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A tradição revolucionária – 4 (final)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de julho de 2011

Para encerrar estas breves explicações, só faltam duas coisas: dar um exemplo concreto, entre milhares de outros possíveis, da continuidade histórica da ação revolucionária, e esclarecer – como me pedem alguns leitores – o conceito de “movimento revolucionário mundial”.

O exemplo trará por si mesmo um começo de esclarecimento.

Escrevendo em 12 de junho de 1883 a Eduard Bernstein, Friedrich Engels dizia que era preciso induzir os inimigos da revolução a “fazer-se uns aos outros em pedaços, moer-se uns aos outros até virarem pó, assim pavimentando o caminho para nós”.

Decorridos quarenta e tantos anos, a proposta ressurge na boca de Lênin, mas agora já não como mera idéia e sim como estratégia pronta para aplicação imediata. Tendo a experiência da guerra imperialista entre as potências européias como condição preparatória do levante revolucionário, mas vendo que os resultados obtidos tinham sido apenas parciais, com a instauração do socialismo num só país, ele se pergunta em 1916 o que é necessário para que a revolução volte a eclodir, mas desta vez em escala mundial. E a resposta que ele dá é inequívoca: precisamos de “uma segunda guerra imperialista”.

Hoje sabe-se, com certeza histórica suficiente, que a sugestão não caiu no vazio, mas foi levada à prática, com destreza quase mágica, pela política externa de Stálin. Estimulando em segredo as ambições imperialistas de Hitler ao mesmo tempo que promovia nas democracias ocidentais uma violenta campanha antinazista, Stálin conseguiu induzir as grandes potências a “fazer-se umas às outras em pedaços”, pavimentando o caminho para a ocupação de meia Europa pelas tropas soviéticas, o que era o seu plano desde o começo.

Entre a carta de Engels e a eclosão da II Guerra Mundial passaram-se seis décadas. Nesse ínterim, o que era apenas uma possibilidade teórica transformou-se num plano de ação e numa estratégia de efeitos avassaladores. Essa transformação só foi possível porque, ao longo de quatro gerações, os revolucionários comunistas não cessaram de meditar e remeditar os mesmos textos, sempre com o propósito de transmutar a teoria em prática e de enriquecer a teoria com os resultados da prática.

Essa continuidade, porém vai muito além da evolução interna do movimento comunista stricto sensu. Thomas Münzer, Maquiavel ou o marquês de Sade nunca foram comunistas nem membros de um partido que não existia no seu tempo. Eram revolucionários no sentido mais genérico do termo. Mas quem pode negar a força que o movimento comunista adquiriu ao absorver suas doutrinas, transmutando-as em ferramentas estratégico-táticas pelos bons préstimos de Ernst Bloch, Antonio Gramsci e Jean-Paul Sartre?

Nem sempre o material absorvido vem da mesma facção revolucionária. A linha nacionalista-romântica do início do século XIX, que deu origem ao fascismo e que muitos revolucionários internacionalistas e materialistas chegaram a condenar como reacionária, acabou se integrando muito bem na cultura comunista através da interpretação que lhe deu o filósofo marxista húngaro Georg Lukacs. Sem isso, florescimentos posteriores como a “teologia da libertação” não teriam sido possíveis.

Do mesmo modo, as lições de Lênin se transformaram num modelo para a criação do movimento fascista italiano.

Às vezes a substância a ser transmutada vem de fonte estranha. O Dr. Freud, um conservador que desprezava o socialismo, estava bem consciente do potencial explosivo das suas teorias, mas não poderia imaginar a facilidade com que, através de Wilhelm Reich, essa força anárquica viria a ser integrada e enquadrada no arsenal do movimento comunista.

A unidade histórica da revolução não é a unidade formal e burocrática de uma “organização”, de um “partido”, mas a unidade viva e móvel de uma “tradição” que, ao longo dos tempos, vai tudo absorvendo e transmutando em instrumento de poder, aumentando incessantemente a força de giro de um “movimento” que, não podendo levar a parte alguma, tem o seu próprio incremento ilimitado como única finalidade e justificação da vida humana.

Onde quer que se veja uma idéia, uma doutrina, um símbolo ser transfigurado em meio de ação política com vistas à concentração do poder para a “transformação do mundo”, ali está presente a unidade do movimento revolucionário mundial, para além de todas as divergências partidárias e ideológicas.

