Yearly archive for 2011

Escravos por natureza

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de agosto de 2011

Um dos trechos mais odiados e vilipendiados da literatura filosófica é aquele parágrafo da Política no qual Aristóteles afirma, sem pestanejar, que alguns homens são escravos por natureza: ainda que você os liberte e os cubra de direitos civis, pouco a pouco voltarão à condição escrava, pois nasceram com espírito servil e nada poderá curá-los.

O que já se escreveu contra isso daria para lotar bibliotecas inteiras. Alguns vêem naquela afirmativa um sinal do autoritarismo congênito da tradição aristotélico-escolástica, que em boa hora Bacon e Descartes exorcizaram, abrindo as portas para a era da democracia e da liberdade. José Guilherme Merquior chega a celebrar essa mudança como um fato de dimensões antropológicas, no qual os seres humanos teriam passado de uma existência determinada pelo fatalismo irrecorrível aos bons tempos do “destino livremente escolhido” (comentarei um dia esse argumento, que me parece completamente maluco). Até os admiradores mais devotos de Aristóteles tentam atenuar as culpas do trecho vexaminoso, atribuindo-o a preconceitos de época pelos quais o filósofo não deve ser responsabilizado pessoalmente.

No entanto, cada vez mais a asserção de Aristóteles vai me parecendo uma verdade incontestável.

Comecei a pensar nisso quando, ao ler o resumo biográfico de Michel Foucault por Roger Kimball (http://uwacadweb.uwyo.edu/Ashleywy/foucault.htm), me ocorreu a pergunta fatal: Se ninguém é escravo por natureza, por que raios existem clubes de sadomasoquismo? O sujeito está bem de vida, é respeitado e paparicado, tem sua liberdade e uma boa renda anual asseguradas pelo Estado paternal, mas de vez em quando volta as costas a tudo isso e desembolsa uma quantia considerável para ser chicoteado, esbofeteado e humilhado por garotões musculosos vestidos com roupas de tiras de couro semelhantes em tudo às dos soldados romanos. Mais que a nostalgie de la boue, é a saudade da escravidão.

Estamos tão acostumados à idéia da condição escrava como um destino imposto de fora, que interpretamos a afirmativa de Aristóteles às avessas, entendendo-a no sentido moderno de um determinismo exterior, e a rejeitamos precisamente por isso. Mas a natureza de um ente, para o filósofo do Liceu, era o que havia nele de mais íntimo, encontrando sua expressão imediata e espontânea no desejo. Nada mais inevitável, portanto, que, numa sociedade da qual a escravatura desapareceu como instituição e onde todo desejo explícito de submissão é estigmatizado como baixeza indigna, o instinto escravo só subsista como fantasia sexual, provando por meios obscenos a existência daquilo que o senso das conveniências nega.

Mas há outra expressão desse instinto, mais visível e por isso mesmo ainda mais necessitada de camuflagem. As hordas de arruaceiros que hoje espalham o caos pelas ruas de Londres, como fizeram em Paris em 1968, em Oslo em 2009 e em dezenas de outras capitais do Ocidente em datas diversas, constituem-se daqueles indivíduos que, invariavelmente, prezam e enaltecem os governos mais tirânicos do mundo. Em Cuba, no Irã, no Zimbábue, no Sudão ou na China, aceitariam docilmente o trabalho escravo e, nas grandes festividades cívicas, cantariam louvores ao regime. Seriam modelos de conduta disciplinada. Soltos numa democracia moderna, tornam-se rancorosos e anti-sociais, desprezam a ordem constitucional que os protege, e, inflados de arrogância sem fim, saem derrubando e queimando tudo o que encontram em torno.

Que é isso? Mentalidade escrava. Inaptos para viver em liberdade, respeitam somente o chicote, que obedecem quando está perto e celebram em prosa e verso quando está longe.

Se há um instinto da escravidão, é lógico que ele determina somente condutas gerais e não a busca de uma posição social determinada. As formas da inferioridade variam nas diferentes estruturas sociais, mas um mero instinto não pode escolher as vias específicas pelas quais vai se expressar conforme as circunstâncias variadas de momento e lugar. O mesmo impulso que leva à submissão num país induz à revolta em outro. É por isso que há mais rebeldes nas nações livres e prósperas do que nos países mais miseráveis, governados pelos tiranos mais sangrentos. Miséria e opressão raramente produzem rebeliões. Uma ascensão social parcial, suficiente para prover o indispensável mas não para aplacar todas as ambições e todas as invejas – eis a fórmula infalível para a fabricação de uma massa de fracassados odientos. Mas, por definição, é impossível satisfazer a todas as ambições, que mudam de conteúdo conforme o progresso gera novas formas de riqueza e, com elas, novos motivos de frustração e inveja. Por isso, o crescimento da previdência social não produz nunca um ambiente de gratidão e paz: produz ódio, inveja e rancor em doses centuplicadas. O simples fato de receber assistência estatal faz o sujeito espumar de ódio a quem não precise dela. Na mentalidade escrava, essa reação é praticamente incoercível. O indivíduo que, na sua miserável nação de origem, pedia esmolas de cabeça baixa, é o mesmo que, transplantado a um ambiente de liberdade, democracia e assistencialismo estatal, recebe como um chamamento dos céus a convocação dos demagogos para um bom quebra-quebra em nome da “justiça social”.

