20 de junho de 2001
Na vastíssima gama de temas analisados pelo intelectual austríaco em Ensaios Reunidos, recém-lançado, percebe-se a gestação do método que construiria a monumental História da Literatura Ocidental e a permanente preocupação com a única investigação realmente importante: a do Universo.
Por Antonio Fernando Borges
Tente o leitor resumir a magnitude e a claridade dos desertos num simples punhado de areia. O esforço lhe escorrerá literalmente entre os dedos, mas ao menos dará uma idéia aproximada do que seja falar do crítico e historiador de arte Otto Maria Carpeaux (1900-1978) nos limites de uma página de jornal. Por mais que o texto se restrinja a seus recém-lançados Ensaios Reunidos (928 págs., R$ 75,00), não são menores os riscos de omissão e de erro. Pois não se trata, apenas, de mais um lançamento editorial de peso: a reedição das obras de Carpeaux – um esforço conjunto do filósofo Olavo de Carvalho e das editoras Topbooks e UniverCidade – é um verdadeiro acontecimento cultural. Representa, sem nenhum exagero, um sopro fresco da mais pura e legítima inteligência, imprescindível neste marasmo de homens e idéias a que se reduziu a vida intelectual brasileira.
Por pertencerem à ordem do imprevisível, os acontecimentos sempre surpreendem. O relançamento das obras de Carpeaux, por exemplo, obriga-nos à incômoda constatação de que, 21 anos após sua morte, a memória de um dos grandes expoentes de nossa cultura continua a receber, de nós, a mais estranha das modalidades de homenagem: o silêncio. Sobre o silêncio, San Juan de la Cruz disse um dia, numa definição comovente, que ele é um dos nomes de Deus. Mas no ruidoso panorama brasileiro, onde a cultura cada vez mais se confunde com o show business, a ausência de uma fortuna crítica, de uma bibliografia ou mesmo de seguidores de Carpeaux chega a sugerir que exista, em torno de seu nome, uma espécie de conspiração diabólica. Sobretudo se levarmos em conta que, uma década antes de morrer, sua figura serviu de escudo e lança no combate ao regime militar, sendo apontada como exemplo de “espírito de luta”, “coragem indômita” e outros clichês. Hoje, em lugar da memória do homem, restam fragmentos suspeitos de um mito.
Certamente, a biografia atribulada de Carpeaux convida à mitificação e à lenda. Nascido Otto Karpfen, de pai judeu e mãe católica, Carpeaux cresceu e se educou na cosmopolita e ilustradíssima Viena do início do século. Além dos cursos de Direito e Filosofia, concluídos por sugestão familiar, o jovem Otto estudou ciências matemáticas (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim). Depois de militar no jornalismo político, converter-se à religião católica e de se tornar o homem de confiança de dois primeiros-ministros (Dolfuss e Schusschnigg), viu-se obrigado a trocar um futuro aparentemente promissor em sua terra pela incerteza do exílio. Em 1938, com a ascensão do nazismo, fugiu com a mulher Helene para a cidade belga de Antuérpia, onde ainda atuou como jornalista. No ano seguinte, sentindo-se ainda pouco seguro frente à escalada hitlerista, viajou para uma terra distante, chamada Brasil.
Se a Áustria talvez tenha perdido um bom quadro político, o Brasil com toda a certeza ganhou um de seus maiores analistas culturais. Em menos de um ano, esse ilustre imigrante – que já conhecia alemão, flamengo, inglês, francês, italiano, espanhol, latim, catalão, galego, provençal e servo-croata – aprendeu a dominar o português, adotando-o definitivamente como seu habitat intelectual, a ponto de se naturalizar brasileiro em 1944. Apto a disputar, por sua inteligência e erudição, prestigiadas cátedras acadêmicas e ambicionados cargos públicos, foi porém no jornalismo que Carpeaux encontrou seu ganha-pão regular, e onde angariou admiradores e amigos, de Aurélio Buarque de Holanda a Graciliano Ramos, de Franklin de Oliveira a Alvaro Lins, de Antonio Callado a Alceu de Amoroso Lima, de Aloysio Gentil a Carlos Drummond de Andrade. Foi também na imprensa que se envolveu em algumas polêmicas, e publicou boa parte de seus artigos e ensaios.