Ao longo do tempo, essa unidade, de início nebulosa e meramente potencial, vai se tornando mais clara aos próprios revolucionários. A confraternização de gayzistas, feministas, comunistas, radicais islâmicos, neonazistas, socialdemocratas e tutti quanti, que hoje reúne facções antes hostis num front mundial contra as democracias ocidentais e o cristianismo, é o resultado de um longo processo de incorporação no qual o movimento revolucionário realiza sua unidade à medida que a percebe, e a percebe à medida que a realiza.

P. S. – Se querem mais uma amostra da hegemonia revolucionária mundial, leiam a notícia publicada em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110718/not_imp746214,0.php. Fala de um filme do cineasta alemão Alexander Kluge, de nove horas de duração, inspirado em O Capital de Karl Marx – uma idéia de Serguei Eisenstein, cineasta oficial de Stalin, que em 1929 os produtores acharam demasiado dispendiosa e irrealizável. Alguém é capaz de imaginar uma chatice de nove horas de duração, mas anticomunista, sendo financiada por verbas bilionárias e lançada, com grande alarde, em todo o mundo? A indústria inteira do show business, como a quase totalidade da indústria cultural, é pura máquina de propaganda revolucionária – dominada por gente que ainda tem o cinismo de se fingir de marginal e discriminada pelos “donos do capital”.

Sujeitinho obstinado

Olavo de Carvalho

22 de julho de 2011

A coisa mais fácil do mundo seria o Sr. Sidney Silveira reconhecer o óbvio e publicar no Contra Impugnantes uma notinha: “De fato, alterei o sentido das palavras do Sr. Olavo de Carvalho e com isso arrisquei trazer dano injusto à sua reputação. Desculpe o vexame. Assunto encerrado.”

Lembro-me de ter cometido pecado similar, não por intenção maliciosa mas por genuína ignorância palpiteira, contra o falecido general Hélio Ibiapina, então vivo e presidente do Clube Militar. Repassei levianamente uma história que ouvira de gente de esquerda, acusando-o de haver torturado o líder comunista Gregório Bezerra. Ele veio falar comigo, provou que eu havia feito caca, e não tive remédio senão pedir desculpas em público, o que não é desonra nenhuma, é aliás o contrário de uma desonra.

Mas o Sr. Silveira tem aquela inflexibilidade do pecador obstinado, que, quando pego de calças na mão, se enrijece de orgulho e, subindo um pouco mais alto na escala da sua santidade imaginária, dispara contra o queixoso uma saraivada de dogmas da fé perfeitamente alheios ao caso e, por isso mesmo, tanto mais impressionantes.

Na platéia de seus leitores – que los hay, los hay –, não faltaram vozes de apoio para secundá-lo, repetindo o truque com fidelidade admirável, contornando meticulosamente o fato concreto e desdobrando-se nas mais lindas considerações doutrinais contra o capitalismo, a liberdade de consciência, a fenomenologia de Husserl, o modernismo teológico e não sei mais quantas coisas das quais me imaginavam o representante e porta-voz oficial.

É como se eu, surpreendido pela empregada de casa em flagrante punheta no sofá da sala, convocasse meus amigos para esmagar a infeliz testemunha sob uma tempestade de citações da Suma Teológica em latim.

É um tanto deprimente ter de lembrar a essa legião de sábios teólogos que os defeitos da vítima, reais ou imaginários, não autorizam ninguém a infringir contra ela o Oitavo Mandamento. Aliás, se cometi tantos erros, se tão rico e variado é o repertório dos meus pecados, para que inventar mais um, acusando-me logo daquilo que não fiz?

Se o Sr. Silveira confessasse ter lançado contra mim uma acusação falsa, recuperaria ao menos um pouco de credibilidade para alegar, em seguida, que as demais acusações eram verdadeiras.

Agindo como agiu, só conseguiu desmoralizar a todas elas de uma vez, emporcalhando-as com a mancha do falso testemunho e poupando-me o trabalho de desmentir uma a uma.

Nova demonstração de sua renitente soberba forneceu-nos ele ao anunciar a premiação de um leitor no Concurso Santo Palavrão, sem mencionar nem por alto o fato de que essa premiação trazia consigo a total desmoralização do próprio concurso enquanto tentativa de humilhar um “filósofo boca-suja”.

