Olavo de Carvalho
Época, 10 de Março de 2001
Ele não liga para matanças de cristãos, mas quando leva um pito é pranteado como mártir
De tempos em tempos, retorna às páginas da imprensa a lamúria de praxe em torno das perseguições inquisitoriais de que teria sido vítima o doutor Genésio Darci, mais conhecido pelo nom de plume de Leonardo Boff.
Esse escritor, que cinco anos após a queda do Muro de Berlim proclamava ser a rejeição do marxismo “um atraso teórico” para a Igreja, até hoje é apresentado como herói solitário em luta contra o establishment, embora desde suas primeiras escaramuças com o Santo Ofício ele tivesse o respaldo de um lobby internacional mais poderoso que mil Santos Ofícios.
O doutor Genésio nunca foi proibido de falar. Pediu-se apenas que não falasse em nome da Igreja, ficando livre para fazê-lo na condição de locutor leigo através de uma rede mundial de megafones.
O então franciscano, afirma-se, era apenas uma alma bondosa que queria o diálogo entre marxistas e cristãos. As regras do diálogo eram bem nítidas: a Igreja deveria acolher e proteger quem fizesse propaganda comunista entre seus fiéis, enquanto nos países comunistas os pregadores cristãos continuavam a ser presos, torturados e enviados para o céu sob os cuidados pastorais de pelotões de fuzilamento. Ninguém pediu que o doutor Genésio, aliás Boff, se abstivesse de falar em favor dessas vítimas. Seu mutismo, no caso, é voluntário e, comparado a suas prolíficas efusões de retórica lacrimal em causa própria, sugere que ele mesmo é o maior dos mártires.
Por mais psicótico que seja esse critério de avaliação da gravidade comparativa das perseguições, ele é endossado pelo noticiário nacional, que considera o silêncio parcial e temporário solicitado ao ex-frade coisa mais revoltante e digna de denúncia que o silêncio total e definitivo imposto a alguns milhares de cristãos, no mesmo período, mediante irrespondíveis tiros na nuca.
Se qualquer pretexto, por mais remoto e artificioso, serve para justificar o eterno retorno das carpideiras bófficas ao palco da mídia, o recente livro do historiador Robert Royal, The catholic martyrs of the twentieth century (New York, Crossroad, 2000), descrição da matança sistemática de católicos nos países totalitários, não foi sequer noticiado no Brasil. É o critério vigente: em compensação do martírio que os protetores do doutor Genésio impuseram à Igreja, ela não deve ter nem mesmo o direito de lhe puxar maternalmente as orelhas quando ele insinua que os mentores desse genocídio, Marx, Lênin, Mao e Fidel, eram tão cristãos quanto Santa Terezinha do Menino Jesus.
Ainda mais elucidativa é a comparação entre o destino do doutor Genésio, tanto mais pranteado como vítima de censura quanto mais espaço ocupa na mídia, e o dos sacerdotes conservadores que em vez de levar uma inócua reprimenda foram logo excomungados, e os quais, apesar disso, nunca, nunca são mencionados na imprensa brasileira como vítimas de qualquer perseguição. Um pito cardinalício no intocável doutor Genésio torna-se mais escandaloso que a ameaça pública de expulsão que autoridades eclesiásticas fizeram pesar não só sobre Gustavo Corção, mas sobre todos os leitores que concordassem com o que ele escrevia, por exemplo que era indecente um papa intervir em favor de terroristas e fazer vista grossa ao fuzilamento de dissidentes em Moscou.
A duplicidade da escala de valores, aí, chega às alturas de um cinismo quase impensável. Quando o senso moral de pessoas cultas é afetado ao ponto de perder a noção das proporções, algo de muito grave aconteceu na intimidade de sua constituição espiritual. A própria “teologia da libertação” do doutor Genésio–Boff preparou o terreno para isso. Mas a doutrinação política não basta para gerar tamanho efeito. É preciso uma ação mais funda, uma corrupção das capacidades básicas de percepção e julgamento. Foi constatando esse assombroso poder de deformação das consciências que David Horowitz, um observador judeu dos conflitos católicos, tirou a seguinte conclusão: “A teologia da libertação é um credo satânico”.