Mas se engana quem imaginar (e essa é outra face do mito) que o resultado dessa vida errante seja uma obra fragmentária e dispersa na fugacidade do jornalismo diário. Pelo contrário: já neste primeiro volume de ensaios, o leitor tem a chance de desfrutar da incomparável sensação de unidade e organicidade que perpassa o essencial dos escritos de Carpeaux, onde se destacam muitas pérolas de inteligência e estilo. Ensaios Reunidos põe novamente em circulação os principais livros de textos curtos publicados pelo mestre austríaco – A Cinza do Purgatório (1942), Origens e Fins (1943), Respostas e Perguntas (1953), Retratos e Leituras (1953), Presenças (1958) e Livros na Mesa (1960) – e neles já se podem encontrar os temas e recursos fundamentais de Carpeaux, mais tarde aplicados na elaboração de sua monumental História da Literatura Ocidental, escrita em 1944-45, mas só publicada no final da década de 50.
Seria um absurdo pretender destacar todos os pontos altos destes Ensaios, num universo de mais de 160 textos, entre artigos breves e ensaios alentados. Mas mais absurdo ainda seria não mencionar alguns deles – como “Jacob Buckhardt, Profeta da Nossa Época”, análise de um dos autores favoritos de Carpeaux; ou o contundente “A Idéia da Universidade e as Idéias das Classes Médias”, que tantos pontos de contato tem com a tese da “rebelião das massas” de Ortega y Gasset; ou, ainda, “A Revolução Européia”, reflexão sobre a etimologia da palavra revolução. Literatura, política, Shakespeare, música, filosofia, Kafka, artes plásticas: quase todas as facetas do espírito humano estão aqui presentes, submetidas à lucidez analítica de Carpeaux. Mas ninguém o acuse de dispersão. A rigor, seu objetivo sempre foi abordar os diferentes aspectos do único tema digno de ser conhecido: o Universo. E, mais do que apenas um estilo, o olhar totalizante de Carpeaux teve sempre, acima de tudo, método.
Não sendo propriamente um teórico, mas sem se limitar à erudição estéril de uma “enciclopédia ambulante”, Carpeaux era na verdade um rigoroso crítico e historiador de arte, filiado a uma determinada tradição teórica em que se cruzam os nomes dos alemães Wilhelm Dilthey e Max Weber e do italiano Benedetto Croce. Trocando em miúdos, poderíamos dizer que seu principal instrumental era o método compreensivo de Dilthey, base de sua “ciência do espírito” (Geisteswissenschaft), corrente bem diferente das ciências humanas e sociais da escola francesa. Para Dilthey, o importante era compreender (mais do que explicar) os fenômenos humanos e sociais, buscando-se para isso não as causas, mas a intenção e o sentido subjacentes a eles.
Em sua aplicação do método compreensivo de Dilthey, Carpeaux procurou levar também em conta as restrições feitas por Weber: o estudo das sociedades e da História não pode se restringir a compreender, mas deve procurar investigar conjuntamente a causa e o sentido oculto. Tanto na História da Literatura quanto nos ensaios e artigos, encontramos então em Carpeaux uma preocupação com referências sociológicas – a nações, classes sociais ou grupos de opinião. Sua análise tende a considerar cada obra como expressão de determinada corrente de opinião e sentimento, mas sem deixar de incorporar um elemento essencial da filosofia croceana: a irredutibilidade de toda obra de arte. Para Carpeaux (via Croce), nenhuma arte se esgota ou se limita à corrente ou classe social que a produziu. Como se vê, mesmo numa descrição apressada, não há como negar complexidade e sofisticação ao pensamento de Carpeaux, responsável por uma injeção de brilho e lucidez em nossa crítica literária, que durante algum tempo transformou o jornalismo cultural brasileiro em coisa séria.
Um homem com tão curiosa biografia e, sobretudo, de tamanha envergadura intelectual constitui matéria-prima suficiente para a construção de um mito. De fato, há quem prefira em Carpeaux os aspectos folclóricos, amparados na simbologia fácil do “judeu errante” e do “cavaleiro solitário”. Mas como toda mitificação é também, em geral, a ante-sala do embuste, o autor do estudo introdutório, Olavo de Carvalho (responsável também pela organização do volume), prefere nos oferecer um generoso retrato de corpo inteiro do grande crítico e historiador, na plenitude de seus erros e acertos – quer dizer, em toda a sua grandeza. Entre as virtudes essenciais dos grandes homens de espírito, destacavam-se em Carpeaux, por exemplo, sua enorme capacidade de concentração intelectual, sua severa disciplina interior e um incorruptível desprezo pelas diversões mundanas. Dentre os pontos fracos, Olavo aponta sua carência afetiva incorrigível (embora compreensível em alguém tão perseguido e difamado como Carpeaux), além, é claro, do idealismo político, veneno que devorou o gênio nos seus últimos anos de vida, mergulhando-o em mediocridade e amargura.
