Apostila do Seminário de Filosofia
PRIMEIRA AULA
Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994.
Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro
2a parte
Na primeira parte da aula, dei uma idéia geral sobre Aristóteles e sobre nossos motivos para estudá-lo. Agora vou expor o método a ser usado neste curso. Mas antes devo responder à pergunta que um aluno me fez no intervalo, a respeito da natureza matemática dos arquétipos platônicos, questão que é importante para o que estudaremos mais tarde, porque veremos que uma das principais modificações introduzidas por Aristóteles foi justamente a de desgeometrizar, ou desmatematizar, a teoria do conceito, fazendo do pensamento lógico menos uma estrutura formalmente pura do que um método para o conhecimento da realidade efetiva. A explicação da natureza matemática do “mundo das Idéias” encontra-se sobretudo no Timeu, um dos livros mais difíceis e mais interessantes de Platão. O ensinamento de Platão se dividia em duas partes, escrita e oral. O escrito era usado como instrumento de divulgação, sendo o melhor de sua filosofiia reservado para o ensinamento oral. Durante quase dois mil anos, este ensino oral constituiu um dos maiores enigmas da história da filosofia e só muito recentemente, com os progressos da documentação, é que foi possível esboçar uma reconstituição do que teria sido o ensinamento oral de Platão. Reconstituição feita a partir dos testemunhos e depoimentos deixados, e mediante comparação desses materiais com os textos de Platão. Como tudo isto ficou disperso ao longo da história, não havia muitos meios de reunir esse material. No século XX, quando o sistema internacional de documentação chegou a uma perfeição quase luxuosa, foi possível fazer esta reconstituição, empreendida sobretudo por um grande historiador da filosofia italiano chamado Giovanni Reale. Por uma coincidência, um filósofo brasileiro chamado Mário Ferreira dos Santos havia tentado a mesma reconstituição, não por meios histórico-filológicos como Reale, mas sim por meios puramente filosóficos e especulativos, e seus resultados foram singularmente idênticos aos de Reale, só que apresentados quinze anos antes! Mário Ferreira é o único grande filósofo que este país produziu, para o meu gosto o maior dos brasileiros, mas infelizmente o nosso meio universitário continua a ignorá-lo, por um misto de ignorância presunçosa e despeito. Tanto os resultados de Mário Ferreira como os de Reale permitem colocar Platão, com bastante segurança, como herdeiro da escola pitagórica. Em suma, a famosa doutrina das idéias somente se esclarece se entendermos que, para além do mundo das idéias, Platão admitia uma terceira instância, que seria o mundo dos princípios ou leis — o mundo dos modelos matemáticos que estruturam a realidade. Neste caso teríamos não dois, mas três planos: primeiro, o da realidade sensível; segundo, o mundo das idéias, e, terceiro, o mundo das leis ou princípios ( relações matemáticas, basicamente, mas no sentido não-quantitativo das matemáticas, isto é, como lógica pura ). Esta interpretação de Platão é bastante recente na historiografia. Existe em português uma resenha do livro de Giovanni Reale feita pelo Pe. Henrique Lima Vaz na revistaSíntese, de Belo Horizonte. Os estudos filológicos a respeito de Platão e Aristóteles evoluíram muito no século XX. Os estudiosos recentes que deram contribuições substantivas são em grande número. Mas isto nos leva de volta à questão do método.
Progressos da compreensão e progressos da incompreensão: história e filologia.
À medida que nos afastamos, no tempo, de um autor antigo, existe um duplo processo de transformação das idéias que temos acerca dele. Por um lado, nos afastamos das preocupações reais que constituíram o ponto de partida para ele. Na medida em que vivemos uma outra situação social, cultural e psicológica distinta e cada vez mais diferente, temos muitas vezes dificuldade em nos situarmos na motivação de onde o filósofo partiu. Temos outros problemas e outras perguntas — não aquelas de onde partiram Platão e Aristóteles. Neste sentido, tendemos a ver as obras deles como um conjunto de respostas sem as respectivas perguntas. É claro que todo e qualquer texto que se estude subentende uma situação humana, real, de onde emergiu, por necessidade e não por capricho, a sua indagação filosófica, e de onde o autor partiu e para a qual ele apresenta uma reação pessoal, ou uma resposta pessoal. De modo que cada livro antigo é a metade dele mesmo — a outra metade está subentendida na situação, que não vem reeditada junto com o texto. E esta, à medida que o tempo passa, vai-se tornando cada vez mais difícil de imaginarmos com verossimilhança, com uma imaginação vívida. Ou seja, a situação do autor antigo vai-nos parecendo cada vez mais algo mitológico, e nossa compreensão do texto se torna deficiente, na medida em que os atos humanos destituídos de sua motivação nos parecem postiços, esquisitos, sem sentido. Por outro lado, à medida que o tempo passa, os meios de pesquisa, de reconstituição dos textos e dos fatos históricos progridem assustadoramente. Hoje temos uma idéia muito mais correta do que é o conjunto dos textos de Platão ou Aristóteles do que tínhamos quinhentos anos atrás. Hoje em dia existe uma precisão muito maior com relação à cronologia dos escritos. E até certo ponto, saber a ordem cronológica da produção dos escritos é importante para a compreensão da obra. Principalmente no caso de obras que chegaram até nós em estado mais ou menos fragmentário, como é o caso das obras de Aristóteles. No caso de alguns de seus textos, não sabemos bem como eles foram montados. O livro conhecido como Metafísicaresulta de vários enxertos de textos feitos em épocas distintas. Ora, se temos um texto escrito pelo autor aos 28 anos e outro aos 60, tratando mais ou menos do mesmo assunto, podemos subentender uma continuidade de argumentação que na realidade não existe, que foi projetada ali pelo leitor. Do mesmo modo, textos que estão desconectados no seu conteúdo podem ser contemporâneos e corresponder mais ou menos a um idêntico fundo de preocupações. A ciência da filologia, que procura a reconstituição, a ordenação e a compreensão profunda dos textos, referidos à cronologia, à situação histórica etc., é a ciência que vem em nosso socorro neste sentido.
