Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 24 de julho de 2015
Os cérebros iluminados da mídia nacional e internacional enxergaram aí toda sorte de intenções ecumênicas e diplomáticas, mas não creio que esse simples detalhe de um discurso papal possa ser compreendido sem um recuo histórico de muitos séculos.
“Nós falamos com palavras, mas Deus fala com palavras e coisas”, dizia Sto. Tomás de Aquino. Na época dele, e de fato desde o começo do cristianismo, isso era uma obviedade de domínio público.
Muito antes de ditar aos profetas as palavras da Bíblia, Deus havia criado o universo, sendo inconcebível que não deixasse aí as marcas da sua Inteligência, do Logos divino que contém em si a chave de todas as coisas, fatos e conhecimentos.
Nada mais lógico, portanto – assim pensavam os santos e místicos — , do que buscar nas formas e aparências do universo físico os sinais da intenção divina que tudo havia criado.
O próprio texto da Bíblia está tão repleto de referências a animais, plantas, minerais, partes do corpo humano, acidentes geográficos, fenômenos astrais e climáticos, etc., que sem algum conhecimento da natureza física sua leitura se torna completamente opaca. Não havia e não há como fugir desta constatação elementar: o universo era a primeira das Revelações.
Essa intuição não havia escapado aos povos pagãos da Antiguidade, cujas culturas se erguem inteiramente em cima de prodigiosos esforços para apreender alguma mensagem divina por trás dos fenômenos da natureza terrestre e celeste e fazer da sociedade inteira um modelo cósmico em miniatura (a bibliografia sobre isso é tão abundante que não vou nem começar a citá-la).
Apesar da imensa variedade das linguagens simbólicas que se desenvolveram nas mais diversas épocas e lugares, elas todas obedecem a um conjunto de princípios que permitem estabelecer correspondências entre as concepções cosmológicas e antropológicas dessas civilizações.
Essas concepções foram absorvidas e apenas ligeiramente remodeladas pela Europa cristã para tornar-se veículos de uma cosmovisão bíblica.
A principal modificação foi um senso mais apurado da índole dialética do simbolismo natural, onde os fatos da natureza física já não apareciam como expressões diretas da presença divina, como no antigo culto dos astros, mas como indícios analógicos que ao mesmo tempo revelavam e ocultavam essa presença (expliquei um pouco disso no meu livro A Dialética Simbólica, São Paulo, É-Realizações, 2007).
A cosmologia medieval incorporava o velho mapa planetário ptolemaico, com a Terra no centro e as várias esferas planetárias – correspondentes a distintas dimensões da existência – afastando-se até o último céu, morada de Deus. Que esse mapa não devesse ser interpretado como um simples retrato material do mundo celeste, prova-o o fato de que ele era compensado dialeticamente por uma concepção oposta, na qual Deus estava no centro e a Terra na extrema periferia.
A tensão entre as duas esferas condensava de uma maneira abrangente os paradoxos da existência humana num ambiente natural que era ao mesmo tempo um templo e uma prisão. A visão medieval do céu não era uma cosmografia, mas uma cosmologia – uma ciência integral do significado da existência do homem no cosmos.
A eclosão do debate heliocentrismo versus geocentrismo baixou o nível da imaginação pública para um confronto entre duas concepções puramente materiais, rompendo a tensão dialética entre as duas esferas e rebaixando a cosmologia ao estado de mera cosmografia.
Os progressos extraordinários desta última serviram para mascarar o fato de que a modernidade assim inaugurada ficou totalmente desprovida de uma cosmologia simbólica, não havendo até hoje nenhum meio de articular a visão material-científica do universo com os conhecimentos de ordem espiritual: essas duas dimensões pairam uma sobre a outra sem jamais interpenetrar-se, como água e óleo num copo, de tempos em tempos ressurgindo, sob formas variadas, o “conflito entre ciência e religião”, ou “entre razão e fé”, o qual, nesses termos, só pode ser apaziguado mediante arranjos convencionais de fronteiras, tão artificiais e instáveis quanto qualquer tratado diplomático.
O que era tensão dialética tornou-se um dualismo estático, como numa guerra de posições entre exércitos imobilizados cada um na sua trincheira. Talvez o traço mais característico da modernidade seja precisamente a coexistência enervante entre uma ciência sem espiritualidade e uma espiritualidade sem base natural.
