Olavo de Carvalho

14 de agosto de 2000

O debate promovido pelo Instituto Mário Alves no dia 11 de agosto na PUC de São Paulo foi um sucesso em toda a linha, malgrado algumas notas destoantes. Transcorrido num ambiente de notável cordialidade, deu aos participantes a oportunidade de confrontar três interpretações da obra de Gilberto Freyre, todas elas bem fundamentadas.

O dr. Jacob Gorender, um dos mais célebres líderes comunistas brasileiros, foi o primeiro a falar, apresentando um resumo das suas objeções à interpretação gilbertiana do Brasil, publicadas pela primeira vez em O Escravismo Colonial (São Paulo, Ática, 1980).

O Escravismo Colonial é uma das melhoras obras que alguém já escreveu sobre esse período histórico. Não hesito em considerá-la tão importante, mutatis mutandis, quanto Casa Grande & Senzala. Gorender aí discute com todos os intérpretes do Brasil-Colônia, diverge de todos e ganha a parada. Prova que a economia colonial não pode ser definida nem como feudal, nem como patriarcal, nem como capitalista, nem muito menos como simples “economia exportadora”, mas que foi um modo de produção original, o escravismo mercantil, baseado inteiramente na mão-de-obra escrava. No hemisfério Ocidental, o Brasil foi assim o país escravista por excelência.

No meu entender, essa tese está ali provada e bem provada. Discordei apenas das objeções que, dela, Gorender deduzia contra a descrição freyreana da sociedade colonial. Gorender alegava que a “instituição fundamental” desse período fora o escravismo, e não a família patriarcal. Objetei que: 1º a busca da “instituição fundamental” da qual se pudessem deduzir todas as outras é uma preocupação legítima dentro do marxismo, mas não tem sentido no método freyreano, essencialmente pluralista e pragmático, alheio a reduções causais. 2º Casa Grande & Senzala não é obra de história econômica e sim de “história das mentalidades”. Mesmo se o pano-de-fundo econômico da sociedade colonial fosse diferente daquele que Freyre imaginava, isso não impugnava e! m na da a descrição que ele fez da psicologia colonial, tão bem documentada e provada quanto a argumentação econômica de Gorender. 3º Se entre duas teses bem provadas parecia haver uma contradição, essa contradição, por um lado, não impugnava nenhuma das duas, porque as descrições eram feitas desde pontos de vista diferentes e não facilmente articuláveis. De outro lado, essa contradição nos colocava um problema histórico dos mais interessantes – como pôde se desenvolver a mentalidade patriarcal, descrita por Freyre, ao lado do escravismo mercantil diagnosticado por Gorender. Longe de fugir desse problema impugnando arbitrariamente uma das duas teses, deveríamos enfrentá-lo e tentar resolvê-lo, pois aí talvez residisse algo de muito importante para a compreensão da história brasileira. Por exemplo, se é fato que o regime dominante foi o escravismo mercantil, também é fato que houve mais miscigenação aqui do que nos outros países escravistas, e, se a miscigenação não pode ser explicada, obviamente, pelo próprio escravismo mercantil, então ela deve ter tido outras causas, que, atuando independentemente da base econômica e até contra ela, produziram o ambiente psicológico descrito em Casa Grande & Senzala. Que causas? Essa questão era um instigante desafio para os cientistas sociais brasileiros.

O deputado Aldo Rebelo falou por último, apresentando uma eloqüente defesa da obra freyreana e atacando com veemência as tentativas de trocar o modelo brasileiro de integração racial – que nessa obra encontra sua auto-expressão e se torna um valor autoconsciente – pelo modelo americano. Como concordo em gênero, número e grau com a posição do deputado, e como tenho argumentado em favor dela em artigos de jornais e revistas, não preciso resumi-la de novo aqui. Por uma feliz coincidência, eu acabava de enviar a Época mais um artigo sobre o assunto, que estava sendo impresso nas oficinas da Editora Globo enquanto conversávamos na PUC e foi para as bancas na manhã do dia 12.

Uma nota destoante foi dada pelo próprio deputado, quando, gratuitamente, afirmou que a Igreja católica negava que negros e índios tivessem alma – uma inverdade, um absurdo e uma impossibilidade pura e simples, pois a Igreja tinha santos negros canonizados desde dez séculos antes da descoberta do Brasil, e quanto aos índios seria cômico um esforço tão grande da parte da Igreja para catequizar criaturas desprovidas de alma, livres, portanto, da possibilidade das penas infernais.

Atruibuo à pura e simples desinformação essa tirada de mau-gosto, que em si não teve importância no contexto da discussão e que não modifica em nada a imagem positiva de Aldo Rebelo, um dos melhores políticos brasileiros, pelo qual tenho o maior respeito e admiração.

Outra nota desafinada veio de militantes negros enragés, um dos quais disse umas coisas sobre Auschwitz que não compreendi absolutamente, e outro que alegou ser a famosa “família brasileira” uma filha, não do casamento, mas do estupro das negras pelos brancos. Como meu filho Luiz, um característico mulato brasileiro, estivesse na platéia, pedi-lhe que se apresentasse e perguntei ao cidadão se o julgava um produto do estupro, sugerindo-lhe que, se não pudesse defender essa tese ali mesmo, na frente do pai do rapaz, tivesse a amabilidade de ficar calado, o que ele fez sem maiores objeções.

Em todo caso, a apresentação que suscitou mais reações foi a do deputado Rebelo, muito incômoda, é claro, para certo tipo de militantes black subsidiados por fundações norte-americanas. Mesmo assim, essas objeções foram tímidas, pelo simples fato de que seria muito difícil alguém impugnar a tese do deputado sem se desmascarar, no ato, como um adepto do imperialismo global. E quem iria querer fazer isso, diante de uma platéia de duzentos brasileiros?

O Instituto Mário Alves está de parabéns pela iniciativa do debate. A situação do mundo é complicada, ninguém pode pretender tê-la compreendido por inteiro, e a única maneira de lançar alguma luz sobre o assunto é falar francamente. Numa época em que tantos vêm tentando bloquear o debate ou transformá-lo numa pura disputa erística a serviço da luta pelo poder, foi uma grande alegria poder conversar com Aldo Rebelo e Jacob Gorender. Por instantes, senti que estávamos de volta a um outro Brasil, aquele Brasil onde enfezados esquerdistas e obstinados conservadores prodiam trocar idéias – porque tinham idéias – sem ódios, temores ou desconfianças caipiras.

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