Olavo de Carvalho
Época, 24 de fevereiro de 2001
O problema é que são duas cabeças ocas
Não há criatura mais tipicamente dúbia e bicéfala que o revolucionário que, perdida por decurso de prazo sua oportunidade de fazer a revolução, sobe ao poder por vias legais e anuncia governar segundo as mesmas normas que professava destruir. Que temível situação a do ator que muda de personagem sem poder mudar de script! Otelo com as idéias de Iago, Júlio César com as intenções de Brutus, por mais que tente ser coerente, não escapará da dupla lealdade que o induz a apagar com uma das mãos o que escreveu com a outra, a fazer do Estado o instrumento da destruição do Estado e a desempenhar por fim, no patíbulo da História, o duplo papel da corda e do pescoço.
O leitor há de ter percebido que acabo de enunciar a definição mesma da tucanidade.
O sucesso político dessa entidade equívoca não se deve senão ao fato de que ela encarna, em escala nacional, a autocontradição da própria Nova Ordem Mundial, empenhada em realizar com os meios do liberalismo a sociedade mais coletivista e dirigista que já se imaginou e em preservar a propriedade privada mediante a regulamentação socialista de tudo o mais. Por onde quer que ande semelhante criatura, não cessará de fazer o mal às outras por meio do dano que traz a si mesma, nem de sugar o próprio sangue mediante o derramamento do alheio. Ai de quem caminhe a seu lado! Ai de quem fique contra ela! Ai de quem não ligue! Ai de todos nós, pela simples existência de tal monstruosidade sobre a face da Terra!
Um exemplo de seu modo de ser é a peculiar articulação lógica que montou entre economia e educação, apostando os destinos da nação no futuro do capitalismo ao mesmo tempo que adestra as crianças para viver no socialismo. Será de espantar que os jovens absorvam essa lição como um convite a espojar-se nas deleitações do hedonismo permissivista ao mesmo tempo que se arrogam a autoridade moral de juízes austeros e reformadores do mundo? Será de espantar que cada um deles creia poder ser ao mesmo tempo o Marquês de Sade a emergir lívido de sua alcova de prazeres e Moisés a descer do Sinai com a tábua das Leis nas mãos e a ira divina estampada na face?
Tomemos outro exemplo, os “direitos humanos”. A hipótese de que devotos servidores locais do regime de Cuba pudessem estar seriamente empenhados na defesa dos direitos humanos pode ser afastada in limine por absurdidade intrínseca. A bandeira dos direitos humanos teve para eles função simplesmente tática, de usar os bons sentimentos da população para fomentar nos governantes uma escrupulosidade paralisante, inibindo toda ação policial. Ao mesmo tempo, infundiam em traficantes, ladrões, assassinos e estupradores a estimulante ilusão de não serem a escória, mas a elite da espécie humana, provisoriamente trancafiada nos porões da História pela injusta ordem burguesa.
Porém hoje são eles próprios o governo. Condenados a reprimir a desordem pelos mesmos meios com que solapam a ordem, a fomentar rebeliões pelos mesmos meios com que as reprimem, oscilam entre a brutalidade sádica e a rendição masoquista, ora deixando fuzilar a esmo presidiários amotinados, ora convidando a assembléia dos meliantes a governar em seu lugar, não sabendo se mandam matá-los a pau como cachorros loucos ou se se prosternam diante deles em rapapés abjetos, derramando-se em juras de obediência como escravos ante seu senhor.
A tucanidade, enfim, resume e simboliza o próprio desencontro nacional, a condensação emblemática de todas as inépcias de um povo. Emergida de um grupo de cérebros confusos que julgavam poder abrir caminho para suas ambições por entre as páginas de O capital, terminou mergulhando numa dialética abissal em que a síntese, em vez de absorver tese e antítese, desaparece no entrechoque delas. Como um Mercúrio mentecapto que, em vez de dominar com mão de ferro as duas cobras do caduceu, fosse mordido por ambas.