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Cretinices Gramscianas (I)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de junho de 2015          

Como foi que o comunopetismo, após cinco décadas de hábil e continuado esforço para conquistar a hegemonia segundo a receita de Antonio Gramsci, caiu do sucesso avassalador para o fracasso total em apenas um dia, a data fatídica de 15 de março?
A resposta é simples: a receita gramsciana está errada. Não funciona. Não vale nada, seja como análise da estrutura do poder, seja como fórmula para conquistá-lo. Serve para infundir na esquerda um entusiasmo temporário que termina por jogá-la num buraco ainda mais fundo do que aquele do qual pareceu tirá-la no começo.
Tal como o marxismo clássico, o revisionismo de Bernstein e Kautsky, o leninismo, o stalinismo, o trotskismo, o maoísmo, a teoria “foquista” de Régis Débray, o marxismo estrutural de Louis Althusser e não sei mais quantas versões e remodelagens, o gramscismo nunca passou de mais uma na série interminável de formas ilusórias, entre patéticas e mortíferas, de que o marxismo se revestiu no empenho louco de dominar a realidade total e moldar o curso da História.
Um traço essencial do pensamento esquerdista, cuja disseminação nas escolas brasileiras basta por si só para explicar o decréscimo de capacidade dos nossos estudantes, jornalistas, professores universitários e intelectuais em geral, é aquele que, à falta de melhor nome, chamo “indução mediada”.
No processo normal do conhecimento científico, o acúmulo de fatos convergentes sugere uma constante, que então se consolida em hipótese descritiva e deve ser testada no confronto com possíveis fatos divergentes, antes mesmo de adquirir o estatuto de “teoria”.
Na visão esquerdista das coisas, entre os fatos e a hipótese descritiva já se interpõe toda uma teoria prévia – carregada, sempre, de moralismo acusador – que não só obriga os fatos a ir na direção desejada, mas obstaculiza, proíbe e impossibilita de antemão o confronto com os fatos divergentes, ao ponto de que o simples fato de alegá-los se torna prova da acusação embutida.
Notem bem: eu não disse que isso acontece de vez em quando, que é um cochilo frequente entre pensadores de esquerda. Disse que é um traço essencial e infalível, presente mesmo nas criações mais altas da intelectualidade esquerdista e sem o qual ela não poderia ser esquerdista de maneira alguma.
A teoria interposta tem uma infinidade de versões, mas pode-se resumir numa premissa simples e unívoca: Todos os males do mundo provêm de que aqueles que estão no poder não somos nós (comunistas e afins). Levei décadas para perceber que essa premissa, com toda a candura da sua estupidez brutal, está presente em cada linha não só dos “clássicos do marxismo”, Marx, Engels, Lênin, Stalin, Mao, mas dos militantes intelectuais marxistas mais sofisticados, como Lukacs, Sartre, Merleau-Ponty, Foucault, Althusser, Gramsci.
Retire-a, e tudo o que eles escreveram não passará de um imenso e insensato non sequitur, tirando dos fatos conclusões que eles não sustentam nem em sonhos. Ponha-a de volta, e tudo começará a fazer sentido, mas não como teoria científica e sim como camuflagem pseudocientífica de uma intransigente e psicopática reivindicação de poder.
O próprio Marx já confessou isso implicitamente na sua 11a. Tese sobre Feuerbach: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; o que importa é transformá-lo. ”
Se o filósofo pode exercer a sua atividade contemplativa longe dos altos escalões do poder e sem nenhuma intenção nem mesmo de frequentá-los, “transformar o mundo” requer, como primeiríssima condição, o poder de fazê-lo. Tudo, absolutamente tudo no pensamento marxista, marxiano, pró-marxista e marxistóide depende fundamentalmente dessa premissa, sem a qual ele não poderia ser o que é.
Isso quer dizer que, mesmo ao falar de assuntos que estão aparentemente a léguas de qualquer luta pelo poder – as tragédias de Ésquilo, a arquitetura das catedrais ou a música de Mozart – o intelectual marxista (uso o termo lato sensu) está sempre investigando a mesma questão ou série de questões: Quem está no poder, como chegou lá, como podemos tirá-lo de lá e ocupar o lugar dele?
Tudo, absolutamente tudo entre o céu e a terra, é examinado sob esse prisma e somente sob ele. A variedade mesma dos assuntos que interessam aos marxistas é a prova de que essa perspectiva obsessivamente limitada e limitadora pode ser estendida a todos os objetos possíveis, já que tudo pode ser útil para a conquista do poder, da mesma maneira que tudo pode ser meio ou obstáculo para a conquista de qualquer outro objetivo humano: a felicidade, a salvação da alma, a glória de uma nação ou raça, a prosperidade geral, a paz universal etc. etc.
Tudo o que existe, sob qualquer modo que seja, se torna então um instrumento de dominação, e todo o problema consiste em saber como tomá-lo dos seus detentores passados e presentes e entregá-los aos comunistas.
Imaginem, por exemplo, em quê se transforma, na perspectiva marxista (repito: lato sensu), o estudo da linguagem.
Antonio Gramsci enfatiza que em muitas línguas o adjetivo “bom” vem da mesma raiz que significa “rico” ou, como no latim, é ele próprio um sinônimo de “rico”.
O consensus bonorum omnium, “consenso de todos os homens bons”, a que Cícero apela contra o sedicioso Catilina, não é outra coisa senão a opinião dos ricos e poderosos, os membros do Senado, os optimates em oposição aos populares.
É um fato. Mas Gramsci interpreta-o como prova de que a linguagem é por excelência um instrumento da hegemonia, o controle do que a sociedade pode ou não pode pensar. Na medida em que acredita que os ricos são os bons, ela se sentirá inibida de agir contra eles.
Mas, se fosse assim, todas as palavras do idioma deveriam enaltecer as virtudes dos ricos e vituperar os vícios dos pobres. Não poderia existir, por exemplo, a palavra corruptio, que no uso romano significava eminentemente induzir ao mal por meio de propinas – um modo de agir que é próprio dos ricos e não está ao alcance dos pobres.
Nem poderia existir o verbo spolio, spoliare, que, em contraste com outras acepções do verbo “roubar”, como subripio, latrocinor, surrupio etc., designa eminentemente a espoliação do fraco pelo forte, do pobre pelo rico.
Se a linguagem fosse propriedade dos ricos e instrumento da sua glória, toda palavra que por si insinuasse alguma coisa contra eles deveria ser suprimida do vocabulário.
Se não o é, é pela simples razão de que as palavras não são consagradas no vocabulário dominante pela classe dominante, mas pelos gramáticos e escritores, que tanto faz serem pobres ou ricos, assim como pelo uso popular repetido, que se prolonga pelos séculos e transcende quaisquer disputas momentâneas de poder.
“Bom” ser usado como sinônimo de “rico” não significa que os ricos sejam sempre bons, o que seria uma crença demasiado pueril para ter qualquer eficácia retórica, mas, simplesmente, que é melhor ser rico que ser pobre — uma verdade que os pobres conhecem até mais que os ricos.
Isso sem contar o fato banal de que qualquer adjetivo pode ser usado em sentido literal ou em sentido irônico, dependendo da construção da frase. Para usar os termos clássicos de Saussure, o significado das palavras não é decidido no nível da língua, mas no da fala – no uso concreto que as pessoas fazem da língua.

