Olavo de Carvalho


Digesto Econômico, janeiro/fevereiro de 2007

O Brasil que emergiu das últimas eleições pode ser resumido num conjunto de dilemas insolúveis que o novo governo, aliás velho, terá de empurrar com a barriga por mais quatro anos a não ser na hipótese remota de que um surto de genialidade se aposse dele e lhe inspire soluções.

O primeiro é o dilema geral do esquerdismo hoje em dia. Esvaziada de suas antigas propostas socio-econômicas, que nem seus líderes mais inflamados ousam ainda defender na versão originária, a esquerda mundial sobreviveu à queda da URSS e até se fortaleceu na base do puro ódio cultural (anti-ocidental, antijudaico, anticristão) e do anti-americanismo nu e cru. Esses dois item mesclam-se confusamente no slogan da “guerra contra o Império”. Mas, como reconheceu o próprio teórico esquerdista maior, Antonio Negri, o Império já não é americano. É supranacional. Os pilares em que se assenta são as megacorporações e os organismos internacionais de controle (ONU, OMC, Unesco, OMS etc.) com sua rede de ONGs espalhadas pelo mundo, subsidiadas por aquelas mesmas corporações. Esse macro-sistema de poder não somente não se identifica com a soberania nacional americana mas luta abertamente para dissolvê-la e absorvê-la numa espécie de governo mundial. É a teoria Garrison-Gorbachev do “império transitório” a ser imolado no altar do “império definitivo”. Na medida em que, por tradição ou automatismo, o movimento esquerdista nacional se volta contra os EUA, ele serve ao governo mundial em formação: a luta contra o “império transitório” se torna serviço prestado à construção do “império definitivo”. O fato aparentemente paradoxal de que praticamente toda a esquerda mundial seja subsidiada pelas grandes fundações bilionárias integradas no projeto do governo mundial encontra aí sua explicação. Os obstáculos mais sérios à consecução desse projeto são as soberanias nacionais dos EUA e de Israel. Um “anti-imperialismo” voltado contra esses dois pólos é tudo o que o Império precisa para consolidar-se às custas de milhões de idiotas úteis que imaginam combatê-lo.

De outro lado, a luta cultural anti-ocidental, incentivada e subsidiada pelos próprios condutores do processo de globalização imperial, não tem resultado em fortalecer o Estado leigo (supostamente destinado a constituir o modelo do Estado mundial), mas em debilitá-lo em proveito da invasão islâmica. Quanto mais as sociedades ocidentais se afastam dos princípios da civilização judaico-cristã, mais se tornam incapazes de defender sua identidade contra o assédio da “alteridade” islâmica. Não só as nações se enfraquecem, mas o próprio Estado mundial, erguendo-se sobre os escombros das identidades nacionais e tradições religiosas, já nasce desprovido de princípios e valores capazes de resistir à maré montante do Islam globalizado.

O dilema da esquerda mundial, que nem seus próceres mais destacados parecem ter enxergado claramente até o dia de hoje, consiste em que todos os seus esforços anti-americanos e anti-ocidentais refluem em benefício do projeto imperial global e, a mais longo prazo, da ascensão islâmica, que traz em seu bojo valores simetricamente opostos àqueles representados pela rebelião cultural esquerdista.

Nosso governo, sendo nada mais que um pseudópodo do movimento esquerdista internacional, vivencia esse dilema, aparentemente sem ter dele a menor consciência. Isto significa que, faça ele o que fizer, sua única função histórica terá sido a de servir a forças cujo alcance lhe escapa por completo. Um papel especialmente cômico, nessa farsa inconsciente, parece estar reservada aos “nacionalistas” das Forças Armadas, que, ansiosos para integrar-se na “guerra do povo inteiro” contra o fantasma do imperialismo americano, se tornarão cada vez mais idiotas úteis a serviço do “império definitivo”, a não ser na hipótese quase impensável de que parem de se auto-hipnotizar com slogans patrióticos deslocados da situação real, comecem a prestar atenção nas minhas análises e adquiram ao menos um vislumbre de qual é a guerra e qual é o inimigo.

