Gilberto Freyre

Nota de O. de C. – Quem sugeriu este texto de Gilberto Freyre para as Leituras Recomendadas foi o meu aluno Cássio Pereira Lima, de São Paulo, que me enviou, com ele, a seguinte carta:

15 de agosto de 2000

Prezado amigo e mestre Olavo de Carvalho

Encaminho-lhe, em anexo, o artigo de Gilberto Freyre intitulado “O Fator Racial na Política Contemporânea”, publicado em 1982, cuja conclusão converge para a tese que você tem enfaticamente demonstrado quanto à bem sucedida forma de integração racial ocorrida no Brasil, em que pesem os esforços divisionistas fomentados pelos patrocinadores da “affirmative action” no país. Conforme dirá Gilberto Freyre, a prevalência do fator cultural em detrimento do apego ao sentimento de raça constitui a base do sucesso brasileiro. Nosso modelo é exemplo para o mundo e, no entanto, hoje estamos sendo ludibriados por mercadores de ilusões que nos oferecem dinheiro para cairmos em desgraça. Sendo assim, resta-me cumprimentá-lo pelo seu abnegado empenho em despertar o país da letargia intelectual, resgatando-o da condição de gado tangido para o abismo e oferecendo-lhe não a quimera do direito a quotas raciais, mas a serena quota de orgulho e lucidez lastreada em soluções práticas desenvolvidas em 500 anos de história, que os ditos “civilizados” buscam em vão.

Um grande abraço,

Cássio Pereira Lima

Não se tem de aceitar a fórmula francesa, tornada famosa por Charles Maurras – Politique d’abord! – como expressão suprema ou absoluta em Sociologia da Política, para reconhecer-se a importância do comportamento político no mundo em que agora vivemos. É um mundo no qual a política está desempenhando papel extremamente importante e, em alguns assuntos, realmente decisivo. Muito se diz ainda sobre a importância da economia tanto no mundo contemporâneo ocidental quanto no não-ocidental; e ninguém nega a importância desse fator. Nem a religião deixou de ser força considerável entre os homens contemporâneos por terem a ciência e a tecnologia atingido tão imenso poder entre eles. Todas essas forças atuam, no momento atual, como fatores de influência nas várias culturas nacionais a regionais, que estejam em diferentes estágios de desenvolvimento. Cada força está em relação particular ou específica para cada um desses estágios de desenvolvimento cultural ou de situação social ou regional.

Há, porém, um aspecto desses desenvolvimentos, comum a todos eles: a direção política, ou o estilo ou a forma de direção política, que está sendo dada não apenas a cada desenvolvimento nacional ou regional, mas à sua crescente interdependência. Com relação a esse ponto, é difícil para o sociólogo ou para o antropólogo social, não concordar que, numa cultura, em particular, nacional, ou nas relações internacionais, em geral, possa ser esse estilo, de algum modo, mais importante do que o conteúdo. Ou que a substância. Como diz, desse estilo, moderno cientista político, ele “racionaliza um ânimo”; a esse ânimo pode ser – e realmente está sendo em considerável número de casos contemporâneos – um ânimo de “vingança”.

Naturalmente essa racionalização pode ser, em alguns desses casos, mais aparente do que real – a irracionalidade do conteúdo sendo demasiadamente poderosa para ser facilmente dominada por qualquer tipo de racionalização formal; mas se ela funciona como racionalização – pois mesmo uma racionalização pode tornar-se, paradoxalmente, um mito – para a maioria dos povos que ela afeta, pode ser aceita como sociologicamente efetiva. Para o sociólogo, como sabemos, os mitos podem ser, em alguns casos, realidades: realidades sociológicas condicionadas por tempo específico; e válidas em espaços específicos. A raça tem sido, no passado, e continua a ser – sem dúvida o é intensamente no momento atual – importante fator em política. Isto não apenas por causa de sua importância como conteúdo social, mas por causa, também, e em alguns casos, principalmente, do que nessa palavra, semanticamente vaga, contém de sugestões ou implicações emocionais, psicológicas, econômicas, religiosas. Tais implicações podem ser usadas e abusadas no que um perspicaz analista da natureza humana projetada na política, o Professor James C. Davies, descreve como “as relações estatísticas mais íntimas entre os governantes e o público”. Tal não sucede apenas com as “relações estatísticas” mais amplas, de caráter político, com conteúdos sociais ou culturais gerais: parece ser verdade, também, daquelas relações, do mesmo caráter, entre os governantes de um grupo nacional ou regional e outros grupos, nacionais ou regionais. Nesse campo, pode servir e realmente tem servido de lógica não apenas para promoção, dominação, competição, para propósitos nacionais ou nacionalísticos, porém, como tem sido já sugerido, para vingança: aspecto dramático do papel que a raça está desempenhando na política contemporânea.