Gerenciando os danos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de maio de 2015

          

No último programa da Joice Hasselmann, o sr. Marco Antonio Villa, sem citar o meu nome, já que não é homem para isso, voltou a chamar-me de “embusteiro”, “171” e coisas similares, desta vez por ter atribuído ao dramaturgo comunista Bertolt Brecht a seguinte frase, dita a propósito dos condenados nos Processos de Moscou: “Se eram inocentes, tanto mais mereciam ser fuzilados.”
Brecht, segundo Villa, jamais disse isso.
É tudo invenção minha. Infelizmente, o episódio é testemunhado pelo filósofo Sidney Hook na página 493 do seu livro de Memórias, Out of Step. An Unquiet Life in the 20th. Century (New York, Carrol& Graf, 1987) e, segundo Paul Johnson – em Intellectuals, página 190 da edição de 2007 da Harper Perennial (agradeço ao Filipe G. Martins este lembrete) –, foi confirmado por outra testemunha, o prof. Henry Patcher, da City University.leia
O leitor pode verificar por si mesmo nas imagens que acompanham este artigo.
Novamente fica esclarecido quem é o embusteiro.
Mas o embuste do qual o sr. Villa fez a sua especialidade profissional não teria maior relevância se consistisse apenas em mentir contra alguém do qual ele sabe praticamente nada e que nunca lhe fez mal nenhum.
Birras individuais sem motivo, mesmo quando levam a obsessões difamatórias, são matéria para consultórios de psicoterapia, não para discussão pública.