O segundo dilema insolúvel que define a posição do nosso governo na ordem da realidade é o drama da violência nacional crescente que não pode de maneira alguma ser reprimida sem trazer danos a um dos mais queridos parceiros ideológicos do governo, a narcoguerrilha colombiana. Mas, se conseguimos sobreviver enquanto a taxa de homicídios no território nacional crescia para cinqüenta mil por ano, por que não poderemos, intoxicados de desconversas e evasivas, suportar mais cem mil ou duzentos mil? O brasileiro, afinal, parece ser mesmo o povo mais facilmente governável do universo.

O terceiro dilema é o das relações com os EUA. Esticando ao máximo a relativa independência de política econômica e poder político, o governo tem conseguido, até agora, conciliar as exigências do capitalismo internacional com as do comunismo continental. O primeiro sinal de que essa coincidentia oppositorum começa a fazer água veio na recusa oficial, polida mas firme, de realizar a mais linda esperança da diplomacia Bush, a de que o Brasil consentisse em servir de freio às ambições continentais de Hugo Chávez. Da minha parte, sempre disse e escrevi que isso era esperança utópica, que os compromissos de Lula com o Foro de São Paulo (e portanto com Hugo Chávez) eram mais profundos e sólidos do que a CIA podia ter soprado aos ouvidos do presidente Bush. O fracasso da missão Gonzales no Brasil, por mais disfarçada que esteja por trás de sorrisos e desconversas, foi um teste de realidade das idéias de George W. Bush sobre a América Latina, e elas não passaram no teste. Mas, se isso cria um problema para os EUA, cria outro maior para o governo brasileiro, cuja carapaça de hipocrisia acaba de ser furada a olhos vistos, embora os assessores de Bush façam de conta que não perceberam nada. Nossa melhor esperança de manter boas relações com os EUA reside em fazer alguma macumba para que o presidente Bush consinta em ingerir novas doses de anestésico diplomático e, redobrando sua imunidade aos fatos, continue sonhando que o Brasil é seu grande aliado contra Chávez. A sorte do Brasil, nesse ponto, depende de saber até onde Lula poderá continuar realizando prodígios de elasticidade entre o compromisso socialista e o compromisso capitalista.

Dilemas insolúveis são horríveis para quem os padece, mas, para o observador que deseja compreender a situação, são preciosos. Num jogo de xadrez, como é que você faz para saber qual o próximo lance de um jogador? Você começa por analisar onde é que as peças dele estão travadas pela posição das peças do adversário, isto é, você exclui as jogadas impossíveis. Em política é a mesma coisa. Exclua as jogadas impossíveis e saberá quais as possibilidades que restam. Mas há uma diferença: o enxadrista nunca estraga de propósito o próprio jogo. Os políticos, quando se vêem travados por todos os lados, às vezes não hesitam em arriscar as jogadas impossíveis, ou porque não sabem que são impossíveis, ou porque o suicídio nacional lhes parece o caminho da salvação. Se o presidente Lula ainda for sensato o bastante para evitar essa hipótese, tudo o que lhe restará serão quatro anos de desconversa, recheados de “programas sociais”, leis inócuas e muita propaganda. Ele terá falhado àquilo que considera sua “missão histórica”, mas, afinal, ele já não parece ligar muito para isso. A outra hipótese, a de uma iluminação súbita que lhe inspire soluções geniais e imprevistas para os quatro dilemas apontados, me parece bastante remota.

Se os liberais e conservadores não tivessem cuidado apenas de emascular-se ideologicamente e de reduzir-se ao estatuto de auxiliares da esquerda light, este seria o seu grande momento. Na luta contra um adversário preso numa rede de impossibilidades, eles teriam todas as chances. Mas para aproveitá-las precisariam antes tratar de existir como força ideológica definida, e isto eles parecem não querer de maneira alguma.

Quando olho para trás e vejo que desde 1993 tenho acertado em todas as minhas previsões políticas, quando nenhum outro analista nacional pode se gabar de feito idêntico, e por outro lado observo a relutância suspeitosa que tantos líderes da nossa “direita” opõem em seguir os meus conselhos, a única conclusão que posso tirar disso é que o seu futuro, como coletividade, não me parece muito brilhante. Resta apostar nas exceções individuais.

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