Para piorar ainda mais as coisas, a ruptura entre as duas dimensões não se deu só no domínio da cosmologia, mas também na metafísica e na gnoseologia, onde René Descartes, rompendo com a antiga visão aristotélico-escolástica do ser humano como síntese indissolúvel de corpo e alma, ergueu um muro de separação entre matéria e espírito, fazendo deles substâncias heterogêneas e incomunicáveis.
Malgrado as inúmeras contestações e correções que sofreu, o dualismo cartesiano acabou por deitar raízes tão fundas na mentalidade ocidental, que suas conseqüências nefastas ainda se fazem sentir até mesmo no domínio das ciências físicas (v. Wolfgang Smith, O Enigma Quântico, trad. Raphael de Paola, Campinas, Vide, 2011).
Na esfera cultural, isso resultava em dividir o universo inteiro da experiência em duas categorias: os objetos reais, isto é, materiais e mensuráveis, conhecidos pela ciência física, e os puramente pensados, para não dizer imaginários – leis, instituições, valores, obras de arte, o mundo propriamente humano.
Dos primeiros, só o que se podia saber eram as suas propriedades mensuráveis, sendo proibido querer descobrir neles algum significado ou intenção. Os segundos eram repletos de significado, mas só existiam como pensamentos, como “construções culturais” sem nenhum fundamento na realidade.
Por mais obviamente danosa à cosmovisão cristã que fossem essas ideias, elas foram rapidamente assimiladas pela intelectualidade católica. Durante todo o século XVIII o cartesianismo foi a doutrina dominante nos seminários da França. As chamadas “heresias modernistas” ainda não haviam surgido, mas a hegemonia intelectual cristã estava perdida. Rendeu-se praticamente sem luta.
Começava uma era na qual uma alma cristã não teria alternativa exceto amoldar-se à mentalidade moderna ou esbravejar em vão contra o que não podia vencer – as duas atitudes que até hoje caracterizam respectivamente os “modernistas” e os “tradicionalistas”.
A pá de cal foi lançada por Immanuel Kant, quando cavou um abismo intransponível entre “conhecimento” e “fé”, enfatizando a autoridade universal do primeiro e trancafiando a segunda no recinto fechado das meras preferências e fantasias particulares – uma doutrina que se tornou a base não só do positivismo científico ainda imperante nas universidades em geral, mas também de todo o “Estado laico” moderno, onde não há diferença legal entre crer em Deus, em duendes, em extraterrestres, nas virtudes espirituais das drogas alucinógenas ou na bondade de Satanás.
[Continuo a narrativa no próximo artigo.]
“Nós falamos com palavras, mas Deus fala com palavras e coisas”, dizia Sto. Tomás de Aquino. Na época dele, e de fato desde o começo do cristianismo, isso era uma obviedade de domínio público.
Muito antes de ditar aos profetas as palavras da Bíblia, Deus havia criado o universo, sendo inconcebível que não deixasse aí as marcas da sua Inteligência, do Logos divino que contém em si a chave de todas as coisas, fatos e conhecimentos.
Nada mais lógico, portanto – assim pensavam os santos e místicos — , do que buscar nas formas e aparências do universo físico os sinais da intenção divina que tudo havia criado.
O próprio texto da Bíblia está tão repleto de referências a animais, plantas, minerais, partes do corpo humano, acidentes geográficos, fenômenos astrais e climáticos, etc., que sem algum conhecimento da natureza física sua leitura se torna completamente opaca. Não havia e não há como fugir desta constatação elementar: o universo era a primeira das Revelações.
Essa intuição não havia escapado aos povos pagãos da Antiguidade, cujas culturas se erguem inteiramente em cima de prodigiosos esforços para apreender alguma mensagem divina por trás dos fenômenos da natureza terrestre e celeste e fazer da sociedade inteira um modelo cósmico em miniatura (a bibliografia sobre isso é tão abundante que não vou nem começar a citá-la).
Apesar da imensa variedade das linguagens simbólicas que se desenvolveram nas mais diversas épocas e lugares, elas todas obedecem a um conjunto de princípios que permitem estabelecer correspondências entre as concepções cosmológicas e antropológicas dessas civilizações.
Essas concepções foram absorvidas e apenas ligeiramente remodeladas pela Europa cristã para tornar-se veículos de uma cosmovisão bíblica.
A principal modificação foi um senso mais apurado da índole dialética do simbolismo natural, onde os fatos da natureza física já não apareciam como expressões diretas da presença divina, como no antigo culto dos astros, mas como indícios analógicos que ao mesmo tempo revelavam e ocultavam essa presença (expliquei um pouco disso no meu livro A Dialética Simbólica, São Paulo, É-Realizações, 2007).
