, e evitam dar-lhes sentido pejorativo porque sabem que isso é só para aqueles a quem a natureza avara negou até mesmo o dom de insultar criativamente, tão abundante na linguagem popular do Brasil.
Mas outra deformidade típica, endêmica nos jornais e nas cátedras deste país, é o vício de forçar um termo a carregar-se de conotação ofensiva até fazê-lo perder o último vestígio de referência à sua significação própria. O exemplo mais renitente é o uso comunista do adjetivo “fascista”: na ânsia de associar a seus adversários a lembrança sinistra das ditaduras de Hitler e Mussolini, estampam-no com entusiasmo feroz no rosto dos que defendem a liberdade de mercado, a redução do poder do Estado, a independência entre os poderes e as garantias legais da democracia parlamentar – o oposto simétrico de qualquer coisa que mereça, na escala objetiva, o nome de “fascismo”.
Não por coincidência, as pessoas que fazem isso são aquelas mesmas que mais frequentemente apelam ao recurso fascista das aspas pejorativas.
Outro exemplo é o uso da palavra “ideólogo” como rótulo depreciativo. “Ideologia” é um sistema de ideias destinadas não a descrever ou analisar a realidade, mas a criar e fortalecer a unidade de um partido, de um grupo ou movimento político e a orientar – justificando-os e enaltecendo-os – os seus planos para a tomada e a manutenção do poder.
Basta compreender essa definição para perceber imediatamente que aqueles que tentam rebaixar o meu trabalho rotulando-me “ideólogo” são nada mais que charlatães e difamadores desprovidos do mais mínimo fragmento de credibilidade.
Para que essa rotulação tivesse algum valor, seria preciso que os rotuladores pudessem responder às seguintes perguntas: Que partido? Que grupo? Que movimento? Que planos? Não podem.
O público a que me dirijo não constitui um grupamento político nem mesmo num sentido remotamente analógico, não tem nenhuma unidade organizacional ou atividade militante e nem sequer encontros ou congressos onde pudesse sonhar com uma vaga tomada do poder num futuro hipotético e inalcançável. E por mais meticulosamente que se examinem os meus escritos e aulas, não se encontrará aí o menor esboço de algum plano nesse sentido.
Quanto aos grupos e classes existentes para além das fronteiras desse círculo, é mais do que óbvio que não me dirijo a nenhum deles em especial, não os represento no mais mínimo que seja e não tenho sequer por eles um pouco de afeição ou respeito, condição sine qua non para que desejasse orientá-los ou liderá-los politicamente.
Seria eu o ideólogo da burguesia, essa classe que não sonha senão em abrigar-se à sombra do Estado? Dos militares, que se rebaixaram à condição de funcionários públicos, totalmente esquecidos de que seu dever de lealdade é para com o Estado e não para com qualquer partido que o açambarque e prostitua a serviço de seus próprios interesses? Dos estudantes, que só pensam em comunismo, sexo e drogas? Dos pobres e oprimidos, que não leem uma só linha do que escrevo e só acreditam no Big Brother Brasil?
Ricos ou pobres, fardados ou à paisana, meus leitores, ouvintes e alunos são indivíduos isolados, sem a menor ambição ou possibilidade de agir politicamente.
Chamar “ideólogo” a quem há anos se dirige a essas pessoas sem lhes acenar nem de longe com algum projeto político é esvaziar a palavra “ideologia” de todo significado substantivo para fazer dela um grotesco arremedo de insulto, um porrete de isopor, uma faca sem cabo nem lâmina que só expõe ao ridículo o seu usuário, especialmente quando este é, ele próprio, o porta-voz notório de um grupo político atuante e constituído. Quem pode ser mais patético do que aquele que usa como ofensa o próprio termo que mais apropriadamente o define?
Não por coincidência, os que se entregam a esse exercício de masoquismo inconsciente não estão só na esquerda, como os srs. Caio Navarro de Toledo, Adalberto Monteiro, Altamiro Borges ou a equipe do Vermelho.org, mas também alguns na direita, como o prof. Alexandre Duguin ou os srs. Rodrigo Constantino e Joel Pinheiro.
Em vista do exposto, a esses todos a única resposta merecida seria “Ideólogo é a mãe”, se justamente o último dos mencionados não constituísse exceção, de vez que, no seu caso, ideólogo não é a mãe e sim o pai – ideólogo do partido da Marina Silva.