Olavo de Carvalho
Diário do Comércio (editorial), 27 de julho de 2006
Se há um assunto sobre o qual não faltam informações, é o MST. Há os livros e discursos do sr. João Pedro Stedile. Há uma infinidade de panfletos, sites da internet, notícias, artigos e entrevistas de jornal, bem como documentários da TV nacional e internacional. Há os relatórios da polícia e do Ministério da Reforma Agrária. Há, para quem deseje saber algo contra, os livros de Xico Graziano (O Carma da Terra no Brasil) e Nelson Ramos Barreto (Reforma Agrária — O Mito e a Realidade), sem contar os relatos de observação direta do advogado paulista Cândido Prunes.
Mesmo supondo-se, para raciocinar por absurdo, que nenhum dos militares que freqüentam a Escola Superior de Guerra tivesse jamais acesso a dados colhidos pelos órgãos de inteligência, ainda assim o material existente sobre os sem-terra é abundante, e o tempo que todos os interessados tiveram para estudá-lo foi bem longo. O general Barros Moreira, comandante da ESG, está e sempre esteve ciente de que uma simples palestra, pronunciada por uma criatura que não prima pela erudição nem pela criatividade da inteligência, não poderia acrescentar algo de substancial e novo ao que ele próprio e os demais membros da Escola já sabiam de cor e salteado. Não poderia e não acrescentou: o sr. João Pedro Stedile nada disse ali que já não tivesse dito pelo menos uma dúzia de vezes. Em compensação, acrescentou um novo brilho ao seu próprio curriculum: de chefe de uma organização ilegal e criminosa, foi elevado à condição de porta-voz de uma corrente de opinião legítima, merecedora não só de discussão respeitosa nos altos círculos intelectuais da nação como também dos aplausos entusiásticos que a platéia esguiana não lhe regateou. O general sabe hoje, como sabia ao formular o convite, que esse seria o único efeito previsível da recepção dada ao chefe do MST numa instituição que, afinal, já foi bastante respeitável no passado.
Ao alegar que “a ESG tem de ouvir os dois lados” e que se Stedile é criminoso “isso é problema da Justiça e não da ESG”, o general só forneceu a prova cabal de que, na sua opinião, entre o lado da Justiça e lado do crime a instituição que ele preside deve ser imparcial e soberanamente indiferente. Ele apenas se esqueceu de esclarecer que esse nivelamento é a essência mesma do crime, o qual não seria crime se respeitasse o primado da lei em vez de ombrear-se com ela.
Apagar a diferença entre a legalidade e a ilegalidade é aliás a estratégia deliberada e constante do próprio MST, conforme expliquei em artigo recém-publicado (http://www.olavodecarvalho.org/semana/060720jb.html):
“O MST poderia, sem dificuldade, ter-se registrado como ONG e solicitado legalmente a ajuda financeira do Estado. Se não o fez, não foi tanto para escapar à responsabilidade civil e penal, mas por um cálculo estratégico muito preciso: mais importante até do que instituir a violência e o terror como meios válidos de acesso à propriedade da terra era subjugar e usar o próprio Estado como instrumento legitimador do processo… Essa inversão radical do critério de legitimidade é muito mais decisiva do que a subseqüente tomada do poder, que não faz senão dar expressão visível ao fato consumado .”
Que um governo que coloca suas alianças revolucionárias acima das leis e da Constituição ajude o MST a implementar essa transição não é, em si, nada de estranho. A novidade é que um alto oficial das Forças Armadas, personificando uma instituição reconhecida como expressão do pensamento militar, se disponha tão bisonhamente a colaborar nessa empreitada sinistra, fundada num dos mais pérfidos cálculos estratégicos da elite gramsciana que conduz o processo da revolução continental.
Segundo o Art. 142 da Constituição, incumbe às Forças Armadas garantir os poderes constitucionais, e não ajudar a corroê-los por meio de ardis maliciosos como esse no qual o sr. Stedile se tornou o supremo expert.
Mas o general Barros Moreira não se limitou a passar por cima da Constituição. Tomando uma decisão que ele não podia deixar de saber que iria chocar a sensibilidade de quase todos os seus companheiros de farda, ele infringiu ostensiva e conscientemente o Regulamento Disciplinar do Exército, que, no seu Anexo 1, proíbe “concorrer para a discórdia ou a desarmonia ou cultivar inimizade entre militares”.
Se ele o fez com cara de inocência, das duas uma: ou foi por ser idiota o bastante para acreditar que não havia nisso nada de mais, ou foi por saber que a camuflagem anestésica é indispensável à transição indolor pretendida pelo MST. Nos dois casos a indignação que tantos oficiais militares vêm mostrando contra ele é mais do que justa: é moralmente obrigatória. O que esse homem lhes pediu foi que se curvassem alegremente à desonra consentida, depois de tantas humilhações já impostas às Forças Armadas. Foi a proposta mais indecente que um oficial brasileiro já fez à corporação militar.