Não custava nada o sr. Silveira reconhecer: “É, eu estava errado. Santos dizem palavrões, sim. O filósofo boca-suja não está necessariamente excluído da glória eterna só por ter usado expressões medonhas como S. Francisco e S. Thomas More também usaram.”

Mas não. Ele não pode dar o braço a torcer. Não pode recuar um só milímetro da pose de infalibilidade, ostentada em atos e feitos que as proclamações verbais de humildade não atenuam nem um pouco. Anunciando a premiação sem comentários, dá a entender que ela não significa nada, e sai assobiando com o ar mais inocente do mundo, como se a coisa não fosse com ele.

Até onde irá esse professor de doutrina na sua obstinação insensata de mostrar que na vida real, fora da confortável esfera das citações eruditas, não entende uma só palavra dos mandamentos divinos?

Richmond, 22 de julho de 2011

P. S. – Ao fim de uma eruditíssima nota na qual novamente foge do fato para o reino encantado das discussões doutrinais, o Sr. Carlos Nougué, anunciando desmantelar um “sofisma”, declara: “Se, como alguns querem fazer crer, o tratar os outros por nomes obscenos se justificaria pelo fato de São Thomas Morus tê-lo feito a alguma altura de sua vida, então também o cometer adultério se justificaria pelo fato de Santa Maria Madalena tê-lo cometido a alguma altura de sua vida.” Sofisma, mesmo, é isso. S. Thomas More usou de palavrões numa polêmica contra a rebelião luterana, e não consta que Sta. Maria Madalena cometesse adultério em defesa da Igreja. Nougué, largue de palhaçada teológica e arranje um emprego decente.

Malditos farsantes

Olavo de Carvalho

21 de julho de 2011

“Contra factum non argumentum est.”

A apologia que o Sr. Nougué faz da sua própria condição de “repetidor” (http://spessantotomas.blogspot.com/2011/07/avisos-e-o-tomismo-e-doutrina-comum-da.html) é mais uma tentativa patética de escapar dos fatos e buscar abrigo em generalidades. No campo das discussões doutrinais, é claro que o filósofo católico deve ater-se, o melhor que possa, ao ensinamento da Igreja. Mas pretender que alguma questão de realidade factual possa ser resolvida mediante o mero apelo à doutrina e sem exame direto dos próprios fatos é prostituir a doutrina, transformando-a em instrumento de vigarice intelectual e autopromoção. É esta, precisamente, a profissão dos srs. Silveira e Nougué. Daí a pressa com que, antes sequer de ter aprendido o mandamento elementar de abster-se do pecado de falso testemunho, saem usando a doutrina como arma para afastar do caminho os mais capazes e honestos.

Digam com toda a sinceridade: insinuar que com o termo “neotomismo” eu estivesse me referindo pejorativamente a filósofos anteriores de séculos à eclosão desse movimento é ou não é falsificar o sentido das minhas palavras? E fazer isso é ou não é falso testemunho? E o falso testemunho não se torna ainda mais grave se praticado com o intuito declarado de fazer da vítima um personagem suspeito aos olhos da Igreja? E é possível acreditar que o cometessem por mera inadvertência, inocentemente, confundindo tomismo e neotomismo no mesmo instante em que se pavoneavam de supremos conhecedores da matéria?

Essa é a questão de fato que motivou toda esta troca de mensagens. Os Srs. Nougué e Silveira falam, falam, falam, sempre com a boca cheia de doutrina, mas não tocam jamais nesse ponto inicial e central. Tudo o que fazem é desconversar, usando a doutrina como disfarce para acobertar sua conduta pública abominável, nojenta, criminosa no sentido mais estrito e mais técnico da palavra “crime”.

Por isso, rejeito categoricamente a sugestão de que em vez de denunciar esses vigaristas eu devesse “juntar forças” com eles. Ainda que eles pratiquem com relação a mim a mais descarada concorrência desleal, o fato é que não estamos no mesmo ramo de negócios. Posso ter cometido todos os pecados que desejem me atribuir, mas nunca pratiquei crime algum nem muito menos usei a doutrina da Igreja como instrumento para isso. Sou um pecador, mas não um fariseu hipócrita.

Jesus Cristo andava com bêbados e prostitutas, mas nunca se associou com gente do tipo de Nougués e Silveiras, homens de língua dupla, mentirosos, perversos e farsantes.