Raça e vingança tornaram-se estritamente associadas no política contemporânea. O mais notável exemplo dessa associação foi o racismo dos governantes nazistas da Alemanha. Este foi um racismo que se tornou genocida com relação aos judeus mas que incluía ainda eslavos e se dirigia, também, através da retórica nem sempre puramente demagógica de Hitler, contra o que ele descreveu certa vez como os “mestiços corruptos” da América Latina. Foi um racismo que chegou ao ponto de tentar promover a glorificação de uma mítica “raça” superior branca, ariana, nórdica, e condenar, como incapazes de autogoverno, grupos étnicos não-arianos, incluindo nesses grupos incapazes, aqueles que se diz ter Hitler descrito como governados por mestiços corruptos. Exemplos mais recentes da associação de raça a vingança são aqueles que nos vêm dos grupos étnicos do Ásia e África e também dos Estados Unidos. Para estes um novo status político – aquele de estados nacionais – em alguns casos, e a luta pela total cidadania, ou por separatismo, de grupo étnico, em outros casos – está lhes dando oportunidade para a expressão de vingança contra a tutelagem racial do passado e a antiga subordinação a grupos brancos. Essa expressão é, se não sempre um comportamento político, um comportamento em parte político. Em parte, porém, é não-político: sócio-psicológico mais do que político; e, como tal, expressão, em alguns casos, do uma ansiedade, um medo, uma frustração, uma insegurança tão crua, que muito pouco estilo de comportamento político o caracteriza; e também muito pouca racionalização em plano político.

Esse tipo de comportamento não esteve inteiramente ausente da Revolução Mexicana de 1910: de sua primeira explosão como movimento não apenas político mas sociocultural e econômico – embora seu aspecto político não deva ser desprezado. Foi a Revolução Mexicana um movimento no qual a raça não se pode dizer ter sido fator insignificante: nem o ânimo de vingança, condicionada ou estimulada pela presença desse fator, aspecto desprezível. Essa Revolução – a Mexicana – ainda continua: apenas ela está deixando de ser mexicana e se tornando peruana e boliviana.

O aprismo vem sendo a racionalização da Revolução Mexicana num plano sociológico-político mais amplo: indolatinoamericano.

Deve ser ressaltado que a vingança de raça, nessas revoluções indolatinoamericanas, quando associada com cultura, precisa de ser interpretada como tendo significado, e significando ainda, protesto contra a ausência da maioria dos nativos – dos mexicanos indígenas e agora, talvez, de um modo mais trágico, de peruanos e bolivianos também indígenas, das vantagens de mudança tecnológica. Essa ausência tem colocado, e ainda coloca, grande parte da população indígena do México, do Peru e da Bolívia numa situação de não-participantes ou de participantes muito secundários, não apenas do controle político dos negócios mexicanos ou peruanos ou bolivianos por mexicanos ou peruanos ou bolivianos mas do desenvolvimento daquelas sociedades como Estados nacionais modernos e civilizações modernas em regiões não-européias. Daí serem, como estados nacionais, em grande parte, fictícios, como cópias de modelos europeus ou anglo-americanos.

Uma dos razões pare a desmoralização dessa “europeidade” fictícia ou aparente é um desenvolvimento biológico, em anos recentes, afetando aquela parte do mundo, bem como outras populações não-brancas, de conseqüências sociológicas que estão começando a alcançar expressão quase política, de considerável importância no futuro humano: refiro-me à sensacional expansão de população que está ocorrendo nos países latino-americanos de origem não-européia, e, em alguns casos, de cultura não-européia, como sua cultura predominante, força quantitativa e mesmo qualitativa tal, em países que não atraem mais imigrantes europeus em grandes números, que se pode falar, agora, de um começo de considerável deseuropeização, em certos aspectos sociais e culturais, da América Latina, bem como de um começo de desarianização, em termos raciais, de sua população. Realmente, pode-se falar de uma “preamar de cor” – pare usar expressão bem conhecida – na população latinoamericana. O mesmo parece estar ocorrendo em outras partes não-européias e agora quase inteiramente não-brancas do mundo, onde ocorreu, durante o século XIX, através de imigração de europeus a dominação européia, forte aumento de europeus e de brancos, como etnia, e de seus valores como cultura. O futuro se anuncia o oposto desse passado ainda recente.

