Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 4 de setembro de 1999
Paris – Num artigo recentemente publicado no Monde Diplomatique (agosto/99), o professor Ricardo Petrella, ilustre acadêmico, começa por lamentar o enfraquecimento dos Estados-nações sob o assalto da nova ideologia empresarial e termina por fazer a apologia do Estado Mundial, cujo advento não poderá deixar de levar esse enfraquecimento às suas últimas conseqüências: a extinção pura e simples dos Estados nacionais e sua substituição por administrações regionais sob as ordens do Leviatã global.
Vê-se claramente que, sob a aparência de uma defesa das nações atualmente existentes contra as sucessivas desapropriações que vêm sofrendo sob o jugo dos poderes econômicos internacionais, o professor Petrella não nos oferece senão a perspectiva de submeter essas mesmas nações a uma desapropriação única, radical e definitiva, tornada boa pelo simples fato de já não ser obra de empresas privadas e sim de uma superburocracia estatal.
Não se trata portanto de proteger a vítima, mas de trocar de ladrão.
Nada é mais ingênuo (ou talvez mais esperto) do que apresentar o quadro atual do mundo como se fosse o de um combate entre as grandes empresas e o Estado, ou, o que dá na mesma, como se não fosse senão uma reedição ampliada do velho conflito do princípio capitalista com o princípio socialista. Esse giro sutil que o enfoque esquerdista impõe à visão da realidade mundial reflete uma intenção de usar a salvação das nações como pretexto para salvar, isto sim, o que ainda pos sa restar da estratégia comunista mundial.
É falso dizer que o neoliberalismo favorece as empresas em detrimento dos Estados; ele favorece abertamente certos Estados contra outros Estados, e favorece sobretudo a ascensão da burocracia mundial, a qual não é nem empresa privada nem Estado-nação, mas uma terceira coisa especificamente diferente dessas duas. Esta coisa, seja lá o que for, é o verdadeiro inimigo dos Estados nacionais – sobretudo dos pequenos e fracos – e, ao mesmo tempo, o verdadeiro inimigo das empresas privadas, ao menos daquelas que ainda confiam no princípio liberal e não sonham com um monopolismo à sombra da proteção do Estado global.
É preciso, absolutamente, distinguir aquilo que o professor Petrella confunde absolutamente: o Estado enquanto princípio abstrato e os Estados enquanto realidades históricas concretas. O globalismo neoliberal se volta contra estes últimos, ao mesmo tempo que favorece o primeiro – sobretudo quando este se apresenta sob a forma monstruosamente inflada de Estado mundial –, mostrando, com isto, que de liberal só tem o nome. A prova é que, na mesma medida em que os neoliberais condenam as legislações nacionais de controle da economia, eles louvam a adoção de idênticos controles quando ampliados à escala mundial. Isto não é combater “o” Estado: é combater “alguns” Estados, sobretudo os pequenos, e favorecer outros Estados, sobretudo os maiores, sobretudo o maior de todos.
Confundindo a defesa dos pequenos Estados nacionais com a defesa do Estado enquanto princípio, o professor Petrella se inscreve, talvez malgré lui , na lista dos apóstolos daquilo mesmo que ele professa combater.