À tentação de uma “unidade” oportunística forjada na mentira e no engodo é preciso responder com toda a firmeza: Vade retro.

***

Dito o essencial, passo agora a algumas observações sobre a nota anterior do Sr. Nougué, que me acusava de ter fugido à sua proposta de debate.

Todo debate que se pretenda ao menos um pouco honesto é, por definição, precedido de discussões e negociações quanto a seus termos e regras. Ao receber o convite do Sr. Carlos Nougué, iniciei imediatamente essas discussões, questionando os termos das questões propostas e sugerindo modificações. Para adiantar o expediente, resumi até algumas das idéias que pretendia apresentar no debate, pedindo ao Sr. Nougué que dissesse se as admitia ou rejeitava, suprindo pois a deficiência da sua proposta inicial que não deixava claro nenhum ponto de discordância substantiva capaz de fornecer matéria a um debate.

Que é que ele me respondeu? “Não vou responder ao Olavo de Carvalho.” E após assim fechar-se em copas, como uma melindrosa ofendida, ainda teve o cinismo, ou talvez demência genuína, de proclamar que quem fugiu ao debate fui eu, não ele. Quando um dos debatedores se recusa a discutir os termos e regras do debate, torna automaticamente inviável o próprio debate. Se depois disso ele ainda reclama que o debate não aconteceu, com toda a evidência algo de estranho se passa na sua cabeça.

Várias hipóteses podem explicar essa atitude marcadamente teatral e louca.

Talvez ele não saiba realmente o que é um debate, ignorando portanto a necessidade de uma discussão prévia dos termos e regras. Neste caso, não deveria desafiar ninguém para jogar um jogo que ele próprio desconhece.

Talvez não lhe haja ocorrido que seu antagonista possa ter, pelo menos tanto quanto ele, o direito de discutir as regras do jogo antes de entrar em campo.

É possível, também, que na sua absoluta segurança de si como repetidor do magistério infalível, nem lhe tenha passado pela cachola a hipótese hedionda, herética, pecaminosa, satânica, de que sua proposta inicial pudesse conter alguma falha ou imprecisão digna de ser corrigida. Mas qualquer leitor alfabetizado compreende de imediato que o título “As relações entre razão e fé e entre filosofia e teologia em Santo Tomás de Aquino” enuncia apenas um assunto geral, não a contraposição entre duas opiniões possíveis.[1] Isso não é título de debate, mas de tese acadêmica, se tanto. O enunciado do segundo tema era pior ainda: “Deve um teólogo-filósofo católico invocar o magistério da Igreja?” A pergunta que tem resposta óbvia, imediata, inequívoca e universalmente aceita não pode, por definição, ser matéria de debate. Essa resposta já foi dada pelo próprio Sto. Tomás, com pachorra admirável, e nunca existiu no mundo um teólogo ou filósofo católico que a contestasse. Não se pode montar um debate em torno da pergunta “Quantos lados tem um quadrado?” Não entendendo que raio de coisa o meu desafiante pretendia discutir sob esse tópico, tomei-lhe satisfações, pedindo que modificasse o tema ou explicasse que mistérios se agitavam na obscuridade do seu cérebro quando me desafiou para discutir o óbvio. A terceira questão, admiti, podia ser objeto de debate, contanto que o desafiante esclarecesse se pretendia se referir à democracia liberal como modelo teórico ou como realidade histórica existente, que não é cópia do modelo.

Que é que ele me respondeu? “Não vou responder ao Olavo de Carvalho.

Ora, esclarecer aqueles três pontos era condição sine qua non para que o debate pudesse travar-se com alguma seriedade. Fugir deles era fazer da coisa uma palhaçada, um jogo de vaidades, um espetáculo de puro exibicionismo no qual dois patetas dariam o melhor de si para mostrar ao público “qual deles entende mais de Sto. Tomás de Aquino”.

Diante disso, só o que me resta é apelar ao precedente de Emílio de Menezes, que, segundo dizem, tapeado num concurso de versos promovido por uma tal “Loja das Fazendas Pretas”, puxou no balcão do malfadado estabelecimento o rolo de papel de embrulho e improvisou a quadrinha:

Se o concurso era de tretas,
Por que não me advertiu?
Vá vender fazendas pretas
É na puta que o pariu.