Dos latinoamericanos – artistas, escritores, antropólogos, sociólogos, economistas, educadores, líderes religiosos, arquitetos, agrônomos – muitos estão, agora, tornando-se crescente extra-europeus, em seus esforços criadores, em suas análises e interpretações de suas situações naturais e humanas, em sua expressão do que seja não-europeu em sua experiência, e em suas aspirações e projetos para o futuro, embora sem repudiar, em numerosos casos, valores e técnicas européias ou angloamericanas. Alguns desses valores e técnicas já foram assimilados pelos seus antepassados ou são – pensam eles – de evidente vantagem para seu desenvolvimento presente ou para seu futuro. Nessa atitude, raça – a consciência, da parte de numerosos latinoamericanos, de serem descendentes de raça não-européias – não mais está sendo sentida por eles como uma humilhação mas sendo aceita como vantagem, à base psicológica, ou ideológica ou, talvez, em alguns casos, retórica, de que os latinoamericanos podem estar criando o que o sociólogo mexicano, José Vasconcelos, considerou, com excessiva ênfase “raça cósmica”; ou para o que um outro latinoamericano, igualmente entusiasta da mistura racial, descreve, em ensaio recente, como a “verdadeira raça sintética do futuro”. Essa racionalização ou idealização de mistura racial envolve uma concepção do desenvolvimento da América Latina como comunidade multi-racial, continental, na qual a tendência seria para as várias raças viverem, não vidas étnicas e culturais separadas, mas unidas. Unidos os seus valores, e as suas tradições mais características, bem como misturados seus sangues, para a formação de novos tipos de homens e de novas formas de cultura no mais amplo sentido sociológico, ou antropológico de cultura. Se essa tendência está se tornando tão significante sob a forma de tendência – apenas sob a forma de tendência – como alguns analistas da situação racial e cultural da América Latina pensam que está se tornando, então não é difícil compreender por que, no Brasil, o uso da palavra moreno, agora muito flexível ou elástico, está se tornando um dos mais expressivos acontecimentos semântico-sociológicos que já caracterizaram o desenvolvimento do América Portuguesa como sociedade cuja composição multi-racial está, de modo crescente, se constituindo no que um inventor de novas palavras poderia, com algum arrojo, descrever como metarracial. Isto é, uma sociedade onde em vez da preocupação sociológica com caracterizações minuciosas de tipos raciais ou de nuances intermediários, entre asses tipos, – entre branco e preto, branco e vermelho, branco e amarelo – começa a ser para aqueles membros do sociedade ou comunidade brasileira, não absolutamente brancos, nem absolutamente de pele vermelha nem absolutamente amarelos, para serem descritos, e eles próprios se considerarem sem outra discriminação de cor, como “morenos”. Essa palavra foi originalmente usada, na língua portuguesa, para descrever homens e mulheres de compleição mourisca e, depois, especialmente aplicada a morenos brancos em contrastes com louros ou ruivos. A mesma palavra, todavia, está tendo agora um uso sociologicamente flexível ou biologicamente elástico – tão elástico que mesmo negros retintamente pretos começam agora a ser descritos, no Brasil, como morenos, não tanto porque a palavra negro ou a palavra mulato sejam palavras que, para os brasileiros típicos ou castiços, soem como caracterizações puramente raciais, como soam aos ouvidos dos europeus – especialmente dos anglo-saxões – mas porque a palavra negro, aos ouvidos dos brasileiros, e mesmo a palavra mulato, ainda soam, em numerosos casos, como equivalente de escravo: uma sobrevivência verbal daquele passado, não tão remoto, quando se dizia que um proprietário de escravos no Brasil possuía, não tantos escravos, mas tantos negros ou tantos pretos ou tantos cabras: mesmo quando os escravos eram de uma cor mais clara do que a dos seus proprietários. O fato, todavia, é que a palavra negro está começando a significar para numerosos latinoamericanos algo que tem pouco a ver com escravidão: uma raça e uma cultura mais antiga do que a América espanhola ou a portuguesa. Isto pode ser, em parte, o resultado do que está ocorrendo na África negra: não no ex-Congo Belga, naturalmente, mas em áreas tais como a Nigéria e o Senegal, onde os negros já revelam capacidade para autogoverno, para originalidade nacional. Parece a alguns de nós que é tendência saudável, essa, da parte de novas elites da África, da Ásia e da América Latina, a de seguirem, e estimularem entre as populações sob sua influência, ou liderança, o que os franceses chamam “un retour aux sources”.

Esse “retour aux sources” pode envolver orgulho racial exagerado da parte de povos que foram, por séculos, oprimidos – ou se consideravam oprimidos pelos brancos e pelo seu etnocentrismo igualmente exagerado e em alguns casos, brutalmente imperial. Porém dos novos líderes políticos, que se animam a conduzir novas nações, ou quase nações, para novos caminhos de desenvolvimento nacional e expressão nacional, alguns poderão agir de tal modo que lhes será possível harmonizar extremos, usando o orgulho racial, ou cultural-racial, apenas na medida em que posse estimular criatividade cultural ou originalidade política. Semelhante proceder se baseava não apenas em “retour aux sources” mas no uso inteligente de modelos, técnicas e métodos estrangeiros, brancos e amarelos, comunistas e capitalistas – adaptados às necessidades e aspirações destas novas nações ou quase nações.

Nessa tarefa os líderes políticos necessitarão da ajuda de cientistas sociais, de educadores, de humanistas, de líderes religiosos. Tem de ser, predominantemente, uma tarefa de arte política, na qual o orgulho racial-cultural poderá ser usado, mas não deve ser abusado. Ninguém, com um mínimo de objetividade sociológica, deve negar a povos que, por séculos, foram feridos em seu orgulho racial por um esforço sistemático, da parte de alguns de seus opressores, ou de destruição ou de desmoralização de alguns dos mais íntimos valores culturais associados com pretensas raças inferiores, a reação que agora se verifica contra possíveis sobrevivências oblíquas de tais tipos de opressão. Reação através, por vezes, de formas extremas de expressarem esses povos sua consciência racial à de valores ou estilos culturais. Gradualmente, todavia, esses mesmos povos precisarão de ser conduzidos por líderes menos demagógicos que vários dos atuais líderes mais objetivos que façam os seus liderados ver as coisas como realmente elas são. Seus líderes políticos poderiam, mesmo agora, estar orientando sua ação política de modo a minimizar a importância que tem sido recentemente dada, a ainda está sendo dada, ao fator puramente racial; e a magnificar a importância que deve, de modo crescente, ser dado ao fator propriamente cultural. A raça estará, então – raça, não no seu sentido justo mas como aquela super-realidade exaltada de modo mítico e místico pelos nazistas como a força física e mental com específica missão política e cultural – tomando o lugar de classe, como fator na política contemporânea? Possivelmente, em não pequeno número de casos, sim. Por alguns líderes do Oriente, certamente, numa evidente distorção do Comunismo e de tradicional pelo Comunismo do Proletariado, qualquer que seja a raça do Proletário, como o grande gigante oprimido a ser redimido. Isto também está sendo feito por alguns líderes políticos de alguns povos não-Orientais e mesmo por uns tantos povos brancos.