À mesma medida que o decurso do tempo nos torna um filósofo mais ou menos incompreensível, também os progressos da filologia nos fornecem os meios de restaurar artificialmente esta compreensão que vai nos faltando. É uma espécie de compensação artificial da perda natural. Como vitaminas que retardem o envelhecimento. À medida que os textos envelhecem, a filologia trata de rejuvenescê-los.
A incompreensão histórica: historicismo e desistoricismo.
Mas ao mesmo tempo existe outro desgaste mais profundo que nos dificulta a compreensão. A nossa civilização é a primeira que tem acesso a documentos da história de todas as outras civilizações e todos os outros tempos. Desde que começa a se constituir a ciência histórica, a partir do século XVIII, e a moderna filologia que já vinha desde o Renascimento, vamos conseguindo reunir uma documentação cada vez melhor, cada vez mais extensa, cada vez mais depurada a respeito de todas as épocas, lugares e civilizações. A partir do começo deste progresso da ciência histórica é grande a tentação de forjar imaginativamente uma espécie de esquema da unidade do desenvolvimento da história humana, com base nesta documentação reunida. À medida que começa a progredir a ciência histórica, também começa a progredir a filosofia da história ( séculos XVIII e XIX ), que propõe uma visão global do desenvolvimento humano, no sentido, por exemplo, de um progresso em uma determinada direção. É aí que o progresso da ciência histórica é compensado também por um progresso do erro. Porque as primeiras grandes generalizações que a história da filosofia faz são evidentemente erradas, já que sua documentação é insuficiente e não há métodos ou critérios maduros. E à medida que a documentação nos séculos seguintes ( XIX e XX ) progride, tendemos a receber esses documentos já com uma perspectiva viciada pelas primeiras filosofias da história que surgiram. De modo que, por exemplo, a idéia de um progresso linear do conhecimento está tão arraigada na nossa mente hoje, que dificilmente conseguimos ver uma filosofia antiga, exceto como algo que está “situado no seu tempo” e que já não nos diz nada exceto como documento histórico. Como se Aristóteles ou Platão tivessem falado apenas para os gregos, na situação grega, e não para nós. Esta perspectiva é denominada historicista. Situa cada idéia no seu contexto histórico, cultural, social, e fazendo isto, ao mesmo tempo ela nos ajuda a compreender essas idéias em função dos seus motivos, mas por outro lado, ela distancia de nós estes textos, na medida em que os refere às preocupações imediatas das quais brotaram, e distingue radicalmente estas preocupações das nossas: os antigos ficam presos no “seu tempo” e nós no “nosso tempo”, como se os seccionamentos do tempo, na verdade invenções artificiais dos historiadores, fossem distinções reais e como se não houvesse, por trás da irreversibilidade do calendário, sutis intercâmbios de afinidade entre tempos distantes entre si.
A perspectiva historicista, que surge no século XVIII e vai-se afirmando ao longo de todo o século XIX e que está profundamente embutida na nossa mente —- como uma espécie de dogma no qual acreditamos sem exame —- acredita que situar as coisas na sua devida perspectiva temporal é a melhor ou única maneira de compreendê-las. Ora, na medida em que você situa os fatos e as idéias num tempo histórico, você também os relativiza, os torna relativos a esse tempo, e atenua ou diminui a importância, a significação, o valor e a eficácia que possam ter para nós hoje. A compreensão historicista torna-se, por isto, uma verdadeira descompreensão, um afastamento artificial do sentido das mensagens. Ao invés de reviver os valores do passado, ela os enterra no “seu tempo”, deixando-nos fechados na atualidade do presente como numa redoma de sombras.
