Olavo de Carvalho

22 de maio de 2000

Este texto não me pareceu caber em nenhuma das publicações para as quais tenho escrito. Ficou portanto na gaveta, ou melhor, no HD, de onde sai agora direto para esta homepage. – O. de C.

A revista Caros Amigos, de certo sucesso nos últimos tempos, é um mostruário significativo das idéias dominantes na intelligentzia nacional. Como essas idéias não são muitas, um exame da coleção completa basta para por à mostra o inteiro horizonte de consciência dessa gente – um quadro que se notabiliza menos pelo que abrange do que pela imensidão do que deixa fora.

A seleção é, em parte, intencional. Se personalidade quer dizer constância nas escolhas e rejeições, poucas publicações podem se gabar de ter tanta personalidade. Redatores, colaboradores e até entrevistados solidarizam-se num fundo de concordância ao qual a discussão de divergências menores dá o colorido que faz a unanimidade parecer menos de convicções que de atitudes. Isto revela a felicidade na escolha do nome, destinado a vender a imagem da intelectualidade progressista como um círculo de pessoas maravilhosas unidas espontaneamente pela força atrativa de suas virtudes e de seus encantos. Um espírito de companheirismo informal, sublinhado pelo estilo solto e popularesco da linguagem, dá uma tremenda força de sedução persuasiva à idéia subjacente de que todas as pessoas boas e inteligentes fazem parte da patota e se amam perdidamente.

Os jornalistas mais velhos não terão dificuldade em reconhecer aí a ampliação em escala nacional da atmosfera reinante na equipe da velha Realidade, da qual algumas estrelas brilham agora em Caros Amigos como numes tutelares a perpetuar o espírito da coisa. O culto do umbigo comum permitiu que essas pessoas permanecessem unidas ao longo de três décadas, acumulando um sentimento de identidade grupal tão forte que um dia pôde finalmente transbordar do círculo originário para abarcar toda a intelligenzia.

A destreza com que se reproduz essa imagem de edição em edição produz três efeitos bem previsíveis. O primeiro é a automática obtenção da cumplicidade do leitor: atraído pelo convite de juntar-se aos bons para ser um deles, ele logo se incorpora espiritualmente ao time, adquirindo por procuração o estatuto de pessoa maravilhosa.

O segundo incide sobre os infelizes que caiam no desagrado da patota. Num ambiente só de gente linda, qualquer feiúra, por mínima que seja, forma um contraste chocante. Ser reprovado pelos Caros Amigos não é ser criticado na imprensa: é ser expelido da esfera da bondade e do diálogo, é ser excomungado, é ser rejeitado para as trevas exteriores onde tudo é inominável malícia e perversidade. Para complicar ainda mais a situação da vítima, a referência pejorativa aos de fora é feita com aquela desenvoltura de quem se dirige a um círculo de entes queridos que não levam nada a mal. Expressões como “canalha”, “ladrão” e “f. da p.” (por extenso) podem ali ser usadas com a maior inocência, porque ninguém tem a impressão de estar falando em público. O impacto conjugado da intenção e do estilo é mortífero: ai daquele que é odiado em comum pelos que se amam uns aos outros.

O terceiro efeito recai sobre os próprios orquestradores da operação. No ambiente de fusão solidária, as contradições mais explosivas podem ser abrigadas sem dar na vista. Eis como a coisa funciona. O programa geral e o vocabulário são ferozmente antiglobalistas e nacionalistas. Caros Amigos seria, no panorama de neoliberalismo e Nova Ordem Mundial, um emblema de resistência minoritária correspondente ao que foram, na ditadura militar, O Pasquim ou Movimento. Graças ao milagre da unidade sentimental, no entanto, ninguém estranha que ali apareça, encarnando a resistência nacionalista, nada menos que a dupla Boff & Betto, composta de um adepto confesso do poder global e de um notório apologista da New Age, ideologia oficiosa da Nova Ordem Mundial. Também ninguém vê nada de mais em que a guerrilha cultural nacionalista dê o maior apoio a movimentos indígenas que lutam pela transferência de parcelas do nosso território para as mãos de solícitos administradores multinacionais.

Suprimidas da festinha as discussões sobre esses tópicos desagradáveis, o antiglobalismo de Caros Amigos reduz-se a uma retórica feroz dirigida contra alvos perfeitamente inócuos. Da Nova Ordem Mundial, só dois componentes podem ser atacados à vontade: o governo FHC e a velha imagem do Tio Sam já fartamente demonizada pela esquerda nacionalista dos anos 50. O primeiro, coitado, por mais que distribua propaganda marxista para as crianças através do MEC, consta como o emblema mesmo do direitismo hidrófobo só porque diz amém a Bill Clinton e Tony Blair, ídolos das esquerdas nas suas respectivas pátrias. Quanto à segunda, os Amigos estão confiantes em que lutar contra o globalismo é descer a lenha no puritanismo, nos Founding Fathers e em tudo quanto de tradicional e americano vem sendo arrasado pela ideologia politicamente correta da Nova Ordem Mundial. A Nova Ordem, penhorada, agradece: com inimigos como esses, quem precisa de amigos?

Mas, para não dizer que não inovou em nada, um dos últimos números de Caros Amigos, pelas mãos de Gilberto Felisberto de Vasconcellos, traz ao arsenal nacionalista uma descoberta extraída das obras de Silva Mello e destinada a abalar os alicerces do poder global: se os americanos são mais altos, nós temos o peru maior. No mínimo, isso prova de que é injusto acusar o time de ficar olhando somente para o próprio umbigo: ele olha também o que está logo abaixo.

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