Por outro lado, a automação está reduzindo tão rigorosamente, mesmo em algumas áreas não-européias, o tempo de trabalho normal, entre os homens, que uma “Classe Trabalhadora”, como tal, um Proletariado, como foi glorificado até recentemente por oradores socialistas revolucionários, parece ser cada vez menos uma realidade sociológica com específico significado dinamicamente político. Enquanto a Praça, seja ela mito biológico ou não, até onde sua expressão mental ou cultural se refira, está se tornando proeminente, na política nacional ou internacional, como força atuantemente psicológica: e como tal, assimilando algum do poder até recentemente ligado quase inteiramente à “Classe Trabalhadora” revolucionária. Pode ser mesmo sugerido, como veremos adiante, que dos novos líderes políticos na Ásia, África, América, alguns demonstrem, atualmente certa tendência, não para pôr a Raça a serviço de uma ideologia de Classe rígida, com ênfase total numa guerra de Classes, mas para por uma ideologia de Classe a serviço de uma mística racial revolucionária, da parte de homens ou de grupos cujo principal interesse seja lutar pela oportunidade de nações com populações pretas ou amarelas, ou predominantemente de cor, desenvolverem “seus próprios sistemas econômicos e políticos, inspiradas, em grande parte, em tradições racial-culturais e mitos, embora super-racial na maioria de suas técnicas.

O aspecto moderno mais dramático na política, nacional ou internacional, não é mais aquele de uma Burguesia que se considerasse sob a ameaça de um Proletariado em revolta violenta contra ela, Burguesia, como classe predominante ou privilegiada, mas aquele do mundo do Homem branco, agora em posição defensiva, mais do que agressiva, em face de povos não-brancos. Pois é um mundo, aquele do Homem branco, que se considera sob a ameaça de vasta revolta multi-racial da parte de povos não-brancos. É através de uma tal revolta multi-racial que populações nativas, em áreas não-européias, estão se erguendo, política e subpoliticamente, contra o que essas populações – amarelas, pardas, pretas, mistas -consideram ser, e terem sido, por anos, e mesmo por séculos, não apenas predominância exagerada, mas exploração brutal, pelo Homem branco, de seus recursos, de sua energia, de seu trabalho e, em algumas áreas, opressão sistemática e destruição até metódica daqueles valores culturais mais ligados a suas situações ou condições raciais não-européias ou não-brancas. Logo após a Segunda Grande Guerra, o Professor Herbert von Beckerath escreveu, em admirável ensaio sobre as possíveis novas relações da civilização branca com novas situações em áreas não-ocidentais ou não-européias: “O caminho do mundo do Homem branco de 1914 e mesmo da década de 30 está fechado”. Ele expressava, então, seu ponto de vista de que a nova “civilização poderia ser vital e poderia ser permanente apenas assumindo diferentes cores nacionais” – e por implicação, ainda raciais e culturais – desde que “não podemos suprimir as cores a manter o espectro”.

O fato é que nas últimas duas décadas, as cores nacionais têm se tornado, em considerável número de casos, cores raciais. O mundo já não é um mundo do Homem branco com uma civilização branco imperial em face de povos mais ou menos coloniais, porém, de modo crescente, toda uma combinação política, mais ou menos pacífica, mais ou menos bem ajustada, de estados nacionais, alguns antigos, alguns jovens, que são também caracterizados por suas situações raciais e pela sua consciência, sobretudo da parte da maioria das populações destes estados nacionais novos, de sua raça ou de sua cultura associada com sua raça. Mais, talvez, para suas situações raciais ou culturais, do que para sua condição nacional, formal ou meramente política. Se é assim que o mundo tem se desenvolvido nas últimas duas décadas, com um declínio, na segunda metade do século XX, do processo de sua internacionalização – processo superado por outros desenvolvimentos, mesmo com a mística poderosa e supernacional do Proletariado da teoria marxista ultrapassada pela mística das raças a serem redimidas, através de soluções nacionais ou estreitamente nacionalistas – é fácil compreender porque Raça, com R maiúsculo, tem tomado largamente o lugar de Classe, com C grande, como força politicamente dinâmica e, em alguns casos, revolucionária. A diferenciação estreitamente nacional, por um lado, e seu contrário, isto é a unificação super-nacional, de grupos humanos, à medida que esses grupos não atravessem fase de transição difícil de um status colonial para um nacional, por outro lado, ambos vêm tomando a redenção racial e a guerra racial, mais do que a guerra de classe, como sua principal motivação e como seu principal instrumento de ação ou de luta. Pois Raça, nestas últimas duas décadas, tem agido de ambos os modos: contribuindo para a diferenciação – separando rigorosamente não-europeus não só de europeus como entre si – e contribuindo para a unificação, do grupos raciais afins, através de movimentos como o Pan-asianismo, o Pan-africanismo, isto é, Pan-africanismo negro a Panlatino-americanismo. Este – o Panlatino-americanismo – é movimento baseado na tradição de relação ibérica com ameríndios que, racialmente, resultaria num tipo racial híbrido indolatinoamericano e, naturalmente, numa cultura híbrida, indolatinoamericana, associada com esse tipo racial, com a cultura podendo ser mais compreensiva do que o tipo racial híbrido. O Panlatino-americano, quando indo-americano, vem tendo, porém, um tipo racial híbrido como seu símbolo, com considerável tendência para glorificação do elemento índio, ou ameríndio, da composição euroamericana. Glorificação por vezes mais retórica do que efetiva.