Quando você ler num filósofo antigo alguma afirmação que choque as convenções modernas que você toma como verdades inabaláveis, refreie a pressa de explicá-la, com um reconfortante sentimento de superioridade, pelos preconceitos de uma época extinta. Verifique se não é você quem está projetando sobre ela uma interpretação anacrônica, colocando na boca do filósofo uma bobagem de sua própria invenção.

Copiando os russos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de agosto de 2011

No extraordinário relato que publicou sob o título Darkness at Dawn. The Rise of the Russian Criminal State (Yale: Universty Press, 2003), David Satter, ex-correspondente do Wall Street Jounal em Moscou, conta que o novo regime russo subseqüente à queda da URSS já nasceu criminoso porque a comissão de privatizações, no governo Yeltsin, não ligava a mínima para saber de onde vinha o dinheiro com que as empresas estatais eram compradas às pencas em leilões bilionários. Em geral vinha do próprio governo, pelas mãos de funcionários ladrões. Ou vinha do narcotráfico. Ninguém nem perguntava. Só o que queriam era privatizar tudo o mais rápido possível, para criar do nada uma classe capitalista sem lei, nem ordem, nem moralidade. Nem mesmo combater as quadrilhas criminosas lhes parecia necessário: afinal, elas faziam dinheiro, que era tudo o que importava.

Somada à súbita liberação geral dos preços, essa política, perto da qual o assalto estatal à nação e à Igreja na Revolução Francesa de 1789 fica parecendo uma rifa em colégio de freiras, não demorou a produzir os resultados logicamente previsíveis: em poucos meses, 99 por cento das poupanças tinham desaparecido, deixando o povo à míngua, enquanto no topo da sociedade uma nova casta de barões ladrões abria caminho mediante expedientes singelos como explodir as casas dos seus concorrentes ou abater a tiros os funcionários do Estado que não se rendessem à sedução das propinas, àquela altura tidas como instrumentos normais de negociação.

Se perguntamos por que os responsáveis pelas privatizações russas optaram por uma estratégia tão obviamente suicida, a resposta é simples e vem da boca dos próprios personagens, com uma candura admirável: eram todos homens de formação marxista, não só acostumados a um ambiente de crueldade incomum, mas persuadidos de que a “acumulação primitiva do capital” só é possível através do roubo, do saque, da desumanidade e da violência descontrolada. Para eles, o que estava acontecendo na Rússia era simplesmente natural, inevitável, imune a todo julgamento humano.

Ao abdicar do comunismo, adotaram o capitalismo tal como o comunismo o concebia. Simplesmente passaram a achar bom o que antes achavam ruim, sem modificar no mais mínimo que fosse a imagem que faziam dele até então.

Essa imagem é obviamente falsa. O próprio Karl Marx sabia disso quando a inventou como engodo proposital, falsificando os dados estatísticos do Parlamento britânico (os famosos Blue Books) para dar a impressão de que o capitalismo era filho do banditismo, quando a verdade era exatamente o contrário: um capitalismo selvagem primitivo, incipiente, só veio a ganhar força e vigor quando o ambiente social e psicológico foi saneado pelo império da lei e da ordem, incluída aí a influência da fé religiosa. Se a noção marxista já era falsa com relação ä Inglaterra, que Marx tomara como modelo universal, mais absurda ainda ela se revelava no confronto com o exemplo americano, onde um sistema de leis e instituições humanitárias, fortemente impregnado de moral cristã, antecedera de décadas o florescimento capitalista que aí viria a brotar com energia mais pujante do que em qualquer outro país.

Logo no começo de “O Capital”, Karl Marx avisa que seu modelo de capitalismo não se baseia na sondagem dos fatos históricos, mas na “força da abstração”. Ele despe o capitalismo de todos os elementos sociais, culturais, psicológicos, éticos e religiosos que o prepararam, e o descreve como simples esquema econômico descarnado, fundado na exploração de algo que ele chama a “mais-valia”. Com a ambigüidade característica dos pensadores revolucionários, porém, ele se esquece da advertência que acabou de fazer e logo passa a tratar esse capitalismo abstrato como se fosse realidade histórica concreta. O dano que com isso ele trouxe à economia mundial foi duplo: primeiro, o fiasco monumental da economia soviética; depois, o descalabro do capitalismo criminal russo.