Se tudo o que o Sr. Nougué queria era mostrar que leu mais Sto. Tomás do que este pobre otário, eu não teria a menor objeção em conceder-lhe esse galardão a priori e sem discussões, não porque saiba se ele realmente leu mais ou leu menos, mas porque ele precisa disso desesperadamente e é coisa que, para mim, não custa nada e não faz a mais mínima diferença.

Embora tenha dedicado bons anos de minha vida ao estudo de alguns grandes autores do passado, não me considero um “especialista” em nenhum deles. Acho até engraçada essa peculiar invenção brasileira: o filósofo especialista em outro filósofo. Diversamente do que cabe ao mero estudioso, erudito, professor, pesquisador ou coisa que o valha, a obrigação do filósofo é desenvolver a sua própria filosofia, não a dos outros, por ilustres e grandes que sejam. Ele pode, como aliás todos fazem, utilizar-se de elementos que aprendeu deles, mas integrando-os na estrutura do seu próprio pensamento e dando-lhes por isso, necessariamente, um sentido um tanto diverso do que tinham nos textos originais. Não há nenhuma infidelidade nisso, é apenas a obra da inteligência que vai em frente, descobrindo novas dificuldades e soluções, sem poder ater-se servilmente à letra do que foi ensinado no passado. O próprio Sto. Tomás de Aquino desvia-se da letra do ensinamento de Aristóteles e às vezes é um mau explicador do seu mestre justamente nos momentos em que sua própria filosofia alcança dimensões que Aristóteles desconhecera. Pode-se duvidar da exatidão histórica do Nietzsche de Heidegger, e eu mesmo duvido; mas nem por isso o livro deixa de ser uma admirável exposição do pensamento de Heidegger.

Uma certa erudição histórica é necessária ao filósofo, mas não é a finalidade dos seus esforços nem o critério pelo qual sua obra deve ser julgada. Um filósofo não estuda “autores” e “textos”, estuda problemas, estuda a realidade, estuda a existência e seus enigmas, servindo-se – às vezes, mas não sempre – de autores e textos como elementos auxiliares de uma pesquisa onde eles não são nem o assunto nem o foco.

Daí não ter cabimento um filósofo ceder à tentação vaidosa e fútil de uma competição de cultura filosófica, especialmente quando desprovida de qualquer outra finalidade senão mostrar “quem sabe mais”.

Não digo isso só dos filósofos. Nenhum erudito sério jamais propôs uma brincadeira estúpida como essa. O simples fato de desejar esse espetáculo já desqualifica o Sr. Nougué para qualquer empreendimento intelectual responsável, para além do estrito domínio especializado em que ele demonstrou qualidades modestas, porém reais: o ensino de línguas e as traduções.

Ademais, mesmo a esperança vaga de que eu pudesse, em tal confronto, aprender algo sobre a filosofia de Sto. Tomás de Aquino é desmentida pela própria carreira do Sr. Nougué como investigador histórico de doutrinas filosóficas. Não há nenhum trabalho de erudição publicado sob o seu nome. Não se conhece sequer um só estudo seu, em livro ou revista acadêmica, sobre o próprio Sto. Tomás. Se ele pretende que eu o aceite como professor de tomismo, deveria pelo menos dar-me uma razão mais sólida para acreditar nisso do que a mera promessa de dar cabo de mim num debate. É um caso inédito nos anais da erudição universal: um pretenso investigador sem nenhum currículo de estudos publicados tenta exibir força, logo de cara, mediante um “debate” – e, pior ainda, um debate que, por falta de objeto, se esgota em si mesmo como puro espetáculo para o deleite de torcedores.

O que torna a proposta ainda mais desengonçada e vã é o fato mesmo de que o sujeito, ao se proclamar o bam-bam-bam do tomismo, seja incapaz de formular uma só disjuntiva que expresse antagonismos de interpretação a respeito, fornecendo, em vez disso, três nomes de temas gerais onde em dois não se vê antagonismo algum e no terceiro só o que se vê é um arremedo de antagonismo entre o que ele pensa e o que ele desejaria imaginar que eu penso, mas na verdade nunca pensei. Ao dar a esses três monstrengos o nome de quaestiones disputatae, ele só mostrou não saber o sentido deste termo, isto é, não ter compreendido nem sequer o gênero e o título de algumas das obras que ele se gaba de conhecer como ninguém.