Há no mundo moderno crescente desenvolvimento de um tipo mestiço, sob diferentes expressões ou nuances e através de um número já considerável de culturas também mestiças que torna a simples divisão étnica, cultural ou política do mundo, entre brancos e pretos, amarelos ou vermelhos, puros, divisão inadequada. Mesmo alguns campeões de certos movimentos racistas em favor de uma raça preta pura ou de uma cultura negroamericana pura, são mestiços. Mestiços são alguns dos mais capazes líderes de algumas das novas nações. Pode-se sugerir mesmo que os mestiços estão, talvez, se tornando a força decisiva, política e cultural, em parte considerável do mundo; e que os gostos estéticos humanos com relação à forma humana e, particularmente, à beleza feminina, estão sendo grandemente afetados pela crescente mistura racial que está se processando não apenas em grandes áreas continentais como é a do Brasil, mas, também, em várias outras. Esse processo está produzindo combinações de forma e de cor, às quais não mais se está dando ênfase nos seus possíveis efeitos, em alguns casos, cacogênicos e negativos, mas aos seus efeitos às vezes impressionantemente eugênicos; e, daí, fisicamente estéticos e positivos. Sou dos que pensam que esse aspecto estático não deve ser subestimado: sua crescente valorização entre diferentes grupos étnicos e diferentes culturas e até por parte de povos dos chamados etnicamente puros, pode contribuir grandemente para dar nova dimensão aos processos de interpenetração cultural e de mistura racial em áreas do mundo onde esse processo tem sido lento ou quase ineficaz.

Como disse recentemente (1963), eminente americano branco dos Estados Unidos, o bem conhecido sociólogo Professor Everett C. Hughes, em mensagem presidencial à Associação Sociológica Americana, a maioria dos americanos dos Estados Unidos “apparently go about tacitly accepting the cliché that whites and Negroes don’t want to marry each other and that white women are never attracted sexually by Negro men, without considering the circumstances in which it would no longer be true (if it is indeed true now)”. E acrescenta, a esse respeito, que certos novelistas, – referindo-se a novelistas americanos dos Estados Unidos – já trataram deste tema “not merely frankly, but with penetration and some sense of the aesthetics of it”. O “aesthetics of it” parece a alguns de nós de crescente importância, desde que o último argumento poderoso contra a mistura racial, agora que as teorias da inferioridade mental dos não-brancos em relação com os brancos, perdeu muito do seu prestígio, era o suposto aspecto cacogênico e repulsivamente híbrido e do maioria dos mestiços.

Esse argumento está, também, perdendo rapidamente seu prestígio e observa-se, no momento, atual decidida tendência dos criadores de modas femininas de Paris e de Roma e, mesmo, da Alemanha, para reinterpretarem as características raciais das mulheres não-brancas, como traços esteticamente positivos, além de eugênicos, nos quais eles se estão inspirando para modas de vestidos, penteados e joalheria a serem adaptados ao próprio mundo branco. Essa adaptação, todavia, está se tornando possível, em grande parte, por tipos mestiços que estão se tornando, no plano estético, uma espécie de mediadores plásticos entre os extremos. E o que está ocorrendo no plano estético está ocorrendo, de algum modo, no plano político. Num número de áreas onde novos estados nacionais estão se desenvolvendo, novas formas políticas – formas políticas mestiças – estão sendo encontradas. Não se trata, por um lado, de retorno passivo a sistemas – se podemos considerá-los sistemas – de governo, tribais, não-brancos e rudes, e nem, por outro lado, de imitações passivas, pelos não-brancos, de modelos puramente europeus ou puramente anglo-americanos. E sim de combinações capazes de atender a situações que sendo pós-tribais não devem ser subeuropéias.