leia
Mas o anti-olavismo espumante do sr. Villa não é uma loucura sem método. Há nele toda a racionalidade perversa de uma estratégia política calculada para montar na onda da revolta popular antipetista e, esvaziando-a de todo conteúdo ideológico, revertê-la no fim das contas em benefício da mesma “revolução gramsciana” que criou o PT, o instaurou no poder e o dotou de todos os meios de mentir, trapacear e roubar sem jamais ser punido.
Muito antes de que o sr. Villa entrasse em cena, eu já havia mostrado essa estratégia em ação no Brasil (leia aqui e aqui).
Trata-se do velho artifício esquerdista de limpar-se na sua própria sujeira. Quando crimes e iniquidades longamente negados e explicados como invencionices da “imprensa burguesa” crescem ao ponto de se tornar impossível escondê-los, a esquerda rouba de seus adversários o discurso de denúncia, num esforço tardio e desesperado, mas não raro bem-sucedido, de saltar do banco dos réus para a tribuna dos acusadores.
O procedimento retórico empregado nessa operação é sempre o mesmo: reconhecer os delitos, mas atribuir sua culpa à “direita”, passando a chamar retroativamente de direitistas os mesmos líderes que durante décadas a esquerda em peso reconhecera como as personificações quintessenciais do mais puro esquerdismo.
Se fizeram isso até com Stálin – e, na França de 1968, com o Partido Comunista inteiro – por que não haveriam de fazê-lo também com Lula, na hora do aperto?
Se já esboçaram reações desse tipo em 2004 e 2006, quando os escândalos eram ainda incipientes, por que não haveriam de reencená-las, com mais ênfase ainda, no momento em que os feitos do PT se revelam, aos olhos do povo, como recordes mundiais de corrupção dignos de figurar no Guiness?
Para desempenhar sua parte no empreendimento, o sr. Villa faz das tripas coração para persuadir a plateia a engolir duas mentirinhas bobas nas quais nem ele mesmo acredita:
Primeira: Nem Lula nem o PT têm nada de comunistas. Lula não passa de um direitista empenhado em defender o grande capital.
Segunda: Só quem pode e deve fazer algo contra o descalabro petista são as “nossas instituições democráticas”: o Congresso e o sistema judiciário. As massas que tratem de refrear seus impulsos belicosos e de obedecer a seus “legítimos representantes”. Tudo o que vá além desse limite é “saudosismo da ditadura”.
Comentarei aqui só a primeira delas, deixando a segunda para um artigo vindouro.
Com o objetivo de sustentar a tese do direitismo petista o comentarista tem de estreitar propositadamente o seu horizonte de visão até que nada caiba nele além de um “esquema de corrupção” do qual se beneficiam, junto com o PT, alguns grandes grupos bancários e empresariais. Para fazer disso um “direitismo” é preciso operar no corpo da realidade alguns cortes drásticos, suprimindo:
(a) o fato de que o esquema tem financiado o crescimento das organizações de esquerda até o ponto em que só elas, e mais partido nenhum, podem apresentar candidatos à presidência;
(b) o fato de que as verbas do Estado brasileiro têm sido usadas generosamente para salvar o movimento comunista na América Latina e na África, injetando vida nova em regimes ditatoriais economicamente moribundos;
(c) o fato de que essas mesmas verbas alimentam o crescimento da “revolução cultural” gramsciana em todas as áreas da vida social, promovendo sistematicamente a derrubada dos valores que na perspectiva gramsciana representam a “ideologia burguesa”;
(d) o fato de que o dinheiro público fomenta o crescimento ilimitado de “movimentos sociais” criminosos, cada vez mais reconhecidos como entidades imunes à aplicação das leis.
E por aí vai. As vantagens financeiras que alguns banqueiros e empresários têm levado nesse esquema não são nada mais que as migalhas que o próprio Lênin recomendava atirar a uma burguesia idiota o bastante para abdicar de todo poder político próprio – e até de um discurso ideológico próprio – em troca de um dinheiro sujo que só serve para escravizá-la cada vez mais à liderança esquerdista.
É só suprimir esses fatos, e pronto: transferida a patifaria lulista para a “direita”, o público está preparado para contentar-se com um antipetismo higienizado, castrado, apolítico, incapaz de trazer qualquer dano às organizações de esquerda, mas bem capaz de salvá-las do desastre que elas mesmas criaram.
Tal é o antipetismo do sr. Villa e de outros iguais a ele: puro gerenciamento de danos.

Direto ao Ponto – Joice Hasselmann entrevista Olavo de Carvalho

Direto ao Ponto, 16 de maio de 2015

“O comunismo foi fundado por meio de assalto e corrupção”, diz Olavo de Carvalho

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