No entanto, se ele faz tanta questão de ostentar a superioridade de seus conhecimentos tomísticos, não custa nada afagar um pouco o seu ego, tão necessitado de reforços. Está bem, Nougué, você é o dono do pedaço, o gostosão do tomismo. Está contente agora? Se você insiste, digo também que você é bonitinho. Nada como fazer uma criança feliz.

Ao conceder essa honraria ao Sr. Nougué, confesso que o faço um tanto irresponsavelmente, pois não conheço as suas obras, as quais inexistem, e devo julgá-lo só por alguns fragmentos ígneos e barulhentos emanados da sua – digamos – cabeça. Para ser sincero, suspeito mesmo que ele não compreendeu uma só linha de Sto. Tomás, porque, ao lê-lo como como a voz direta e pura da verdade final, dispensando-se de confrontar suas palavras com os fatos e até alegando a autoridade do magistério como desculpa para não falar dos fatos, ele vai diretamente contra o ensinamento do próprio Sto. Tomás, para o qual a única autoridade final, em tudo quanto não seja estrita matéria de fé, são os fatos.[2] Ora, a inteligência humana não tem nenhuma via para conferir a adequação entre um pensamento e um fato senão tentar pensar o fato de maneira diversa, dialeticamente, até que a confrontação das várias hipóteses culmine na vitória de uma delas, se não como certeza absoluta, ao menos como campeã de probabilidade. O próprio Sto. Tomás não só adotou esse método como fez dele a matriz literária para a composição das suas Sumas, não havendo, no meu modesto entender, outra maneira de compreender o que ele diz senão prosseguindo o seu trabalho de confrontação dialética à luz dos novos fatos descobertos depois da sua morte. Por exemplo, até hoje ninguém sabe ao certo se Tomás afirmava ou negava a Imaculada Concepção de Maria. Como reler os trechos que ele consagra ao assunto sem levar em conta que a Imaculada Concepção foi proclamada como dogma da Igreja em 1854, seis séculos após a morte do santo? Reexaminando os textos à luz desse dado, os estudiosos modernos concluíram que Tomás não era tão contrário a essa doutrina quanto de início parecera. A discussão continua, e não há nada de mau nisso, de vez que o próprio Tomás proclamara veritas filia temporis, “a verdade é filha do tempo”.

Em suma, Tomás não pede que aceitemos suas palavras, mas que as ponhamos em discussão até tirar, se possível, as últimas dúvidas. É obviamente impossível fazer isso se queremos aprisionar a conversa no puro domínio doutrinal, sem apelo aos fatos. A insistência do Sr. Nougué em pular fora dos fatos mostra que ele não quer compreender o ensinamento de Tomás. Quer apenas “repeti-lo”, como ele próprio diz – e, se lhe perguntamos como pode chegar a compreender um texto pela sua simples repetição, sem confrontação dialética, já conhecemos sua resposta: “Não vou responder ao Olavo de Carvalho”.

Diante de tão persistente, fiel e intransigente opção pela ignorância, não me resta senão concordar, sem discussões, com o que quer que ele diga, e sobretudo com o que ele pensa de si mesmo, fechado na sua casamata de ilusões inexpugnáveis. Digo, pois: Sim, Nougué, você é máximo expositor de Sto. Tomás em terras pátrias, o supremo, o nec plus ultra, o fodão do tomismo. Pelo menos na sua casa, não há ninguém que entenda do assunto mais que você.

Também não estou informadíssimo sobre os mistérios e segredos do pensamento de seu irmão em armas, o Sr. Sidney Silveira, mas, confesso, o pouco que conheço a respeito não é de natureza a estimular minha curiosidade quanto ao restante.

Por exemplo (v. www.youtube.com/watch?v=jKpFE1b8v98), ao contestar que possamos conhecer a essência de um objeto por intuição, ele proclama que nada sabemos ao certo “antes” que o intelecto intervenha e classifique o que foi apreendido pelos sentidos. Com isso ele dá um sentido de seqüência temporal ao que é, com toda a evidência, apenas a hierarquia lógica interna de um ato de cognição instantânea. É óbvio que os sentidos não nos dão, por si, a essência de nada. Apreender essências é tarefa do intelecto. Mas isso não quer dizer que, entre a captação pelos sentidos e a entrada do intelecto em cena decorra um intervalo de tempo, muito menos uma separação material, e não apenas formal, entre ver um gato e perceber que é um gato. O ato de reconhecimento instantâneo pelo qual o intelecto apreende um gato naquilo que os sentidos lhe apresentam como gato é precisamente o que se denomina “intuição”, ou, melhor ainda, “intelecção”.