O mesmo é certo de interrelações de grupos distintos da raça branca. Que sirva de exemplo a atual revolta de considerável número de franco-canadenses contra canadenses anglo-saxões. Alguns desses franco-canadenses se consideram, politicamente, o único povo branco colonizado do mundo, e, mais do que isso, um dos poucos povos colonizados, branco ou de cor. Não poucos deles, muito caracteristicamente, vão tão longe, de acordo com o escritor canadense, Mr. Mordecai Richler (Encounter, dezembro, 1964), ao ponto de se identificarem com africanos ressurgentes da África e com os negros americanos – especialmente, talvez, com os pretensos “muçulmanos” dos Estados Unidos – e a se verem como “negros brancos do Canadá”. Tal atitude parece indicar que, atualmente, em movimentos políticos com aspecto racial, alguns brancos estão imitando os negros, enquanto alguns negros estão imitando as brancos com relação a formas demagógicas de controle político ou de oposição política. Mr. Richler nos informa ter ouvido de certo intelectual franco-canadense, aparentemente do movimento político separatista: “Foi quando eu vi pela primeira vez na TV todos aqueles africanos, com seus trajos flamejantes, nas Nações Unidas que pensei: por que não nós também?”. “Negros brancos” ou “‘brancos negros”, de outras áreas do mundo, poderiam, de modo semelhante, vestir-se e agir servindo-se de estilos não-europeus de trajo, para se expressarem politicamente através desses trajos, de gestos e de atos correspondentes aos mesmos. Não seria idéia inteiramente extravagante se os delegados das nações latinoamericanas, brancos, mestiços, ameríndios ou negróides, na Organização das Nações Unidas, seguissem, neste particular, alguns dos africanos ou asianos. Eles contribuiriam, assim, com seus ponchos coloridos, para dar aspecto mais pitoresco às assembléias gerais daquela Organização, bem como para atribuir significado político à sua presença lá, que seria uma espécie de demonstração de sua independência, num assunto tão importante como o trajo, de padrões europeus ou angloamericanos, por um lado, e convenções de raça como expressão física, por outro lado. Pois o “poncho” não é símbolo racial mas cultural.

Alguns franco-canadenses separatistas estão insistindo agora, à base de uma mística racial semelhante àquela agora encontrada entre africanos de novas nações negras, em formar um Estado nacional para si, no qual se daria grande ênfase romântica – ou pseudo-romântica – a valores populares, poéticos, tradicionais franceses; e também, a uma assimilação realista de modernas técnicas industriais e urbanas de origem anglo-saxônica. O fato parece ser que os franco-canadenses já são, sociologicamente, uma cultura dinamicamente mestiça, como os próprios negros dos Estados Unidos e alguns dos negros politicamente conscientes da África e da Ásia são já expressões de culturas mestiças. Todas essas culturas mestiças têm, também, como alguns de seus portadores, considerável número de mestiços biológicos: num caso, de latinos e anglo-saxões, em outros casos, de anglo-saxões e africanos ou de europeus e africanos ou de europeus e asianos e de europeus e ameríndios. Se aparecesse agora novo Marx, ele poderia se dirigir ao crescente número de mestiços, dinamicamente culturais bem como dinamicamente raciais, do mundo, dizendo-lhes: “Mestiços do mundo inteiro, uni-vos!”. Essa união hipotética possivelmente significaria, se ela se desenvolvesse de mera ficção sociológica em algo mais, nova a efetiva presença anti-racista na política internacional. Tal presença poderia, com efeito, expressar-se como corretivo vigoroso a extremos de conflito racial na política contemporânea e como amplo substituto sociológico para uns Pax Romana ou para uma Pax Britannica – formas clássicas de equilíbrio internacional baseadas no domínio de uma raça única, pura ou aparentemente pura – de qualquer modo, enfática no seu etnocentrismo – ou de um tipo singular de civilização – também enfática quanto à sua suposta pureza ou superioridade – sobre todas as outras raças de homens e sobre suas diferentes culturas, vistas como inferiores por essa ou por aquela cultura imperial com pretensões a superior. Significaria interpenetração – sociológica e biológica. E, possivelmente, resultado dessa dupla interpenetração, longe de ser uniformidade, seria saudável combinação de diversidade regional com unidade universal.

É a visão de uma humanidade que, através de crescentes possibilidades para a mistura de seus mais divergentes tipos e para a combinação de seus vários valores culturais, se erguerá acima de ódio racial e preconceitos de casta, de cor e de cultura, visão puramente utópica de um futuro impossível? Está a pretensa “imaginação sociológica” indo longe demais, a esse respeito, num tipo do competição com o pretenso realismo político que insiste em soluções de rígido desenvolvimento paralelo dos grupos étnicos dentro de sociedades multi-raciais? Permanece a Organização das Nações Unidas dividida pela consciência de raça, e mesmo pelos símbolos de raça, entre seus membros, contribuindo assim para um racismo latente, ou potencial, na política contemporânea? Como alguém que, estando de algum modo comprometido com a política, é, principalmente, ou se considera principalmente, com relação a tais problemas como os de raça e cultura, cientista social e, possivelmente, também pensador social e, principalmente, escritor militante, posso estar muito, neste particular, sob a influência da chamada “imaginação sociológica” e mesmo da humanística. Porém minha convicção é que está dentro da responsabilidade dos líderes contemporâneos, tanto de política nacional como de internacional, de favorecer, tanto quanto possível, através não apenas de meios políticos, mas educacionais, religiosos, artísticos e outros, soluções capazes de concorrerem para interpenetração racial, bem como para a cultural. Será o corretivo às tendências, norteamericana ou sul-africana, de segregação politicamente sistemática e legalmente ou sociologicamente efetiva de raças e de culturas, dentro de sociedades bi ou multirraciais.