Este é um problema de método da maior importância para o que vamos ver depois. Faça um modelo em miniatura e imagine que todas as idéias e sentimentos que você teve ao longo de sua vida você referisse exclusivamente e absolutamente à etapa da sua vida onde essas idéias e sentimentos surgiram, negando-lhes qualquer eficácia ou importância na sua vida presente. Por exemplo, se certas crenças ou sentimentos que surgem na infância, você os referisse inteiramente à situação de infância, e os explicasse exclusivamente em função daquele momento, como se a criança que você foi estivesse morta e enterrada. Isto quer dizer que cada idéia que você tem só seria válida para aquele momento, não conservaria nenhuma importância para os momentos seguintes. Por exemplo, na infância ou na adolescência, todos temos certas idéias e valores. A infância cultiva mitos, lendas, heróis, amores. Na adolescência temos grandes ambições e planos. Se depois, aos cinqüenta anos, digamos, fazendo nossa autobiografia, estudando-a “cientificamente”, referimos estas idéias exclusivamente às etapas em que surgiram, tiramos a validade atual que elas possam ter, julgamos a nossa infância com olhos do homem maduro, considerando-o um juiz absoluto de uma infância que já não não pode falar, e que será condenada sem ter sido ouvida, assim como mais tarde olharemos a idéia do homem maduro com a perspectiva do velho que seremos, e esse homem maduro, já não tendo nada o que dizer ao velho, será condenado por este num tribunal onde o réu está sempre ausente. Se, das épocas que vão passando, nada conserva a validade sempre atual de uma primavera que não passa, nossa vida não passa de uma coleção de cadáveres —- ou, pior ainda, de uma sucessão de traições e abandonos. Isto significa que situar as idéias na sua perspectiva histórica, por um lado, é compreendê-las em função do momento, mas por outro lado é chutá-las para aquele momento, e tirar delas a vitalidade que possam ter neste momento. O historicismo, por um lado, nos dá a compreensão da história, mas se ele eleva a história, isto é, o desenvolvimento temporal, a supremo ou único critério do entendimento, ele situa cada idéia no seu tempo e cada idéia só é válida no seu tempo. Ora, se as idéias só fossem válidas no seu tempo, na realidade não seriam válidas para tempo nenhum, porque representariam apenas imagens que passaram pela mente humana e que somente expressam aquele momento, cuja duração pode ser de um século como pode ser de um dia. Ora, se fosse assim, se as idéias expressassem exclusivamente aquele momento, sem nenhuma validade para os momentos seguintes, não poderíamos nem sequer compreendê-las. De modo que o historicismo que cria este afunilamento e refere as idéias aos momentos e situações históricas tem de ser compensado por uma operação inversa, uma espécie de “desistoricismo”, que julgue estas idéias não pelo momento onde surgiram, mas pelo que elas exigem e cobram de nós hoje. Isto é válido para a história do mundo como para a nossa história pessoal. Lembro-me de uma sentença de Alfred de Vigny, grande poeta do Romantismo francês, segundo a qual “uma grande vida é um sonho de infância realizado na idade madura”. Sim, se o homem maduro já não recorda os seus sonhos de infância, ou se, recordando-os, já não sente o apelo da sua mensagem, então como ele irá julgar e compreender a trajetória da sua vida, exceto como uma sucessão de imagens que, não tendo sentido umas para as outras, não formam, juntas, sentido nenhum? Um outro grande escritor, Georges Bernanos, quando lhe perguntaram para quem escrevia, respondeu: “Para o menino que fui.” O menino é o juiz do homem, porque aquilo que vem depois é a realização, ou o fracasso, das expectativas e sonhos de antes.
Ora, se julgarmos a nossa personalidade de hoje à luz das nossas aspirações de infância ou de juventude, freqüentemente o resultado deste julgamento será negativo. Neste sentido, o historicismo é uma espécie de analgésico da consciência, porque ele nos dispensa de prestar satisfações às nossas idéias e projetos antigos, ele secciona a vida de tal modo que ela perde a unidade. Ora, o sentido dos meus atos e da minha vida agora só existe se eu os confrontar com os meus sonhos e projetos do passado. Porque você só pode entender aonde chegou se comparar com aonde queria ir.
Na sua maneira de compreender o pensamento antigo, a maior parte das pessoas ainda está hoje sob o domínio do historicismo. Ou seja, hoje compreendemos muitíssimo bem as idéias de Aristóteles ou de Platão, em função de seu momento e lugar de origem. Mas ainda não realizamos a operação desistoricista, que nos levaria a compreendê-los em função daquilo que eles têm a dizer, não para os gregos, mas para todos os homens, inclusive nós. Conseguimos julgar as suas idéias em função do ponto onde viemos parar, mas ainda não fizemos a operação contrária que é a de julgar a nós mesmos em função de Platão e Aristóteles, ou da antiguidade em geral. Fazemos do nosso tempo o juiz da Antiguidade e jamais convocamos a Antiguidade a depor sobre o nosso tempo. Julgamos, como dizia Karl Kraus, para não sermos julgados. Para corrigir isso, devemos desligar-nos da perspectiva unilateramente temporal e evolutiva, e, invertendo o historicismo, julgar o presente com os critérios do passado.
Esta operação de vai-e-volta foi realizada, por exemplo, em outro sentido —- não temporal, mas espacial —-, na ciência da antropologia. A antropologia começa a surgir no século passado com os viajantes, sobretudo ingleses. Inglês tem esta mania de viajar e se instalar em tudo que é lugar exótico do mundo. Os ingleses vão desenvolvendo a antropologia na medida em que mandam para a Sociedade Científica de Londres informações sobre os hábitos, costumes, valores de todas as sociedades do mundo. Graças a este imenso acúmulo de informações sobre as outras sociedades foi possível de surgir no campo da antropologia o relativismo antropológico. Isto significa que não devemos olhar as outras culturas somente com os olhos da nossa, mas tentar fazer o contrário: olhar-nos também com os olhos da outra cultura. Se o antropólogo inglês está entre os pigmeus da Nova Guiné, não interessa só o que o inglês pensa sobre eles, mas o que eles pensam do inglês. Isto se chamou relativismo antropológico. Também não deve ser absolutizado, transformado num dogma da equivalência de todos os valores, mas é um método útil, porque ajuda a compreender os outros povos nos seus próprios termos.