Corria o final da década de 60. Decidido a abandonar a crítica literária (“o círculo dos amigos da literatura”), para se dedicar à luta política (“meu coração está agora em outra parte”, escreveu na época), Carpeaux mergulhou em cheio no turbilhão do imediatismo ideológico. Sem maiores explicações, trocou o diálogo com o espírito, ao qual dedicara toda uma vida, pelo combate político fugaz. Acabou pagando caro por isso, na medida em que trocou a inteligência prolífica pela esterilidade e o silêncio. As dezenas de artigos que escreveu, no calor da hora, para boletins semiclandestinos e publicações da chamada imprensa nanica, dão uma triste mostra da indigência intelectual e da decomposição emocional a que estava reduzido.
Àquela altura, Carpeaux era já um homem alquebrado e irremediavelmente carente, a ponto de sucumbir às pressões, convites e lisonjas de líderes estudantis e intelectuais gauchistas que, décadas antes, ele teria reduzido a pó, com sua pena ferina e afiada. Na raiz dessa decadência estava, por certo, sua profunda crise religiosa: de católico convicto, parecia agora transformado num ateu desfibrado, protegido pela capa misteriosa de um agnosticismo amedrontado e sem muita convicção. Foi esse último Carpeaux – e justamente o mais fraco – que a intelectualidade brasileira de esquerda adotou como ícone. E talvez seja ainda este o Carpeaux que exista como referência para as gerações mais novas. Que este mesmo ambiente político-intelectual não se mostre interessado em recuperar a figura completa de Carpeaux, preferindo deixar no ar fragmentos equívocos dessa faceta episódica de um intelectual de tamanho quilate: eis o que admira e consterna.
Tudo isso só faz aumentar a importância desse relançamento, um esforço louvável para impedir que o silêncio ocupe o lugar da verdade na memória dos homens. Parece, no entanto, que o silêncio ainda insiste em levar a melhor, haja vista a estranha receptividade que estes Ensaios Reunidos vêm recebendo em nossa imprensa. Talvez imobilizados pela grandiosidade do projeto, quem sabe incapazes de reconhecer nestes textos o “Carpeaux político”, e certamente intimidados pela alta temperatura erudita do material apresentado, o fato é que, até o momento, nossos críticos e jornalistas não têm arriscado muito além do anedótico e do legendário de praxe. Em geral, as resenhas sobre o livro se limitam a acumular adjetivos elogiosos ao autor e a enumerar alguns aspectos, em geral secundários, da personalidade de Carpeaux. É como se sentissem incomodados pela grandeza daquilo que é inegavelmente grande e tivessem pressa em reduzi-lo à sua própria e miserável dimensão. Só que Carpeaux merece muito mais do que elogios: seu trabalho (para não dizer sua memória) exige compreensão e respeito.
O pecado maior, no entanto, vem sendo sistematicamente cometido contra Olavo de Carvalho, responsável pela compilação e fixação dos textos, mas sobretudo pelo substancioso estudo que abre o volume. A maioria esmagadora das resenhas e artigos dedicados ao lançamento do livro age como se se tratasse de uma edição anônima, ou fruto de alguma imponderável “geração espontânea”. Uma omissão imperdoável, com elevado teor de injustiça: afinal, mais do que simples prefácio, o ensaio de Olavo constitui um capítulo fundamental para o entendimento de todo o livro – além de representar a primeira análise extensa e de conjunto da obra de Carpeaux promovida em língua portuguesa.
Como um crítico e intérprete digno deste nome, Olavo de Carvalho enriquece a obra que estuda. E, sem recorrer a uma adjetivação encomiástica vazia, preocupa-se em restituir ao ensaísta e historiador sua verdadeira importância. Carpeaux ressurge assim, não como simples divulgador de autores estrangeiros, mas como um consistente homem de idéias. Por conta disso, a História da Literatura Ocidental é muito mais do que uma contribuição de Dilthey & Cia. à cultura brasileira: representa, conclui Olavo, “uma portentosa contribuição brasileira à Geiteswisseschaft”. Ironicamente, parece que tentam erguer em torno de Olavo de Carvalho a mesma cortina de silêncio dedicada até então ao intelectual austríaco. Se com isso querem dar a entender, de maneira tortuosa e excêntrica (e sem jamais o admitirem, é claro), que finalmente Carpeaux encontrou alguém à sua altura, digno do mesmo extravagante tributo, essa atitude não deixa de ser uma repetição da velha “homenagem” – a hipocrisia – que o vício presta à virtude…
Impossível fazer caber o mar num copo de água salgada. Mesmo assim, não custa imaginar que esta resenha seja um esboço digno de Otto Maria Carpeaux, capaz de funcionar como um convite à leitura de sua obra. A esperança, afinal, além de ser uma das três grandes virtudes, é sempre um delicioso consolo.