Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 11 de dezembro de 2008
Mesmo quando você tem todos os documentos e testemunhos de fonte primária, é impossível escrever História sem um bocado de imaginação. É a imaginação que cria os nexos entre os vários pontos que os documentos e testemunhos não atestam senão separadamente. A História é uma ciência, ciência é a busca da racionalidade no real, e buscar a racionalidade no real não é senão ir subindo na escala dos quatro discursos de Aristóteles, do possível ao verossímil, do verossímil ao razoável e do razoável ao demonstrado ou certo. A primeira etapa desse processo é puro trabalho de imaginação. É a imaginação que enquadra os dados na moldura racional dos graus de credibilidade admissíveis, com o objetivo ideal de tornar viável, no fim, a prova científica.
O que estou dizendo não vale só para o historiador de ofício, é claro. Toda compreensão de fatos políticos, sociais, culturais, psicológicos e econômicos tem como pressuposto o enquadramento imaginativo da situação. Só sobre essa base é possível o trabalho crítico da inteligência. O raciocínio mais exato do mundo, exercido sobre uma base imaginativa estreita, deformada ou doente, só pode levar a erros terrivelmente persuasivos.
O problema é que a imaginação do cidadão comum é deploravelmente pobre e esquemática em comparação com as complexidades e as profundezas abissais da história contemporânea. Com a maior facilidade o sujeito é induzido a crer em histórias da carochinha que confirmam os seus preconceitos e esperanças e a duvidar dos fatos mais amplamente comprovados que, à sua minguada capacidade imaginativa, pareçam estranhos ou inverossímeis. E não me refiro só ao povão, mas à quase totalidade dos “formadores de opinião” que em geral não são estudiosos treinados na arte da “fantasia exata”, mas apenas cérebros de segunda ordem intoxicados de estereótipos e frases feitas, desesperadamente necessitados da aprovação de seus pares ao ponto de preferir errar com eles, quando a alternativa é uma verdade solitária.
O termo “fantasia exata” é de Leonardo da Vinci: designa a imaginação treinada para deslizar ao longo das estruturas do real, em vez de afastar-se delas. É a habilidade cognitiva mais decisiva – e a mais escassa entre os “intelectuais públicos”, não só no Brasil como no resto do mundo.
Para complicar um pouco mais as coisas, o imaginário popular é moldado hoje em dia pela indústria do show business, o que é o mesmo que dizer que a mente do cidadão comum só é capaz de conceber na vida real as situações que tenham precedentes no cinema ou na TV, sendo que esses precedentes, por sua vez, são limitados à escala mental dos mini-intelectuais que predominam nessa indústria. Eis aí por que toda hipótese de “conspiração” só tem credibilidade quando os suspeitos são os vilões convencionais de Hollywood: a CIA, as “grandes corporações”, o Exército americano, etc. Por esse lado, as histórias mais absurdas são aceitas com uma credulidade espantosa. Na imaginação popular, o movimento comunista internacional, a espionagem chinesa, os globalistas da ONU e similares nem mesmo existem. Qualquer denúncia que se faça contra eles, por mais bem documentada que esteja, é facilmente impugnada como fantasia paranóica, justamente porque vem em sentido contrário da fantasia paranóica popularmente consagrada. Milhões de idiotas clamam contra os “lucros exagerados” das companhias de petróleo, chegando a atribuir a voracidade delas à guerra do Iraque, sem jamais levar em conta que esses lucros, na mais ousada das hipóteses, não chegam a um terço dos 19 por cento ao ano obtidos pela indústria farmacêutica, esta sim um dos pilares fundamentais do governo mundial em formação.
No caso do público americano, o que o torna ainda mais vulnerável à manipulação das notícias é a sua necessidade compulsiva de parecer equilibrado, centrista, polidíssimo e mainstream. A busca da verdade é severamente tolhida quando tem de atender simultaneamente a tantas exigências externas, dispersantes e debilitantes. Para complicar, o padrão de equilíbrio e centralidade é determinado inteiramente pela grande mídia, pelo show business e pela intelectualidade acadêmica – precisamente os três setores da sociedade onde se concentra o maior número de inimigos internos dos EUA. Acrescente-se a isso o fato óbvio de que é infinitamente mais fácil, precisamente graças às virtudes democráticas da sociedade americana, investigar os subterrâneos da CIA ou a vida empresarial de Dick Cheney do que a montanha compacta de segredos da espionagem chinesa, da máfia russa ou da rede internacional de ONGs ativistas. O resultado é que o público americano tem sempre a impressão de que o maior inimigo da humanidade são os EUA, precisamente porque ignora tudo ou quase tudo a respeito dos inimigos da América. Os americanos reprimem sua indignação, policiam suas palavras e se omitem de tomar muitas decisões necessárias e urgentes, só para não desagradar àqueles que os odeiam e para não parecer loucos aos olhos da loucura anti-americana.