Modernidade real e imaginária

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 9 de outubro de 2013

          

A história das origens da modernidade está entremeada de mitos e lendas que os historiadores já demoliram faz tempo, mas que constituem ainda a substância do que se transmite a respeito nas escolas, na mídia e no show business. Tão forte é a impregnação dessas balelas na mente popular – incluída aí a classe dos cientistas profissionais sem especial cultura histórica –, que a simples iniciativa de informar ao público o estado atual das pesquisas historiográficas sobre aquele período é recebida com ataques apopléticos e ainda  acusada de ser uma tentativa maligna de “desmoralizar a ciência” em nome de algum “fundamentalismo religioso”.
Que essas reações sejam elas mesmas fundamentalistas no mais alto grau, é algo cuja evidência salta aos olhos e não necessita de nenhuma prova suplementar. A fé na “ciência” como fonte de toda autoridade é um dogma inabalável até mesmo entre os que se impregnaram de desconstrucionismo na universidade e teriam todas as razões para abandoná-la por completo.
É que aí não se trata da ciência no sentido efetivo, seja do método experimental, seja, mais genericamente, da busca sistemática do conhecimento, e sim se um símbolo aglutinador destinado a infundir um senso de identidade e autoconfiança nos grupos sociais empenhados em espalhar a ideologia do anticristianismo militante.
Desses grupos não se pode esperar nem um mínimo de racionalidade, mas sim o uso descarado de rotulagens pejorativas e, em casos extremos, o apelo à intervenção da autoridade policial.
Um daqueles mitos é que o advento da ciência moderna substituiu, ao puro raciocínio silogístico, o método indutivo. Joseph de Maistre demonstrou a completa absurdidade dessa alegação no seu Exame da Filosofia de Bacon, obra póstuma publicada em 1836, mas ninguém lhe prestou muita atenção, porque de Maistre, um esquisitão de marca, tinha a especial capacidade de desagradar aos maçons e progressistas por ser católico e aos católicos por ser maçom.
David Hume, sem tocar na questão histórica, já havia feito picadinho das pretensões da indução, mas, como não colocava nada no lugar dela, foi recebido com desconversas piedosas da parte daqueles que, sem ela, se sentiam nus e desamparados. Foi só no século 20 que, juntas, a confiança na indução e o empenho de fazer dela a marca distintiva da ciência moderna foram sepultados de vez no melhor livro de Sir Karl Popper, A Lógica da Pesquisa Científica (1934), onde ele demonstrou que a indução nada vale sem um raciocínio silogístico prévio que a sustente, que portanto o método da ciência era ainda, no fundo, o bom e velho silogismo analítico de Aristóteles.
Mas, popularmente, o mito continua vivo e passa bem, e não só se mostra duro de matar como alimenta e reforça, por contágio, a subsistência de outros tantos mitos irmãos e congêneres, que às vezes saltam as fronteiras da cultura de massas e penetram nas altas esferas do pensamento.
No seu estudo sobre Bacon em On Modern Origins. Essays in Early Modern Philosophy (Lexington Books, 2004), Richard Kennington falha à sua habitual competência ao escrever esta monstruosidade: “A filosofia e a ciência pré-modernas… não produziram nenhuma tecnologia significativa. Ao contrário, os expoentes do racionalismo no século 17 – Bacon, Descartes, Hobbes e Locke – são unânimes em declarar que ele pretende dominar a natureza, e portanto criar uma ‘infinidade de artifícios’, para usar a expressão de Descartes, que vão aliviar a condição humana. Seguramente, pode-se dizer que a razão, na sua formulação pós-cartesiana, cumpriu sua promessa.”
A escolha desses pioneiros da tecnologia não poderia ter sido pior. John Locke não fez descoberta nenhuma nas ciências físicas, Hobbes criou uma série de teorias falsas que só são úteis para a comunidade dos humoristas, e Bacon, do qual se pode também dizer coisa idêntica, acabou demonstrando completa ignorância e incompreensão até mesmo da ciência existente no seu tempo, da qual ele fala com o desprezo característico do apedeuta presunçoso.
Thomas Bodley, o fundador da célebre biblioteca de Oxford, escreveu-lhe a respeito: “Não posso compreender as vossas queixas. Jamais se viu mais ardor pelas ciências do que nos nossos dias. Censurais aos homens o negligenciar as experiências, e no globo inteiro não se fazem senão experiências.”
Dos quatro, só Descartes fez alguma coisa pelo progresso da tecnologia, sobretudo com a criação da geometria analítica, mas, no campo estrito das matemáticas, não se pode dizer que tenha superado espetacularmente seus antecessores Viète, Kepler, Galileu, Tycho de Brahe e tantos outros.
É também um tanto ridículo depreciar a tecnologia pré-moderna diante das prodigiosas realizações da arquitetura gótica ou diante do fato de que até hoje a ciência do Egito antigo espanta e desnorteia os investigadores. Mais inexplicável ainda, nessa perspectiva, é que toda a fundamentação teórica da moderna economia capitalista já estivesse pronta entre os escolásticos, alegadamente os piores inimigos da modernidade, dois séculos antes que Adam Smith arranhasse as primeiras noções a respeito.
A relação de causa-e-efeito entre a filosofia racionalista e o progresso tecnológico parece cada vez mais evanescente e subsiste antes como slogan de propaganda do que como realidade histórica. O mais curioso, para não dizer doentio, é que esse slogan seja brandido como arma até mesmo pelos mais ferozes anti-racionalistas, como os discípulos de Nietzsche, de Paul Feyerabend ou de Jacques Derrida. Sepultaram a modernidade mas não cessam de invocar o seu fantasma para assustar cristãos.

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