O nosso historicismo precisa ser compensado por uma espécie de relativismo, não no sentido geográfico, como fizeram os antropólogos, mas no sentido temporal, de olhar o nosso tempo com os olhos de outros tempos. Se existe um relativismo cultural, tem de existir um relativismo histórico também. O próprio historicismo realiza uma relativização, mas no sentido de encaixar cada idéia no “seu tempo” e fazer uma coleção de “idéias-tempo”, cada qual no seu vidrinho cronológico, bem fechadinha e sem contaminação de outros tempos, isto é, todas igualmente neutralizadas e “relativizadas”. Mas, como este tipo de relativismo neutralizante é próprio do nosso tempo e resulta de uma ideologia cientificista que é bem da modernidade, praticá-lo é impor uma perspectiva moderna aos outros tempos, fingindo respeitá-los nas suas respectivas especificidades estanques. Não é isto o que proponho. Proponho julgar o nosso tempo com os olhos de outras épocas, não a título de diletantismo relativista, mas como um meio de autoconhecimento e uma exigência prévia do método científico em história. Neste sentido, a antropologia, que muitas vezes, com base em valores de outras culturas, fez críticas profundas à nossa cultura presente, tem sido mais sensata do que a História, ou pelo menos do que a História do pensamento, onde os valores do presente continuam a medida de todas as coisas.
Se achamos que para ter uma descrição objetiva de uma outra cultura precisamos olhar com uma espécie de dupla via, do nosso ponto de vista e do ponto de vista dela, é evidente que o julgamento de uma outra época implica também esta dupla via. Não olhar apenas o lugar que Platão e Aristóteles ocupam dentro de uma evolução cultural que chegou até nós, mas inverter esta evolução e perguntar o que Platão e Aristóteles diriam vendo o ponto a que chegamos. Esta é uma exigência sine qua non do método científico. A esta fase, os estudos sobre a antiguidade ainda não chegaram. Anuncio isto como ideal futuro. Por enquanto, a quase totalidade dos livros conseguiu apenas reconstituir o mundo grego, situando-o na perspectiva do seu tempo. Mas na mesma medida em que se aperfeiçoa esta visão histórica, esse mundo grego vai-se tornando distante e diferente do nosso, e com isto ele perde gravidade, presença, realidade. É o mesmo que dizer: “Que importância tem a opinião sobre você de um sujeito que mora longe, que você nunca encontrou, e ademais já morreu há muito tempo?” Agora, se o fantasma deste sujeito ressurgir e começar a julgar os seus atos neste momento, ele ganha atualidade, adquire gravidade. As outras culturas — culturas indígenas, por exemplo — ganharam da antropologia este privilégio de poderem julgar a nossa cultura. As consequências práticas disto foram imensas, como se vê pelo crescimento do movimento indigenista e pela incorporação de valores indígenas na cultura atual. Por que este privilégio deveria ser concedido apenas no sentido geográfico, e não no sentido histórico? É simples: por que então certas idéias e valores que decretamos “ultrapassados” mostrariam todo o seu vigor, todo o esplendor da sua juventude imperecível, e cobrariam de nós um dever de perfeição a que o historicismo nos ajuda a fugir.
O método filológico da compreensão dos textos só se tornará completo e perfeito quando à perspectiva historicista acrescentarmos este giro desistoricista. Ou seja, quando o afunilamento que remete o passado para longe for invertido e colocarmos diante de nós esses antigos, como nossos juízes.
Esta será nossa preocupação permanente neste curso. Não entender somente Aristóteles como um fenômeno que aconteceu há 2.400 anos, mas olhar a nós mesmos como um fenômeno que aconteceu 2.400 anos depois de Aristóteles.Como poderíamos reviver a perspectiva dos antigos e torná-los nossos juízes? É muito simples. Pela mesma maneira pela qual você julga sua vida de adulto em função dos seus projetos de criança e adolescente. Você revivifica estes projetos, estes sonhos e pergunta: o que a criança que fui diria de mim hoje? E é somente a partir daí que você pode saber se sua vida foi um fracasso ou um sucesso. Temos de verificar esta perspectiva dos antigos e perguntar: Naquele tempo, o que eles esperavam que acontecesse, ou o que desejavam que acontecesse no futuro? Quais eram os sonhos, projetos, ambições e valores que eles projetavam nas gerações futuras? Que é que eles esperavam da sua posteridade que somos nós? Se sabemos, graças à filologia, à interpretação dos textos e ao historicismo, julgar nossos antepassados, podemos, graças a um esforço de imaginação fundado no mesmo historicismo, tornar atuais novamente as expectativas que os antigos fariam sobre seus descendentes, que somos nós.
Como Aristóteles julgaria a nossa visão do aristotelismo?
Às vezes penso que se Aristóteles visse que, 2.400 anos depois dele, ainda estamos lutando para ver se conseguimos organizar as ciências num sistema orgânico, que ainda estamos discutindo “holismo”, ele acharia que somos muito lerdos e atrasados. Ele diria: “Por que se afastaram tanto desta idéia para ter de voltar a discuti-la 2400 anos depois?” Aristóteles provavelmente apreciaria muito as obras de Edgar Morin, mas estranharia que tivessem sido escritas só no século XX, e não no II ou III. Aristóteles provavelmente julgaria que o progresso na história das idéias é muito tortuoso, muito lento e muito problemático.