Mas houve um terceiro dano, mais sutil e de conseqüências incalculáveis: ele inoculou o abstratismo econômico na mente de seus adversários, levando-os a apoiar entusiasticamente o desatino das privatizações soviéticas e a acreditar, com maior insanidade ainda, que a introdução da economia de mercado na China traria consigo a liberalização do regime político.

É uma trágica ironia que a crença cega no primado da economia como motor da História tenha se impregnado tão profundamente nas almas daqueles que mais deveriam contestá-la. Tal como os privatizadores russos, muitos “formadores de opinião” ocidentais em matéria de política e economia amam o capitalismo, mas pensam como marxistas. É como achar que entre os encantos peculiares de uma bela mulher se encontra o fato de a referida sofrer de AIDS.

Uma coisa que sempre me impressionou entre os liberais é a paixão com que aderem à escola austríaca de economia, tratando-a como um conjunto de fórmulas gerais abstratas, transportáveis às mais diferentes situações, sem jamais mostrar o mínimo interesse pelas condições culturais muito peculiares que na Viena do começo do século XX permitiram e fomentaram a emergência dessa escola. Esse desinteresse, mais pronunciado entre os economistas brasileiros que entre os de qualquer outra nacionalidade, é tanto mais imperdoável porque aquele período da história cultural austríaca foi um dos mais vigorosos e criativos de todos os tempos, e não se pode imaginar um surto de genialidade eclodindo entre meia dúzia de economistas sem ter nada a ver com o que se passava em torno. A Viena daquela época era um ambiente de intercâmbio intelectual intenso, propiciando a fecundação mútua entre os mais diversos campos da atividade intelectual e artística. A economia de Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek não é uma “coisa em si”, brilhando isolada no céu das ideias puras: é o fruto de uma atmosfera intelectual de intenso diálogo entre todas as disciplinas das artes e das ciências, atmosfera que, por sua vez, não se pode compreender sem a referência ao quadro político do Império Austro-Húngaro. Ironicamente, duas das fontes mais valiosas para o estudo desse período têm traduções brasileiras. “O Mundo que Eu Vi”, memórias de Stefan Zweig, e dezenas de estudos sobre obras e idéias austríacas ao longo dos “Ensaios Reunidos” de Otto Maria Carpeaux foram bastante lidos no Brasil nos anos 50 e 60. Hoje estão completamente esquecidos, e a simples sugestão de que um economista as leia deve soar como apelo a um diletantismo indigno de profissionais sérios. “The Austrian Mind: an Intellectual and Social History, 1848-1938”, de William M. Johnston (University of California Press, 1972) dará aos interessados uma visão da prodigiosa riqueza intelectual e humana de onde brotaram as intuições econômicas não só de von Mises e Hayek, mas também de Joseph Schumpeter, Carl Menger e tantos outros. Não há desculpa para a ignorância satisfeita dos economistas liberais que acreditam poder compreender a escola austríaca sem saber de onde ela saiu. Essa atitude reflete uma obsessão dinheirista que, por sua vez, tem sua origem remota no íncubo marxista que há décadas se apossou da mente antimarxista. Os que hoje pontificam sobre a economia brasileira desde um ponto de vista liberal sem levar na mais mínima conta os fatores intelectuais, culturais, psicológicos éticos e religiosos do destino econômico das nações são privatizadores russos mal disfarçados.

Desconversador incansável

Olavo de Carvalho

15 de agosto de 2011


1. Preliminares

Nos anais da safadeza universal, o Sr. Sidney Silveira ocupa um lugar modesto, mas especialíssimo pela originalidade: é o primeiro sujeito que tenta escapar de uma acusação de crime mediante a alegação de ser mais erudito em matéria filosófico-teológica do que o denunciante. Cada vez que o acuso de ter falsificado propositadamente o sentido de um texto meu para me indispor com a Igreja Católica, lá vem ele novamente dizendo que quem entende de Sto. Tomás Aquino é ele, que minhas idéias filosóficas estão erradas nisto ou naquilo, que não existe conhecimento intuitivo das essências ou que Edmund Husserl era herético. Após alguns parágrafos, o assunto inicial – o crime – desapareceu por completo: a imputação criminal tornou-se debate filosófico, elevando o criminoso à condição honrosa de adversário intelectual da vítima e deixando a investigação dos fatos para o dia de são nunca.

Se o apelo à tática da desconversa já é por si uma prova circunstancial do crime, na técnica lógica o artifício aí usado se chama “troca de gênero” (metábasis eis allo guénos): você cobra uma dívida, o devedor lhe responde com uma receita de cataplasma infalível, e você, trouxa, ainda anota a receita e sai dali todo satisfeito, sem um tostão no bolso.