A cosmologia medieval incorporava o velho mapa planetário ptolemaico, com a Terra no centro e as várias esferas planetárias – correspondentes a distintas dimensões da existência – afastando-se até o último céu, morada de Deus. Que esse mapa não devesse ser interpretado como um simples retrato material do mundo celeste, prova-o o fato de que ele era compensado dialeticamente por uma concepção oposta, na qual Deus estava no centro e a Terra na extrema periferia.
A tensão entre as duas esferas condensava de uma maneira abrangente os paradoxos da existência humana num ambiente natural que era ao mesmo tempo um templo e uma prisão. A visão medieval do céu não era uma cosmografia, mas uma cosmologia – uma ciência integral do significado da existência do homem no cosmos.
A eclosão do debate heliocentrismo versus geocentrismo baixou o nível da imaginação pública para um confronto entre duas concepções puramente materiais, rompendo a tensão dialética entre as duas esferas e rebaixando a cosmologia ao estado de mera cosmografia.
Os progressos extraordinários desta última serviram para mascarar o fato de que a modernidade assim inaugurada ficou totalmente desprovida de uma cosmologia simbólica, não havendo até hoje nenhum meio de articular a visão material-científica do universo com os conhecimentos de ordem espiritual: essas duas dimensões pairam uma sobre a outra sem jamais interpenetrar-se, como água e óleo num copo, de tempos em tempos ressurgindo, sob formas variadas, o “conflito entre ciência e religião”, ou “entre razão e fé”, o qual, nesses termos, só pode ser apaziguado mediante arranjos convencionais de fronteiras, tão artificiais e instáveis quanto qualquer tratado diplomático.
O que era tensão dialética tornou-se um dualismo estático, como numa guerra de posições entre exércitos imobilizados cada um na sua trincheira. Talvez o traço mais característico da modernidade seja precisamente a coexistência enervante entre uma ciência sem espiritualidade e uma espiritualidade sem base natural.
Para piorar ainda mais as coisas, a ruptura entre as duas dimensões não se deu só no domínio da cosmologia, mas também na metafísica e na gnoseologia, onde René Descartes, rompendo com a antiga visão aristotélico-escolástica do ser humano como síntese indissolúvel de corpo e alma, ergueu um muro de separação entre matéria e espírito, fazendo deles substâncias heterogêneas e incomunicáveis.
Malgrado as inúmeras contestações e correções que sofreu, o dualismo cartesiano acabou por deitar raízes tão fundas na mentalidade ocidental, que suas conseqüências nefastas ainda se fazem sentir até mesmo no domínio das ciências físicas (v. Wolfgang Smith, O Enigma Quântico, trad. Raphael de Paola, Campinas, Vide, 2011).
Na esfera cultural, isso resultava em dividir o universo inteiro da experiência em duas categorias: os objetos reais, isto é, materiais e mensuráveis, conhecidos pela ciência física, e os puramente pensados, para não dizer imaginários – leis, instituições, valores, obras de arte, o mundo propriamente humano.
Dos primeiros, só o que se podia saber eram as suas propriedades mensuráveis, sendo proibido querer descobrir neles algum significado ou intenção. Os segundos eram repletos de significado, mas só existiam como pensamentos, como “construções culturais” sem nenhum fundamento na realidade.
Por mais obviamente danosa à cosmovisão cristã que fossem essas ideias, elas foram rapidamente assimiladas pela intelectualidade católica. Durante todo o século XVIII o cartesianismo foi a doutrina dominante nos seminários da França. As chamadas “heresias modernistas” ainda não haviam surgido, mas a hegemonia intelectual cristã estava perdida. Rendeu-se praticamente sem luta.
Começava uma era na qual uma alma cristã não teria alternativa exceto amoldar-se à mentalidade moderna ou esbravejar em vão contra o que não podia vencer – as duas atitudes que até hoje caracterizam respectivamente os “modernistas” e os “tradicionalistas”.
A pá de cal foi lançada por Immanuel Kant, quando cavou um abismo intransponível entre “conhecimento” e “fé”, enfatizando a autoridade universal do primeiro e trancafiando a segunda no recinto fechado das meras preferências e fantasias particulares – uma doutrina que se tornou a base não só do positivismo científico ainda imperante nas universidades em geral, mas também de todo o “Estado laico” moderno, onde não há diferença legal entre crer em Deus, em duendes, em extraterrestres, nas virtudes espirituais das drogas alucinógenas ou na bondade de Satanás.
[Continuo a narrativa no próximo artigo.]