Também creio que ele ficaria muito surpreso com a maior parte dos debates que surgiram em torno dele ao longo da História. Ele diria talvez: “Nenhum desses que vocês estão discutindo sou eu. Todos estes Aristóteles que vocês discutiram são sua própria invenção, uma sucessão de Aristóteles imaginários, uns diferentes dos outros, nos quais uns projetam o seu herói e outros o seu antagonista. Uns o divinizam e outros o diabolizam. E ficam lutando com estas sombras. Mas eu não tenho rigorosamente nada a ver com isto. Não sou nem cristão nem anticristão, nem racionalista nem empirista, nem materialista nem idealista, não sou nem um pré-Hegel nem um neo-Platão, nem um anti-isto nem um pró-aquilo, e nada tenho contra nem a favor dos partidos que surgiram depois de mim. Sou apenas um homem de ciência buscando compreender o real e esperando que meus sucessores façam o mesmo com igual empenho.”
Por isto mesmo, concebi este curso e achei que, para chegarmos ao Aristóteles real, de carne e osso, para presentificá-lo de alguma maneira, temos de partir do exame dos Aristóteles imaginários. Algumas das próximas aulas analisarão as “imagens de Aristóteles”. Imagens não são Aristóteles, mas o que cada época pensou que Aristóteles fosse, e as discussões que estabeleceu com este estereótipo, o qual coincide em parte com o Aristóteles real, mas em parte se afasta dele. Hoje podemos ter toda esta perspectiva graças à imensa documentação acumulada, graças aos prodígios da ciência histórica e filológica que nos coloca à disposição um imenso material (ver Documentos Auxiliares II ). Nosso estudo vai começar como uma investigação dos equívocos humanos. No mundo da filosofia e da ciência também impera, muitas vezes a fantasia, a ignorância, a imaginação projetiva, e isto nos obriga a começar o nosso estudo aristotélico com uma espécie de psicanálise das imagens de Aristóteles. Só isto nos dará uma idéia aproximada das relações que temos e das que podemos ter com ele hoje.
Na medida em que Platão e Aristóteles formam uma espécie de paternidade da civilização ocidental, é natural ainda que esta civilização faça sobre eles todas as projeções edípicas a que a neurose tem direito. Muitas vezes, na luta pela auto-afirmação, o homem acredita dever exorcizar a imagem paterna que no seu entender limita, restringe etc. etc. Lutas contra a imagem paterna são algo em que todo mundo se envolve numa certa etapa da vida. Mas um dia essa etapa chega ao fim, e você tem de entrar num acordo com a imagem paterna, absorvendo os seus valores positivos e perdoando, com bondade, os negativos. No entanto, nossa civilização ocidental prosseguiu neste conflito edípico com Platão e Aristóteles, e principalmente com Aristóteles, até pelo menos o século XIX. Não sei se ainda estamos nele, mas me parece que hoje em dia a tendência é para uma atitude mais compreensiva.
Alguns exemplos de imagens mutiladas, frutos do do desconforto permanente —- ou cíclico —- que Aristóteles causa há dois milênios:
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Na Igreja Ortodoxa Russa, Platão e Aristóteles foram tidos —- e em certas circunstâncias ainda são —- como dois verdadeiros demônios. Sua leitura é considerada prejudicial para a salvação das almas — hoje. A Igreja Russa surge no século VIII; são doze séculos de preconceitos.
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No mundo islâmico, existem algumas correntes esotéricas que consideram Platão e Aristóteles como profetas e até mesmo como anjos do Senhor — algo assim como uma dupla de Hermes Trimegistos, descidos ao mundo para trazer uma revelação. Uma outra corrente os olha mais ou menos como a Igreja Russa.
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No Ocidente cristão, as primeiras reações contra Platão e Aristóteles foram do mais incompreensivo desprezo. Alguns, como Tertuliano, logo identificaram a filosofia grega como a “sabedoria mundana” de que fala a Bíblia. Os mais moderados, como Clemente de Alexandria, aceitaram a filosofia como uma introdução ao cristianismo, mas nada além disto.
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Enquanto isso, no lado pagão, a escola epicúrea, mesmo depois da edição dos textos de Aristóteles por Andrônico de Rodes, continuava a difundir, com mecânico servilismo, as opiniões de seu fundador a respeito de Aristóteles, baseadas apenas nos escritos publicados em vida do autor e de natureza puramente literária.
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Após a edição de Andrônico, os escritos de Aristóteles desapareceram do Ocidente pela segunda vez, só retornando dez séculos depois, por intermédio de traduções latinas feitas de versões árabes ( vocês podem imaginar com quantos erros, saltos e interpolações ).
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Divulgados em tradução latina, os escritos de Aristóteles causaram escândalo, porque pareciam contrariar de frente os dogmas cristãos. Muitas teses de Aristóteles foram formalmente condenadas pelos concílios, antes mesmo que alguém se desse o trabalho de procurar assegurar-se do sentido dos textos.
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Foi só com Sto. Alberto e Sto. Tomás, já no século XII, que a Igreja, muito cautelosamente, se reconciliou com Aristóteles. É um casamento que vem durando quase oito séculos, com alguns percalços. Esta reconciliação, longe de ser aceita unanimemente logo após formalizada, continuou sendo combatida e discutida dentro da própria Igreja até o século XIX. Hoje em dia todos sabem que Sto. Tomás de Aquino é um discípulo e um seguidor cristão de Aristóteles. Todos vêem o império que Santo Tomás de Aquino exerce sobre o pensamento cristão e imaginam ingenuamente que as coisas sempre foram assim. Mas a posição de que Santo Tomás de Aquino desfruta hoje dentro da Igreja só foi estabelecida no século XIX, meia dúzia de séculos depois de sua morte. Mesmo assim, muitos somente o aceitaram porque o Papa mandou. O famoso aristotélico-tomismo só existe no mundo como posição estabelecida a partir do século XIX, depois de uma bula de Leão XIII, o qual era pessoalmente um filósofo aristotélico e seguidor de Tomás, resultando que a mera obediência a esse Papa acabou virando uma escola filosófica sob o nome de aristotélico-tomismo, nome que o próprio Tomás sem dúvida acharia um tanto cômico.