A mudança de gênero já se tornou, na pessoa do Sr. Silveira, uma espécie de segunda natureza. Ele a pratica com a espontaneidade de quem respira, a propósito de tudo e qualquer coisa, sem nem reparar no que faz. Por exemplo: protestando contra a minha recusa de um debate nos termos propostos pelo Sr. Carlos Nougué, ele denuncia que apelei ao argumentum auctoritatis ao invocar a penúria absoluta de realizações do desafiante no campo da filosofia tomista em que ele se proclamava uma autoridade inigualável. Mencionar a falta de autoridade do contendor pode ser descabido quando usado como argumento contra uma afirmação filosófica, no curso de um debate. No instante em que o convite é formulado, porém, o debate ainda não começou, nenhuma afirmação filosófica foi feita, e o único critério para aceitar ou rejeitar o desafio é o que se sabe da pessoa do desafiante. Se tudo o que este tem a mostrar são suas realizações futuras, é prudente guardar distância dele para escapar ao risco de uma formidável perda de tempo, principalmente se na própria formulação da proposta o cidadão já provou sua absoluta incapacidade de definir o assunto a ser discutido. Não há na recusa argumento filosófico nenhum, seja o de autoridade ou qualquer outro, há apenas uma escolha prática baseada na prudência. O Sr. Silveira toma essa escolha como se já fosse uma afirmação feita no curso do debate, e a classifica na tipologia dos argumentos filosóficos. Que é isso? Percepção errada, metábasis eis allo guénos.

Toda atividade intelectual pressupõe, além dos estudos gerais e especiais necessários ao conhecimento da matéria, a percepção correta da situação real onde a atividade se desenvolve. Fora disso, você entra, como diria o falecido Stanislaw Ponte Preta, no perigoso campo da galhofa. Certa vez o filósofo romeno Petre Tutsea foi surpreendido a explicar, por mero divertimento, a diferença entre as fenomenologias de Heidegger e Husserl a um grupo de presidiários que não entendiam uma única palavra do que ele estava dizendo. Perguntado por que se entregava a atividade tão extravagante, ele respondeu: “Bem, algum dia alguém precisava esclarecer essa diferença, não precisava?” O que Tutsea fez em blague o sr. Silveira faz perfeitamente a sério, confundindo o convite para um debate com o próprio debate.

No meio cultural subdesenvolvido, o maior risco que você corre não é o de permanecer inculto. Isso você pode superar mediante o estudo. O maior risco é o da alienação, o de viver num mundo de idéias gerais que não têm nada a ver com a sua existência concreta. Num estudo muito interessante publicado décadas atrás, o crítico marxista Roberto Schwarz observou que os líderes do movimento pela independência do Brasil, todos eles senhores de terras, apelaram a slogans ideológicos copiados da Revolução Francesa, sem nem perceber que argumentavam contra seus próprios interesses. Era a aristocracia feudal falando como se fosse a burguesia revolucionária. Ele chamou a isso “idéias fora do lugar”. É a marca da cultura subdesenvolvida, que vive de macaquear o que não compreende, ou melhor, aquilo que pode até compreender em termos genéricos, mas cuja função na existência lhe escapa. Mutatis mutandis, é como no caso daquela família de pobres retirantes que ganhou um apartamento de uma instituição de caridade e, jamais tendo visto antes uma privada, a usou como vaso de flores.

Na cultura subdesenvolvida, a metábasis eis allo guénos é doença endêmica. Cada um tenta dizer as coisas mais eruditas, mais brilhantes, que não têm nada a ver com a situação. Não é uma falta de cultura, é um erro estrutural de percepção nascido de uma falta de autenticidade vital, de uma carência de substância humana por baixo das construções ideais do pensamento.

Desde o início da minha vida de estudos notei que isso era, para os nascidos no Brasil, um handicap mais sério que a incultura ou a fraqueza natural da inteligência. Vacinei-me contra isso adotando o conselho, que li em Ortega y Gasset e Julián Marías, de filosofar sempre desde a circunstância concreta a mais imediata, não desde problemas e temas gerais do repertório filosófico, consagrados nos programas escolares. Se a circunstância imediata fosse mesquinha e desprezível, avessa e hostil aos meus belos ideais e sonhos, criminosa mesmo, isso tornava ainda mais claro o meu dever de homem de estudos: tentar descobrir como o ser humano, feito para ser imagem e semelhança de Deus, conseguira baixar tanto. Em vez de buscar refúgio da estupidez ambiente saltando direto para o céu das idéias puras, era preciso descobrir o caminho que levava de uma coisa à outra (e desta para aquela). No curso dessa atividade, a miséria mesma da situação se iluminava, mostrava sua razão de ser como capítulo da epopéia humana rumo ao seu destino eterno.

Não é coincidência que o mais ambicioso dos meus livros publicados tome como ponto de partida, não grandes idéias ou questões sublimes, e sim um episódio particularmente deprimente de imbecilidade letrada, típico da miséria intelectual brasileira, subindo daí, passo a passo, para chegar às especulações de filosofia da História que são a verdadeira matéria do livro.