No que hoje se denomina “Retour aux sources” há tendência, da parte de não-europeus, agora organizados politicamente em estados-nações, ou em busca desse status, de profunda significação política. É algo que desenvolve uma consciência racial no qual os cidadãos desses novos Estados precisam basear suas reivindicações à efetiva nacionalidade. Os franco-canadenses é que estão fazendo como já foi assinalado, não apenas através de movimentos tradicionalistas – volta às origens francesas – mas através de movimento folclórico, que dê ênfase a suas diferenças culturais, dos anglo-saxões: diferenças culturais não inteiramente à parte de diferenças raciais, embora diferenças entre brancos. Movimento semelhante se processa entre os judeus, agora organizados em Estado nacional através de idealização folclórica de uma imagem atlética um tanto remota de juventude judaica racialmente eugênica: a negação do moreno. Movimentos semelhantes têm se processado entre os indoamericanos com relação a um passado ameríndio romanticamente heróico cuja lembrança tem sido mantida através do folclore mais do que através da história. Os povos da África e da Ásia estão agora ocupados em tais movimentos, nos quais a idealização de um futuro não se apresenta inteiramente livre do desejo, da parte de cidadãos de novos Estados, de glorificar virtudes que, sendo culturais, são, no entanto, glorificadas como raciais.

Como ressaltam o Professor Georges Ballandier em seu “Messianismes et Nationalismes en Afrique Noir” (Cahiers internationaux de Sociologie, Paris, XIV, 1953) e o Professor G. M. Sundkler, em Bantu Prophets in South Africa (Londres, 1948), em algumas dessas idealizações, nas quais uma mística racial está associada com aspirações políticas, mesmo os símbolos cristãos têm sido usados ou abusados em reivindicações de caráter étnico-cultural. A crescente tendência de povos de cor não-europeus, cristianizados, para pintar e representar em escultura Cristo, a Virgern Maria, santos, anjos, como pretos, amarelos ou morenos, embora seja tendência saudável do ponto de vista de um Cristianismo universalista e, portanto, pluralista, pode, no entanto, ser abusada para efeitos antes políticos do que religiosos. Essas novas imagens de figuras sagradas podem tornar-se símbolos raciais com propósitos antes predominantemente políticos do que religiosos. Porém não será verdade dessas expressões políticas de racismo, mesmo através de símbolos religiosos, serem resposta a uma apresentação estreitamente etnocêntrica e, predominantemente burguesa e capitalista, do Cristianismo, pelos europeus e não-europeus de cor, com propósitos raciais igualmente políticos e até sócio-econômicos, atrás dessa distorção de uma religião universalista? Não é verdade que para a maioria dos europeus a maioria dos povos de cor era, até recentemente, racialmente inferior, não merecendo ser esses povos tratados como iguais porém como subordinados e inspirando, assim, em alguns desses não-europeus de cor, atitudes, com relação a europeus, derivadas de sentimentos e de contra-motivações de raça, que afinal explodiriam num contra-racismo, por algum tempo defensivo e, mais recentemente, agressivo?

O “comportamento racialmente discriminador” tendo sido, por considerável período de tempo, a política da maioria dos europeus com relação a não-europeus, não é para ser considerado senão humano, embora não racional ou justo, que o comportamento político da maioria dos não-europeus, agora organizados em estados-nações, esteja sendo aumentado por exagerada consciência de raça. Como poderia ser diferente sua reação, a não ser que, por alguma mágica sociológica, se revelassem homens do pretenso tipo social “daltônico”, indiferentes à presença de raça como fator na política? O fato é que, por não pouco tempo, eles e algumas gerações de seus antepassados viveram sob o impacto da dominação política, racial e não-racial, dos europeus sobre não-europeus. Dominação política e em alguns casos exploração econômica. Não devemos nos esquecer de que o próprio conceito de raça, antes como símbolo político ou expressão de ideologia política, do que termo usado pelos antropólogos físicos, é – como nos lembra o Professor Everett C. Hughes em seu ensaio sobre “New Peoples” -“very much the creation of the national movements of Europe in the nineteenthy century”. Isto é, invenção política européia. Os povos que não prezam, de qualquer modo significativo, a pureza racial, porém fazem da miscigenação quase uma política nacional, idealizam um tipo físico nacional? Idealizam. Numerosos brasileiros, por exemplo, idealizam o “Amarelinho” quase ao ponto de fazer dele, de modo um tanto jocoso, não de todo solene, um herói nacional. Quem é o “Amarelinho”? É um mestiço rural, rústico, intuitivo, porém pequeno, pálido, aparentemente o oposto do bruto saudável, embora, de fato, forte, resistente, ágil quanto preciso – espécie de japonês dos trópicos, pela sua glorificada capacidade de vencer, não só a fadiga, a malária, o cansaço, como qualquer competição com gigantes brancos ou europeus ou ianques atléticos: em lutas, em esportes e no amor físico. Pois é parte do mito brasileiro do “Amarelinho” que o mestiço que disfarça seu vigor híbrido em aparência débil é, de fato, um David capaz de derrotar qualquer Golias branco em qualquer contenda: inclusive batalhas sexuais. O mito o torna o Romeu favorito das mulheres: herói discreto, porém que, segundo a lenda, não falha.