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Outra imagem de Aristóteles é aquela que se formou com os debates do Renascimento em torno da astronomia. Aristóteles formulou, na física, os rudimentos de uma astronomia onde as órbitas dos planetas seriam circulares. Esta imagem foi refutada pelos cálculos de Kepler, e chegou-se à conclusão de que a física de Aristóteles, neste ponto, estava errada. A partir daí, Aristóteles virou um símbolo de todo o saber medieval, que alguns autores nesta época pretendiam derrubar, na ilusão de que um tiro em Aristóteles acertaria na cabeça da Igreja Católica, sem que jamais lhes tivesse ocorrido que a Igreja vivera perfeitamente bem sem Aristóteles durante doze séculos. Pode-se ler em quase todos os livros de história da ciência — livros populares — a idéia de que Aristóteles imperou sobre a ciência medieval e foi derrubado na Renascença. Esta sentença é uma idéia de senso comum, hoje repetida a torto e a direito. É uma idéia totalmente errada. Em primeiro lugar, Aristóteles começa a conquistar algum lugarzinho na ciência medieval somente a partir de Sto. Tomás de Aquino, já na última fase da Idade Média, e mesmo assim não obteve uma repercussão e aceitação imediatas, tanto que várias de suas teses foram também impugnadas por concílios, na época. Depois se retirou a impugnação. De outro lado, existe um fenômeno muito esquisito que é o de que um dos livros de Aristóteles — a Poética — fica desaparecido desde o século I até o século XVI, e quando é reencontrado, traduzido e comentado, serve de molde à criação de tudo o que hoje chamamos estética do classicismo, da qual são amostras o teatro francês de Racine, Corneille e Voltaire. A poética de Aristóteles começa a exercer um império absoluto sobre o gosto literário do mundo moderno, justamente no mesmo instante em que a física aristotélica estava sendo rejeitada. E os escritores e poetas, a partir da Renascença, seguiram Aristóteles com mais subserviência do que todos os físicos medievais. A idéia de que Aristóteles imperou na Idade Média e de que nos livramos dele na Renascença é verdadeira, portanto, só se for olhada do ponto de vista da história de uma ciência em particular, que é a astronomia. Do ponto de vista da história literária, é exatamente o contrário. Como se vê, as generalizações que dividem a história em etapas são muito falhas.
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Nos séculos XIX e XX surge um novo debate aristotélico, desta vez no campo da biologia, em torno da idéia de uma causa final (finalidade do mundo). Segundo Aristóteles, os fenômenos biológicos, além de serem suscitados por causas eficientes que os provocam, também obedecem a um sentido finalístico, a um senso de propósito fundado na unidade cósmica. Há cem anos prossegue um debate dentro da biologia em torno deste ponto. O livro de Jacques Monod, por exemplo, O Acaso e a Necessidade, é uma vasta discussão com Aristóteles.
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Cada nova descoberta importante, cada nova escola filosófica, logo cria uma discussão com Aristóteles, desde o exclusivo ponto de vista dessa descoberta em particular, como se o ponto que é central para seus autores fosse central também para Aristóteles e como se o pensamento deste pudesse ser reconstruído tomando esse ponto como base. Assim, pró ou contra, novas imagens de Aristóteles foram produzidas desde o ponto de vista da evolução biológica ( para saber se Aristóteles era darwinista ou não ), do marxismo ( para alguns marxistas, Aristóteles é um precursor do materialismo, para outros é um idealista incurável ), da nova lógica matemática ( para decidir se Aristóteles adiantou ou atrasou o descobrimento dela ), e assim por diante. Isto é para vocês terem uma idéia de como estes temas aristotélicos —- deformados o quanto sejam pela parcialidade dos interesses que levam a buscá-los em cada caso —- voltam obsessivamente e de certo modo são a gasolina que vem movendo a máquina das idéias há dois mil anos.