Prova suplementar da sua fulgurante inépcia ele nos dava em seguida, ao fornecer, como exemplo da impossibilidade da apreensão intuitiva de essências, o fato de que se alguém, em segredo, depositasse veneno no seu copo, ele não teria a apreensão intuitiva do copo envenenado.

Raramente vi um professor de filosofia, mesmo de ginásio, descer tão baixo. De um lado, ninguém pode ter a intuição de algo que não chegou ao seu conhecimento nem pelos sentidos nem por qualquer outra via de informação. Se o Sr. Silveira não tem a intuição do que se passou, não é por deficiência da faculdade intuitiva, mas por ausência do objeto. Qualquer criança de cinco anos entende isso num relance, mas na platéia do Sr. Silveira não havia, aparentemente, ninguém com a experiência e a erudição de uma criança de cinco anos, e por isso ninguém o contestou. Todos continuaram ouvindo a patacoada em respeitoso silêncio. Un sot a toujours un plus sot qui l’admire.

Em segundo lugar, conter ou não conter veneno não faz parte da essência de nenhum copo. É um acidente. A intuição reconhece imediatamente um copo como copo, mas não distingue necessariamente a substância que o preenche, pelo simples fato de que diferentes líquidos não se distinguem tão claramente uns dos outros pela sua simples forma visível como objetos sólidos de espécies diversas, diferente nestes e semelhante naqueles. A objeção do Sr. Silveira à eficácia da faculdade intuitiva consiste apenas em alegar que ela não percebe no mesmo instante todos os acidentes – o que é o mesmo que não dizer absolutamente nada.

Em terceiro lugar, um veneno depositado num copo com fins homicidas é, por definição, uma substância sem aparência distintiva que permita identificá-lo como tal. O Sr. Silveira acredita que não tem intuição das essências… porque não enxerga o invisível. Com toda a evidência, o que lhe falta não é a apreensão intuitiva das essências, mas aquele mínimo de capacidade raciocinante que ele precisaria ter para ser um mecânico de automóveis ou um caixa de banco, motivo pelo qual ele preferiu escolher a profissão de porta-voz do magistério infalível.

E pensar que mediante essas tosquices ele queria demolir em minutos nada menos que a obra de Edmund Husserl! Bem, há o rato que ruge e o rato que peida. Qualquer semelhança é mera coincidência.

Por que desejaria eu conferir o estatuto de “adversário filosófico” meu a um sujeito tão obviamente despreparado e inerme? Se à burrice e ao despreparo ele soma ainda a língua dupla e o hábito das insinuações veladas, pretendendo subir na vida na base da difamação e da intriga, que outro confronto posso ter com ele senão de ordem jurídico-policial?

Talvez eu devesse lhe dar uns tapas, mas ele diz que não pode entrar em pugilato comigo por ser vinte anos mais novo. Nisso, ele tem toda a razão: nada mais sábio que fugir ao vexame de apanhar de um velho.

Quanto ao Sr. Nougué, não lhe recusei, em princípio, nenhum debate. Apenas mostrei que, nos termos propostos, o debate era impossível, inútil e supremamente idiota. O Sr. Nougué poderia ter mostrado alguma seriedade de intenções, melhorando a proposta e refazendo o convite. Em vez disso, preferiu, como é de seu hábito, a ostentação teatral de uma superioridade inexistente.

Richmond, 21 de julho de 2011

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Notas:

[1] Só para dar um exemplo, o título do meu debate com o prof. Alexandre Duguin, “Os EUA e a Nova Ordem Mundial” já deixa subentendida nitidamente a pergunta “Os EUA são o centro de poder da Nova Ordem Mundial?” e duas respostas possíveis: “Sim” (Alexandre Duguin) e “Não” (Olavo de Carvalho). É assim que se formula um debate.

[2] E notem que a noção de fé se resume, em última análise, na confiabilidade do testemunho, e o testemunho se refere a fatos. Dirá o fiel católico que o nascimento virginal e a ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo são doutrinas, não fatos? Dirá que o Juízo Final há de transcorrer como uma seqüência de silogismos, não de fatos?

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