Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 24 de dezembro 2007
Não sei se a evolução biológica aconteceu ou não. Ninguém sabe. O que sei com absoluta certeza é que como construção intelectual o evolucionismo é um dos produtos mais toscos e confusos que já emergiram de uma cabeça humana – ou animal.
Estranha natureza, a dos evolucionistas, que, galgando etapas progressivas das amebas até os antropóides, chega a criar um ente compulsivamente inclinado a inventar o sobrenatural, e a inventá-lo mais ou menos igual por toda parte, sem contatos ou transmissões culturais – isto é, evolutivas – que tornem inteligível a unidade dessa concepção. Pois se há um fenômeno universal entre as culturas mais díspares no espaço e no tempo, é esse, não restando então aos evolucionistas senão justificá-lo; primeiro como necessidade inerente à evolução cultural em geral e em seguida jogá-lo fora como desnecessário e lesivo a essa mesma evolução. Tudo pela causa.
Não entendo por que os herdeiros intelectuais de Darwin odeiam tanto a idéia do design inteligente , já que foi o próprio Darwin quem a inventou, explícita e completa, nos parágrafos finais de A Origem das Espécies .
Tentando aplacar o escândalo, vêem-se obrigados a explicar esse trecho como mera concessão da boca para fora à mentalidade religiosa da época (como se a Inglaterra vitoriana fosse tão cristã quanto o século XIII), ao mesmo tempo que, para enfatizar a idoneidade intelectual de Darwin e sua ausência de motivações anti-religiosas, afirmam a sinceridade da sua devoção cristã.
Não há arranjo de pretextos, por mais rebuscado, incoerente e esdrúxulo, que não se possa improvisar na salvaguarda de uma fé periclitante. Nada no mundo evolui tão rápido quanto a Teoria da Evolução . Em pouco mais de um século, de Darwin a Dawkins, passou da necessidade férrea ao acaso mais gratuito e incontrolável, sem perder a pose nem a impressão de unidade. Uma teoria capaz de alegar em sua defesa motivos opostos e incompatíveis e continuar sendo ela mesma tem, evidentemente, a plasticidade semântica de um símbolo poético, de um mito.
Historicamente, o evolucionismo nasce como um mito ocultista, com Erasmus Darwin, depois transmuta-se numa ideologia político-social, com Herbert Spencer, e por fim numa hipótese biológica, com o neto de Erasmus, Charles. Que este não tenha sido influenciado nem pelas idéias do avô nem pela leitura dos Fist Principles , o best seller spenceriano que já continha em germe a sua teoria, é uma impossibilidade histórica manifesta.
Da ignorância dogmática dessa impossibilidade depende todo o prestígio do evolucionismo como teoria científica “pura”. Esse prestígio vale tanto quanto a crença escolar de que Newton não deduziu a sua física da sua teologia, e sim de “experimentos científicos”. Como se os conceitos de “tempo absoluto” e “espaço absoluto”, dos quais depende toda a teoria de Newton, pudessem ser objetos de experiência ( ai, meu saco! ) em vez de pressupostos lógicos a priori. Não há limites para a burrice, quando é científica.
Se o evolucionismo não fosse a tradução biológica de uma ideologia e sim a “pura” teoria científica que seus devotos pretendem, seria no mínimo estranho, para não dizer praticamente inviável, que ele proliferasse em tantas aplicações político-sociais muito antes de que alguém tentasse sequer cumprir a primeira e mais indispensável condição requerida pelo próprio Darwin para a sua comprovação científica, isto é, um conhecimento melhorzinho dos registros fósseis.
Apressa indecente com que uma teoria científica se transfigura em proposta revolucionária nada prova, em princípio, contra a teoria em si mesma, mas é obviamente capcioso reivindicar imediata autoridade científica para propostas políticas supostamente amparadas numa teoria física, biológica ou climatológica e ao mesmo tempo condenar como argumentum ad hominem toda tentativa de questionar a teoria no terreno moral e político. Afinal, se a proposta política decorre da teoria científica de maneira tão linear e inquestionável, é praticamente impossível que não haja algo de político na própria estrutura da teoria.
O caminho lógico que vai do diagnóstico da realidade a uma decisão quanto ao que se deve fazer com ela é sempre indireto e problemático: se ele se apresenta como direto e imediato, o mínimo que a prudência recomenda é averiguar se a decisão não antecedeu e determinou o diagnóstico. Neste caso, o exame dos pressupostos ideológicos embutidos na teoria é essencial não só para a discussão das conseqüências sociais pretendidas mas para a compreensão da própria teoria em si mesma, a qual, é claro, pode sair do exame bastante arranhada.
Uso a expressão “pressa indecente” para indicar que há uma diferença substantiva entre a mera extrapolação ideológica operada a posteriori por discípulos infiéis ou equivocados e a conversão instantânea da teoria científica em ideologia por obra dos próprios criadores da teoria.
No primeiro caso, esta permanece distinta das conseqüências ideológicas que se pretendam tirar dela; no segundo, não se trata de meras conseqüências, mas, ao contrário, de antecedentes, de pressupostos ideológicos embutidos na estrutura mesma da teoria, que neste caso só pode ser compreendida independentemente desses pressupostos mediante uma separação abstrativa posterior, não raro artificiosa.
Não faz o menor sentido exigir uma separação asséptica entre a “pura” teoria biológica e a ideologia que viria a ser chamada de “darwinismo social”, pelo simples fato de que esta última, na versão originária de Spencer e sem o nome que viria a caracterizá-la depois, antecedeu aquela e inspirou a obra de Darwin (e o evolucionismo como mito ocultista precedeu e inspirou a ambas). Mais ainda: uma vez criada a biologia darwinista , sua retransmutação imediata em proposta social – agora com novo “fundamento científico” — não veio pelas mãos de discípulos remotos e incapazes, mas por iniciativa do próprio Darwin e de seu colaborador mais imediato, Ernst Haeckel.
Aquele foi explícito ao declarar que considerava a liquidação das “raças inferiores” um processo evolutivo normal e desejável. O segundo fundou pessoalmente organizações racistas que contribuíram em muito para a formulação da ideologia nazista. Para completar, o fiasco da proposta nazista não fez com que os darwinistas recuassem de suas ambições ideológicas e se restringissem à pesquisa científica “pura”. Ao contrário, a Teoria da Evolução evoluiu mais ainda: ampliou-se em doutrina totalizante da história e da cultura, alimentando hoje a pretensão de substituir-se à filosofia e à religião no guiamento moral da humanidade.
Continua na próxima segunda-feira