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O que vamos fazer, então, é passar em revista primeiro estes vários Aristóteles, ou pedaços de Aristóteles, contra e a favor dos quais surgiram debates, para ver se por trás deles encontramos um Aristóteles real e inteiro. É evidente que se os debates em torno de um filósofo, durante um certo tempo, se concentram num determinado ponto, este ponto passa a ser considerado o centro do seu pensamento. Isto pode se prolongar por dois, três, quatro séculos. Por exemplo, quando os cristãos lêem Aristóteles pela primeira vez e vêem que ele afirma que o mundo é eterno, ficam escandalizados, porque na perspectiva cristã Deus criou o mundo numa certa data. Antes o mundo não existia, e depois do “Fiat Lux” passou a existir. Aristóteles dizia que o mundo sempre existiu, o que produziu séculos de encrenca no mundo cristão. Resultado: todos esses cristãos, desde os primeiros até o tempo de Sto. Tomás de Aquino —- dez séculos —- constroem a sua interpretação de Aristóteles, pró ou contra, tomando como ponto de partida este ponto de discordância. Todas as demais teses de Aristóteles ficam referidas a esta, como as consequências são derivadas da causa, e o resultado é que as teses mais importantes de Aristóteles ficam jogadas para a periferia, obscurecidas pelo debate da eternidade do mundo. Mais tarde, quando, num contexto completamente diferente, surge a discussão em torno da circularidade das órbitas planetárias, a Renascença constrói sua imagem de Aristóteles tomando como centro este ponto que estava em debate. Isto é tão absurdo como tentar construir o retrato do indivíduo tomando como centro as objeções que outros tiveram contra ele, por exemplo o trocador do ônibus que ele pagou com uma nota alta, o bedel que ralhou quando ele chegou atrasado para a aula, o motorista cujo caminho ele fechou num cruzamento, etc. Nunca se chega a nada — a não ser uma coleção de retratos que têm como centro de perspectiva não o personagem, mas o interesse acidental que este ou aquele aspecto dele suscitou para este ou aquele indivíduo. A história das imagens de Aristóteles, ou de Platão, e de muitos outros filósofos é assim: você vem andando por um caminho e tropeça com um filosofo; ou adere a ele ou se opõe a ele em algum ponto, e o conjunto de imagens que você forma dele é construído não a partir dele, mas a partir do seu calo que ele pisou acidentalmente. É inevitável que seja assim —- o que não quer dizer que seja justo. É inevitável que o conhecimento do filósofocomece assim, ao sabor dos encontros e desencontros acidentais. Mas algum dia é necessário fazer uma revisão do todo e tentar fazer justiça, adotando um ponto de vista que abarque, transcenda e unifique todas estas perspectivas parciais, acidentais e desencontradas. É mais ou menos esta a ambição deste curso.
Limitações da minha perspectiva pessoal sobre Aristóteles.
Este curso transmite o resultado de uma convivência de mais ou menos quinze anos com Aristóteles. Tenho de reconhecer que também eu me defrontei com ele movido por algum interesse pessoal meu que talvez não tivesse nada de aristotélico, e comecei a reconstruí-lo desde aquilo que ele representou para mim. A diferença é que estou perfeitamente consciente de ter feito isto e estou consciente de que a minha perspectiva sobre Aristóteles é acidental. E sobretudo estou consciente de que, se tenho uma visão dele, ele também tem o direito de ter uma visão de mim. Isto quer dizer que toda a vez que eu examinar uma idéia dele e tentar expô-la, tenho de procurar ver a coisa dos dois pontos de vista. Tenho de estar consciente de por que esta idéia me chamou a atenção, de qual o momento da minha vida intelectual em que aquilo entrou nas minhas cogitações. Mas também tenho a obrigação de tentar olhar com olhos de Aristóteles, o qual pode eventualmente me dizer: “Esta pergunta que você lançou a meu respeito é absolutamente irrelevante, não interessa para a interpretação do meu pensamento.” Só olhando por este duplo lado podemos ter, não digo uma certeza, mas uma probabilidade de alcançar, se não uma visão científica objetiva e certeira, pelo menos uma opinião justa e razoável.
No dia-a-dia, julgamos as pessoas das maneiras mais apressadas e levianas. Porém, uma figura como esta que influenciou a humanidade inteira durante 2400 anos, e que continua sendo discutida até hoje, merece um esforço de objetividade. O estudo das obras de um filósofo —- que não é filosofia ainda, é filologia, é estudo de textos, é uma preparação filológica à filosofia — deixa para nós um resíduo que é de alto valor. Consiste na consciência das dificuldades que temos para entender o que uma outra pessoa pensa, e que não é maior no caso de Aristóteles do que no caso do nosso vizinho, da nossa empregada, dos nossos parentes e amigos. O sentido de uma frase isolada, no instante em que foi dita, é uma coisa. Entender o que esta frase significa no contexto da vida de quem a disse, e com o valor e a intenção precisos com que a disse, é outra muito diferente.
A filologia é a compreensão dos textos. Os textos são expressões privilegiadas da mente humana. A filologia é, neste sentido, o estudo do ser humano, a disciplina que nos habilita à compreensão de outros seres humanos. E por isso foi considerada sempre a rainha das humanidades. Um escritor medieval, Marciano Capella, fez dela a esposa do deus Mercúrio, o deus dos intercâmbios, do encontro, da conversação e do entendimento. Humanidades é o estudo que faz você situar-se dentro da espécie humana, compreender-se como membro da espécie a que pertence. Ensinando você a entender que não é melhor que nenhum dos outros, que seu pensamento é pelo menos tão obscuro e errado como o dos outros, e que somente um longo trabalho de compreensão pode colocá-lo em condição de discutir a validade ou não das idéias de um outro, a filologia é um treino de paciência e tolerância, no sentido em que diz Spinoza: “Não rir, não chorar, nem condenar — mas compreender.”
Ainda uma palavra, sobre objetividade e neutralidade A idéia de que a compreensão científica deve ser neutra pode ser compreendida em dois sentidos. Estar neutro pode querer dizer não estar interessado num ou noutro dos lados que o desenlace de uma questão pode tomar. Mas também pode significar a ausência de amor, de paixão pela verdade, a crença errônea de que se pode compreender a realidade sem amá-la, e como que por um olhar distante e blasé. Mas o juiz justo, se é neutro ante os interesses da partes, não é neutro ante o processo. Ele deve ter a paixão de encontrar a solução correta. É somente esta paixão de encontrar a verdade que nos poderá por na pista para um dia podermos ter a certeza de haver inteligido razoavelmente alguma coisa, tanto quanto o melhor da tradição milenar de ciência e filosofia que nos antecedeu poderia esperar de nós.