Deve ser notado que esta idealização brasileira do “Amarelinho” – idealização curiosa de uma quase caricatura do mestiço – não é “retour aux sources” no plano racial não-europeu – pois isto significaria a idealização de antepassado ameríndio ou negro. Pelo contrário: é glorificação não da pureza racial, mas de raça mista, aparente glorificação, através desse tipo, de um processo dinâmico: o de contínua miscigenação. É um processo que está criando no Brasil e em outras nações, toda uma variedade de tipos racialmente mistos, intermediários do puramente nórdico – há brasileiros que racialmente são nórdicos – ao negro puramente preto ou ao puramente ameríndio ou ao puramente amarelo. Pois a unidade do Brasil – que é admirável num país tão vasto – não depende da pureza racial, como culto ou mística nacional de uniformidade real ou idealizada. Depende antes da lealdade de brasileiros, etnicamente diversificados – amarelinhos ou, mais amplamente “morenos”, embora não faltem à população brasileira louros e nórdicos – a certos valores essencialmente pambrasileiros que são de importância comum a todos. Isto, e não um ideal de pureza racial, parece ser a força decisiva no moderno desenvolvimento do Brasil: ela forma o que é socialmente democrático nesse desenvolvimento e está começando a inspirar, no campo de atitudes internacionais, tendência para os brasileiros serem particularmente simpáticos a outros grupos nacionais racialmente mistos. Atitude política inspirada não pela raça mas pelo crescente desprezo pela raça.

Cerca de 40 anos atrás, o branco angloamericano dos Estados Unidos, Mr. Roy Nash, num dos seus mais penetrantes livros já escritos por observador estrangeiro sobre o Brasil, antecipou-se a outros observadores ao ressaltar que “Portuguese, Negroes and Indians, with a nineteenth century increment of Mediterranea peoples, Central Europeans and Asiatics, have fused into a Brazil thirty million strong”. Para esse futurólogo lúcido, a visão de um povo – agora com oitenta e cinco milhões de habitantes – que surgirá acima de ódio racial, casta e cor, já se tornara realidade – ou começara a se tornar – no Brasil, meio século atrás. Era fusão não reprimida nem por lei nem por costume. “More than in any other place in the world” – acrescentava Mr. Nash -“ready-mixture of the most divergent types of humanity is there injecting meaning into the égalité of Revolutionary France and the human solidarity of philosophers and class conscious proletarians”. Mais: para Mr. Nash o destino edificou no Brasil “a social laboratory which shall reveal the significance of ‘race’ and either confirm or give the lie for all time to the superstition that the admixture of widely different stocks spells degeneration”.

Ao tempo em que Mr. Nash – um anglo-saxão – se expressava de modo tão enfático sobre a miscigenação no Brasil, o uso, pelos brasileiros, da palavra “moreno”, não tinha atingido a extensão e o significado social que vem atingindo em anos recentes. Seu uso contemporâneo deixou para apenas um número muito pequeno de esnobes brasileiros a atitude de se considerarem eles próprios, e muitos dos seus patrícios, puramente brancos, biológica e sociologicamente, e portadores, no Brasil, de cultura puramente européia: a atitude do Boer da África do Sul aplicada por esses esnobes já arcaicos no Brasil. Multirracial na composição étnica de sua população, porém, em extensão considerável, meta-racial na sua consciência, mesmo em seu comportamento – inclusive seu comportamento político – pode se dizer ser a atual situação da sociedade brasileira à medida que ela está se tornando dinamicamente mais extraeuropéia. O que não significa – repita-se – ânimo antieuropeu, ou inteiramente ex-europeu, em sua forma geral, ou em suas formas gerais, da parte do brasileiro de hoje, com relação ao seu ideal de ser sociedade ou civilização. Se tal está ocorrendo no Brasil, então, seu estilo ou sua técnica de desenvolver novo tipo de civilização, com evidentes implicações políticas, pode oferecer umas tantas sugestões valiosas, ou antecipações, se não para todas, para algumas das outras sociedades multirraciais que encaram problemas de integração semelhantes àqueles que o Brasil tem encarado, e está encarando, sem tornar-se vítima de ódio racial ou de preconceito racial em suas expressões extremas ou violentas. Esse estilo envolve interpenetração de culturas, no plano sociológico e, no plano biológico, miscigenação. Envolve também o repúdio a ideologias tais como “negritude”, no seu sentido político-racial mais estreito e, ao próprio indo-americanismo, no seu sentido igualmente político-racial estreito. Pois a tendência do brasileiro é para a suplantação ou o desprezo da “Raça”, como fator decisivo, ou poderosamente condicionante, do comportamento político, pelo de metarraça. O que em tal implica a crescente extensão, entre a gente brasileira, do uso do adjetivo “moreno” para qualificar quem, na população nacional, não for branco.

FREYRE, Gilberto. O fator racial na política contemporânea. Ciência & Trópico. Recife, v.10, n.1, p.19-36, 1982.

 

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