Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 10 de maio de 2001

Dentro da linha de raciocínio segundo a qual os traficantes não são traficantes porque querem, mas porque nós os obrigamos a sê-lo, o cineasta Breno Silveira, ao anunciar o filme que está fazendo para mostrar que a Falange Vermelha é quase uma instituição de caridade, contou à Folha de S. Paulo de 2 de maio que conheceu Marcinho VP durante uma filmagem no morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. O futuro detento do presídio de segurança máxima do Bangu tinha então 12 anos e trabalhava carregando os equipamentos da equipe cinematográfica: “Aquela foi uma experiência que me marcou muito. Eu me lembro de um depoimento bonito do Marcinho VP, em que ele afirmava que gostaria de ser advogado, mas que a vida, com certeza, não iria deixar.”

Curioso. Um de meus melhores amigos, o escritor Ronaldo Alves, nasceu no morro da Rocinha – mil vezes pior que o Dona Marta -, cresceu entre bandidos e quis se tornar advogado. A vida obviamente não o deixou, mas ele foi assim mesmo. Nunca roubou um palito de fósforo. Enquanto os meninos da vizinhança jogavam pelada e faziam troca-troca, ele estudava.

Coisa análoga posso dizer de mim mesmo, que na infância, embora criado entre cidadãos pacatos num bairro operário, conheci tanto quanto Marcinho VP a miséria, a fome, a indiferença do mundo, somando-se a isso a doença que só me largou na idade adulta.

Não consigo sentir dó desses sujeitos que dizem que ficaram pérfidos ou burros porque tiveram um mau começo de vida. Pois em geral eles começaram melhor que eu.

Mais curioso ainda é que nem eu nem Ronaldo tivemos a chance de conviver, logo na entrada da adolescência, com gente do show business que nos pudesse abrir a perspectiva de uma existência mais alta. O ambiente de compressiva mediocridade em que fomos criados não teve essa abertura luminosa. Ali sofremos decerto mais zombaria e discriminação por nossa mania de estudar do que Marcinho VP por sua inclinação ao crime.

Mas supremamente curioso é o critério moral com que Breno Silveira julga a sociedade e a si mesmo. Juro que, se um garoto da favela fosse meu ajudante por um só dia – não tenho equipamentos de filmagem, mas ele poderia, digamos, ajeitar meus livros nas estantes -, eu não o largaria enquanto não tivesse a certeza de haver feito por ele tudo o que estivesse ao meu alcance para encaminhá-lo melhor na vida. Eu faria isso ainda que ele não tivesse me contado o que queria ser quando crescesse. Se me contasse, então, eu compreenderia no ato que não se tratava de um “depoimento”, por mais interessante que parecesse, mas de um apelo. Quando um menino pobre nos conta seus sonhos de futuro, ele não está enriquecendo nossa memória de artista: está pedindo socorro. Sei disso porque um dia também contei meus sonhos – e ninguém ligou a mínima. Nem por isso achei que tinha o direito de me vingar, mais tarde, vendendo tóxicos a crianças. Breno Silveira, com suas câmeras e holofotes, passou pela vida de Marcinho VP e não deixou marcas.

Marcinho foi quem deixou um “depoimento bonito” para adornar as memórias do cineasta. Substancial contribuição: Breno pode agora sacá-la do baú e, do alto de sua autoridade moral de membro da elite esquerdista, julgar e condenar os que não fizeram pelo menino do morro Dona Marta o que ele também não fez. Com a diferença de que a eles o menino nunca pediu nada.

O contraste não poderia ser maior com a atitude de Walter Salles, o diretor de Central do Brasil, que, encontrando um menino pobre que aliás não lhe pedia nada, lhe ofereceu emprego num filme que mudou sua vida. Um filme que, como o de Breno Silveira, também mostra miséria e sofrimento, mas não faz dos bandidos vítimas e não transmite nenhuma lição de moral além daquela da qual o próprio Walter Salles deu exemplo – aquela lição que, segundo Goethe, resume todo o dever do homem: ser digno, prestativo e bom. A quem não quer ou não pode ser essas coisas resta o consolo moral de falar mal da sociedade. É isso o que, no Brasil de hoje, se chama “ética”. Por isso acho que o filme de Breno Silveira não deveria nem ser feito.

Ninguém precisa desse tipo de preleções de ética. Mas há um bocado de Marcinhos VP em potencial que precisam do dinheiro dessa produção para ter a chance de uma vida nova.

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