Antes de encerrar, eu gostaria de dar algumas explicações sobre a lista de nomes no Documento Auxiliar II: Marcos na História dos Estudos Aristotélicos. Com base nesta lista é que obteremos uma idéia sobre os progressos e retrocessos que a compreensão de Aristóteles foi tendo na história do pensamento. Dos autores aqui citados temos basicamente três tipos de estudiosos, que abordam o tema aristotélico desde três perspectivas e com três interesses diferentes.
- O filósofo que expõe, comenta e discute os textos de Aristóteles, desde o ponto de vista da sua importância propriamente filosófica. No século II, há, por exemplo, Alexandre de Afrodísia, que produziu um comentário de Aristóteles que vale até hoje. Com o mesmo interesse filosófico são redigidos os comentários de Sto. Tomás de Aquino.
- O filólogo, às vezes misto de historiador da filosofia; um sujeito que, sem ter a ambição pessoal de fazer uma filosofia própria ou de fazer avançar a filosofia, põe em ação um conjunto de recursos científicos que lhe permite estabelecer comparações históricas, avaliar o peso de cada palavra, reconstituir o texto na sua materialidade e no seu sentido. No século XX, um dos grandes exemplos é Werner Jaeger, homem a quem devemos um esplêndido trabalho de reconstituição biográfica da evolução do pensamento de Aristóteles. Com isso Jaeger mostrou que em nem todas as suas idéias Aristóteles acreditou ao mesmo tempo. Ou seja, que nem tudo o que está escrito nos seus textos pode ser exposto todo numa lousa como se fosse um sistema coerente e chapado, mas que algumas das idéias que estão nesses textos foram pensadas e depois abandonadas, refutadas pelo próprio Aristóteles. O filólogo faz o trabalho mais humilde e apagado, mas sem ele jamais poderíamos chegar à compreensão dos textos antigos.
- O sujeito que não é nem um filósofo expondo idéias de Aristóteles, nem um filólogo que procura aprofundar o conhecimento científico dos textos — mas apenas um filósofo que está desenvolvendo as suas próprias idéias e que acidentalmente esbarra em Aristóteles e, em função da sua filosofia pessoal, se posiciona, a favor ou contra. Como exemplo cito aqui John Locke, famoso chefe da escola empirista inglesa. Ele não discute propriamente Aristóteles, mas, desenvolvendo a sua própria filosofia, reforça certos aspectos da filosofia aristotélica e enfraquece outros, disso resultando que as gerações seguintes passam a ler Aristóteles de uma nova maneira, isto é, à luz das idéias do pensador mais recente. Na época de Locke surge o grande debate da filosofia entre racionalistas e empiristas. Para a escola racionalista (Spinoza), a razão, o puro raciocínio é a principal fonte do conhecimento, e a experiência real pouco nos revela sobre a realidade das coisas. Para a escola empirista, exatamente o contrário: a principal fonte de conhecimento é a experiência e os padrões racionais com que julgamos a experiência são, eles mesmos, produtos da experiência. Estas duas escolas, que dominam o debate filosófico durante dois séculos, como se verá em qualquer livro de História da filosofia, são como duas metades de uma laranja aristotélica, porque Aristóteles era as duas coisas ao mesmo tempo — empirista e racionalista. Só que, a partir dessa época, a laranja é partida, e os dois lados que em Aristóteles estavam tão bem sintetizados se separam de maneira antagônica. Tanto racionalismo quanto empirismo são filhotes de Aristóteles, mas filhotes hostis entre si, repetindo um Leitmotiv da história humana, o motivo dos gêmeos inimigos, como Esaú e Jacó. Estudando a filosofia deste período de John Locke e Spinoza, século XVII, não na perspectiva geral da história mas na perspectiva dos estudos aristotélicos, entendemos que esta bipartição entre racionalismo e empirismo determinou uma mudança na visão que a cultura européia tinha de Aristóteles.
Dentro desta categoria dos que fizeram de temas aristotélicos um aproveitamento próprio dentro de seus objetivos filosóficos pessoais, é bom destacar uma subespécie:
- O sujeito que pega alguma idéia aristotélica, citando ou não a origem, e a aplica a um setor determinado do conhecimento, no qual essa idéia se torna dominante. Por exemplo, quando, na entrada da Idade Moderna, alguns juristas procuravam separar os domínios do Direito e da Religião, era natural que buscassem em Aristóteles os fundamentos da idéia de direito natural. Só por este fenômeno, representado por exemplo por Hugo Grotius, vocês vêm como é errada a visão que identifica aristotelismo com Idade Média: a importância da contribuição de Aristóteles para o pensamento medieval não é maior nem menor do que a que ele deu às novas idéias científicas, jurídicas, estéticas, criadas a partir do Renascimento. Há, enfim, um Aristóteles para cada gosto, e, querendo ou não, ele tem dado e tirado reforço a praticamente todas as escolas de pensamento há vinte e tantos séculos. Para encerrar, espero que vocês tenham compreendido que este curso não será somente uma introdução ao pensamento de Aristóteles, mas também aos estudos aristotélicos, seja do ponto de vista filosófico, seja histórico-filológico. Espero que este curso abra para vocês um leque de caminhos para esses estudos.