Por isso é que não me impressionam os protestos gentis de tantos leitores e amigos, segundo os quais eu deveria prestar menos atenção à estupidez ambiente e em vez disso brindá-los com altas lições sobre os temas clássicos da filosofia. Os temas clássicos da filosofia tornam-se apenas fetiches hipnóticos e ocasiões de alienação se não chegamos a eles desde uma aguda consciência da situação imediata e se os usamos como anestésicos no afã de libertar-nos da mesquinharia sufocante que reina em torno.

Se a mesquinharia sufocante é a nossa situação, ela é a nossa realidade, é o lugar do universo onde estamos, e é desde onde podemos nos alçar à visão de mundos sublimes, com a condição de que levemos conosco, resgatando-o, tudo aquilo que nos oprimia e nos humilhava.

Tal como o homem que enriqueceu não deve esquecer seus dias de pobreza, para não se tornar arrogante e insensível, aquele que se tornou um letrado, um intelectual, não deve desprezar a miséria espiritual e existencial que lhe serviu de ponto de partida e que será sempre, por contraste, a sua medida da escala humana. Se Dante começou sua viagem pelo inferno, por que deveríamos partir de um terreno mais elevado? E se é verdade, como dizia Agostinho, que as virtudes são feitas da mesma matéria dos vícios, as virtudes intelectuais não serão conquistadas só pela freqüentação dos exemplos edificantes, mas por uma longa, perigosa e difícil transmutação alquímica dos vícios mentais que se impregnaram inconscientemente em nós pela contaminação onipresente dos maus exemplos.

Daí a necessidade de alternar o estudo das grandes obras com o exame crítico e analítico das deformidades e vícios do ambiente cultural próximo, não para cultivar um descabido sentimento de superioridade, mas, bem ao contrário, para identificar os germes e resíduos que deixaram no fundo da nossa alma, de modo a podermos, se não extingui-los de todo, ao menos mantê-los sob controle.

Os leitores de O Jardim das Aflições devem lembrar-se de que encerro o livro confessando o meu – o nosso – parentesco mental com o miserável personagem que lhe servira de estímulo e pretexto.

Do mesmo modo, se eu não carregasse no fundo de mim, bem amarradinhos e inermes, um Emir Sader, um Rodrigo Constantino, um Carlos Nougué, um Sidney Silveira e outros tantos, jamais poderia ter compreendido a sua forma mentis e qualquer crítica que eu lhes fizesse permaneceria externa, mera expressão de reações pessoais sem o alcance de um diagnóstico psico-cultural digno de atenção.

Aqui, como naquele livro, ao examinar os ditos e feitos desses indivíduos, não faço senão revisitar de memória certas deformidades já longamente ultrapassadas da minha mente em formação, as quais tive a prudência de conservar escondidas como um segredo obsceno, ao passo que eles exibem as suas como se grandes obras fossem e motivos de orgulho.

Quando um Sr. Sidney Silveira, Carlos Nougué ou qualquer outro se oferece gentilmente para ilustrar com a sua pessoa algum vício estrutural da mente brasileira, devemos ser-lhes gratos por dar visibilidade a uma doença que, sem exemplos individualizados, seria muito difícil de descrever.

O leitor incapaz de notar que, ao escrever sobre essas criaturas, busco menos criticá-las do que explicá-las como fenômenos da alma brasileira, está ele próprio gravemente enfermo de subdesenvolvimento cultural. No mínimo, está como a criança que, não podendo compreender as ações dos adultos, lhes atribui as motivações mais fantásticas e impossíveis.

2. Fugindo como sempre

Em recente mensagem publicada no Contra Impugnantes, o Sr. Sidney Silveira reclama que tomei “uma simples imagem analógica usada em sala (à guisa de exemplo para uma platéia bastante heterogênea) com o intuito de mostrar cabalmente que confundia eu ali, ao final das contas, o eidos, quer dizer, a forma inteligível de um ente, com os seus acidentes individuantes”.

Releiam o que escrevi a respeito, ouçam a aula mencionada e confiram se o sr. Silveira, tentando provar a impotência humana de conhecer essências por intuição, não usou como exemplo a impossibilidade de apreender “a essência de um copo envenenado” (sic). Digam-me em seguida se quem erra sou eu ao dizer que um copo estar cheio de veneno é apenas um acidente, não uma essência.

Pego em flagrante burrada, o Sr. Silveira poderia, sem abdicar da sua tese e sem passar vergonha nenhuma, ao menos confessar que o exemplo é ruim, inepto, grotesco. Mas não. “Repetidor do magistério infalível”, ele não pode reconhecer que falhou nem mesmo num detalhe. Fiel ao seu hábito, ele nem confessa o erro nem tenta defendê-lo: muda de assunto. Foge ao ponto em discussão e camufla o vexame sob uma longa e eruditíssima argumentação anti-intuicionista.

Ora, por mais certa, exata e infalível que fosse essa segunda série de argumentos, ela não teria jamais o dom miraculoso de tornar retroativamente aceitável o exemplo do copo envenenado, com o qual ilustrei, não a teoria intuicionista ou qualquer outra, mas a confusão mental do Sr. Silveira, sua escassa confiabilidade de pensador e professor.

Notem que, na breve análise que fiz do malfadado exemplo, não apresentei nenhum argumento em favor do intuicionismo, apenas mostrei a inépcia de uma crítica em particular feita a essa teoria no curso de uma aula do Sr. Silveira. Qualquer pessoa que saiba ler percebe que o assunto ali não era intuicionismo nem anti-intuicionismo, mas uma performance pedagógica deplorável. Se o autor da performance finge que não percebeu nada e desvia a conversa para uma eruditíssima refutação tomista do intuicionismo, só demonstra com isso, novamente, a sua propensão compulsiva de fugir dos fatos deprimentes para o reino maravilhoso das abstrações e teorias, com a vantagem adicional de exibir cultura e simular superioridade mediante o uso daquele seu característico tom professoral, um estilo que pode enganar o seu público usual mas que, para o leitor dotado de alguma cultura literária, revela apenas um mau-gosto dos diabos (o estilo que o falecido Bruno Tolentino, com precisão cruel, denominava “penteadeira de velha”).

O mais ridículo de tudo é o sujeito não perceber – ou fingir que não percebe – que mesmo a melhor argumentação anti-intuicionista do mundo, feita ex post facto sob outros e novos argumentos, colhidos ao longo da semana em tratados escolásticos, nem poderia responder à minha crítica nem jamais dar ares de respeitabilidade retroativa àquela desastrada tentativa de exemplificação pedagógica, que vexame foi e vexame continuará sendo pelos séculos dos séculos, até que o Sr. Silveira desça do pedestal e consinta em impugná-la ele próprio, como o faria em lugar dele qualquer estudioso honesto, ao menos para salvar a honra da própria teoria que defende.

Desviando a discussão para o tema do intuicionismo em si, o Sr. Silveira, como sempre faz, foge do específico para o genérico e tenta dar a aparência de grande debate filosófico àquilo que é apenas um esforço desesperado para disfarçar a vergonha que passou.

Parece um menino que, tendo feito cocô nas calças, tentasse provar maturidade exibindo profundos conhecimentos de fisiologia da defecação.

É patético.

3. Anti-intuicionismo

O Sr. Silveira, no seu novo exercício teatral, poderia ter poupado ao seu público a extensa repetição dos ensinamentos tomistas sobre a abstração, que se encontram em tantos manuais e que são totalmente extemporâneos à discussão da sua mancada pedagógica. É exibicionismo, decerto, mas não puro e simples: é exibicionismo usado como instrumento de desconversa, de modo a transmutar em aparência de mérito intelectual a recusa de encarar os fatos.

Mas o pior é que, após ter submetido seus leitores a mais este cansativo show de erudição despropositada, ele usa da aparência de autoridade assim conquistada para fazê-los engolir uma mentira grossa, que é, no fim das contas, a única substância do seu argumento:“O erro dos intuicionistas em geral está em conceber o ato do conhecimento desconsiderando a anterioridade de todo este aparato sensitivo.”

Não conheço um só intuicionista que tenha negado a prioridade dos dados sensíveis como condição sine qua non do ato intuitivo. Se algum o fizesse, seria simplesmente louco. Mas não encontro o menor sinal dessa loucura em Husserl, em Croce, em Zubiri ou em qualquer outro filósofo classificável, de perto ou de longe, como “intuicionista”.

A coisa mais fácil do mundo é atribuir a alguém um erro imaginário idiota e, impugnando o erro, cantar vitória sobre o infeliz.

O Sr. Silveira faz isso com a maior cara de inocência, como convém ao consumado ator que ele é.

Para tornar a performance ainda um pouco mais cínica, a mentira que ele tece contra os intuicionistas não pretende atingir somente a eles, mas também a mim. Aí a mera falsificação torna-se inversão completa, pois, na discussão sobre o copo, quem, senão eu, lançou à cara dura do Sr. Silveira o argumento de que não se pode ter a intuição de um objeto inacessível aos sentidos? Como poderia eu alegar tal coisa e, ao mesmo tempo, “conceber o ato do conhecimento desconsiderando a anterioridade do aparato sensitivo”?

Por mais anestesiado que esteja pela overdose de erudição tomista que precede a mentira, nenhum leitor que tenha lido o meu argumento pode deixar de perceber que o Sr. Silveira aí o inverte para trocá-lo por uma estupidez de sua própria invenção.

Caso o Sr. Silveira não resista à tentação de encobrir mais este fato sob novas argumentações anti-intuicionistas, peço a todas as almas caridosas que me lêem o obséquio de avisar a ele que não estou aqui defendendo o intuicionismo ou qualquer outra teoria, apenas denunciando mais uma mentira. É matéria de fato, não de doutrina.

4. Pinçando trechos

Ao queixar-se de que fundamentei minha crítica numa “simples imagem analógica usada em sala à guisa de exemplo para uma platéia bastante heterogênea”, o Sr. Silveira insinua que me aproveitei covardemente de um trecho isolado para desmoralizar a sua exposição inteira.

Não fiz isso. Um exemplo não é um trecho isolado: é a continuidade normal de uma demonstração que, uma vez exposta em termos gerais, aí se troca em miúdos. É na formação do exemplo, é na passagem da língua abstrata para a visualização concreta, que se comprova se um expositor entende o que ele próprio diz, se ele sabe do que está falando ou apenas repete frases como um papagaio.

Não digo que o Sr. Silveira seja um mero repetidor. Não. Repetir sentenças tomistas é apenas metade do serviço que ele presta à humanidade. A outra metade consiste em ler sentenças de outros filósofos e averiguar se estas conferem com aquelas. Se não conferem, ele fulmina seus autores com uma acusação de heresia e vai dormir tranqüilo, acreditando que ganhou pontos no Juízo Final. That’s all, folks, como dizia o Pernalonga.

Que duas sentenças filosóficas separadas por séculos, impressas em livros de gêneros literários diferentes para ser lidas por públicos diferentes em atmosferas culturais diferentes não possam ser comparadas diretamente, requerendo antes a mediação de um terceiro fator chamado “realidade”, é algo que nem passa pela cabeça desse fiscal da ortodoxia alheia, que alia à rigidez dogmática da Santa Inquisição uma tacanhice e uma má-fé que não caberia imputar à maioria dos inquisidores.

A tacanhice, já vimos em que consiste: é reduzir a atividade pensante à comparação de frases, sem nenhuma referência à realidade externa ou mesmo à própria situação de discurso em que o tacanho procede a essa atividade. A má-fé consiste em lançar acusações de heresia com base em meras frases, sem extenso conhecimento das obras do acusado e sem aquelas meticulosas entrevistas pessoais em que os inquisidores buscavam distinguir se no texto investigado havia uma intenção herética formal, cabal, consciente, ou alguma outra coisa que pudesse passar injustamente por heresia. E note-se que tomavam esses cuidados numa época em que os livros de filosofia tinham em geral uma estrutura uniforme e pouca variação semântica, as sucessivas questões culminando em conclusões formais – as “sentenças” – que, em princípio, podiam ser julgadas em si mesmas, independentemente do itinerário dialético que a elas conduzira. Ora, nenhum livro de filosofia moderna é composto assim. À homogeneidade das Sumas e tratados medievais a modernidade opôs uma multiplicidade de gêneros literários e de linguagens pessoais que tornam simplesmente inviável a comparação frase-a-frase. Desde Hegel tornou-se um consenso entre os filósofos que uma tese, uma afirmação filosófica, nada significa sem o caminho (não só lógico, mas psicológico e experiencial) que a ela conduz – preceito que, por si, torna absurdo julgar uma filosofia só pelas suas “conclusões”, como se fazia no século XIII, mesmo supondo-se que as frases pinçadas para exame no tribunal silveiriano sejam realmente conclusões e não meras etapas de um desenvolvimento dialético, sem peso autônomo. Um inquisidor, hoje em dia, teria um trabalho de muitos anos antes de poder chegar a uma acusação formal de heresia contra um só filósofo sequer. O Sr. Silveira passa galhardamente por cima dessa exigência de uma investigação séria, e nem percebe que enviar pessoas ao inferno mediante simples cotejo de frases é uma das ocupações mais demoníacas a que um pretenso católico pode se entregar.

Mas, na verdade, se as sentenças condenatórias lavradas pelo Sr. Silveira prescindem de qualquer fundamento para além da esfera do verbal, do literal e do aparente, é simplesmente porque ele desconhece – ou odeia, ou talvez tema como à peste – a existência de qualquer coisa fora dessa esfera. A persistência obstinada com que ele se recusa a examinar os fatos e corre para encobri-los sob rendilhados doutrinais perfeitamente deslocados é a prova mais patente do delírio de interpretação que o acomete – uma radical incapacidade de apreender a situação concreta e raciocinar com base nela. Incapacidade que a fuga para a esfera do doutrinário e do abstrato só camufla aos seus próprios olhos, mas revela aos de todos os demais.

Daí sua impotência em produzir exemplos do que diz. Com a maior facilidade ele salta do concreto para o abstrato, mas não sabe o caminho de volta.

Um exemplo que inadvertidamente impugna a teoria que desejava comprovar é prova cabal de que o repetidor de generalidades não domina o assunto, não sabe a quais fatos da experiência real as generalidades se referem. Se, seguindo Sto. Tomás, você acredita que não há apreensão de uma essência sem apresentação do respectivo objeto aos sentidos, não pode alegar, como prova de ineficácia da faculdade intuitiva, que ela não intui o que não percebe sensivelmente, como se isto fosse um defeito, um handicap, e não a condição mesma do exercício da faculdade considerada. Seria o mesmo que acusar uma vaca de não dar vinho em vez de leite. O exemplo fornecido pelo Sr. Silveira, querendo demolir as pretensões da faculdade intuitiva, diz apenas que ela não cumpre o que não promete, só cumpre o que promete. Mas isso é falar a favor dela, e não contra. O Sr. Silveira provou o contrário do que pretendia, e nem percebeu que alguma coisa deu errado no meio do caminho. Não espanta que alunos submetidos a esse tratamento pedagógico terminem incapazes de distinguir entre condutas legais e criminosas. O Sr. Silveira é o mais erudito professor de burrice que já encontrei.

Em segundo lugar: se um exemplo não é de maneira alguma um trecho isolado, alheio ao restante de uma exposição, é sim trecho isolado a menção feita de passagem a assunto lateral, sem importância decisiva – ou mesmo nenhuma – para a demonstração de uma tese que ele não ilustra e à qual nada acrescenta. Pois foi exatamente um trecho com essas características que o Sr. Silveira pinçou no meu livro A Nova Era e a Revolução Cultural para basear nele sua construção imaginária e difamatória de um Olavo de Carvalho antitomista, inimigo da tradição católica. Em suma: ele me acusa, falsamente, de fazer com ele o que ele verdadeiramente fez comigo.

O capítulo do qual ele extraiu o trecho, desde logo, não era sobre tomismo, neotomismo ou qualquer coisa que se aparentasse de longe ou de perto a esses dois temas: era sobre a estratégia comunista de Antonio Gramsci. O conjunto do argumento visava a demonstrar que o gramscismo, um sistema de engodos voltado à conquista do poder político por meios maliciosos, era a base da estratégia dos partidos de esquerda no Brasil (algo que hoje todo mundo sabe, mas que na época era novidade absoluta fora dos círculos da intelligentzia esquerdista). Que é que isso tem a ver com tomismo? Nada. E o trecho que o Sr. Silveira aí escolheu era tão isolado, tão distante da questão central, que vinha entre parênteses. Com o agravante de que o caçador de frases nem mesmo se serviu do trecho inteiro: colheu nele um pedacinho, um pedacinho só. Vejam – o trecho que ele usou vem em maiúsculas, para melhor distinção:

“Nos três [marxismo, positivismo, neotomismo], as idéias, as teorias, não têm um valor intrínseco mas servem apenas como retaguardas psicológicas da ação prática. Os três não querem interpretar o mundo, mas transformá-lo. ( Cabe uma ressalva com relação ao neotomismo: NÃO CONFUNDI-LO COM O TOMISMO, SE POR ESTA PALAVRA SE ENTENDE A FILOSOFIA DE STO. TOMÁS DE AQUINO. O TOMISMO É FILOSOFIA NO SENTIDO PLENO; O NEOTOMISMO É, AO CONTRÁRIO, UM MOVIMENTO CULTURAL E POLÍTICO — IDEOLÓGICO, EM SUMA — VOTADO À DIFUSÃO DESSA FILOSOFIA, TOMADA COMO SOLUÇÃO PRONTA DE TODOS OS PROBLEMAS E, PORTANTO, ESVAZIADA DE BOA PARTE DE SUA SUBSTÂNCIA FILOSÓFICA. Afinal, tudo o que é neo-alguma-coisa é, por definição, apenas uma nova casca da qual essa coisa é o miolo.)”

Nada, nesse trecho, mesmo recortado e extraído do contexto, autorizava insinuar que, com o termo “neotomismo” eu me referisse a filósofos tomistas muito anteriores à eclosão desse movimento em 1879. O Sr. Silveira fez essa extrapolação porque quis, porque isso lhe dava a ocasião de me pintar como um inimigo da tradição, um inimigo da Igreja.

Se entre o neotomismo e aquilo que o antecedia na ordem do tempo eu fazia a analogia da nova casca e do miolo antigo, enaltecendo a este na mesma medida em que depreciava aquela, é óbvio que não era possível que estivesse metendo no mesmo saco miolo e casca, a nova aparência e a velha substância. Espertamente, o Sr. Silveira amputou a frase final, para dar a impressão de que eu fazia precisamente isso.

Não é preciso dizer que a referência ao neotomismo, feita de raspão, nem ilustrava nem tentava demonstrar a tese central do capítulo, apenas lhe acrescentava, a título de curiosidade, um detalhe marginal que não tinha com ela a relação intrínseca de exemplo e tese que o copo do Sr. Silveira tinha com o seu argumento anti-intuicionista.

O trecho que o Sr. Silveira recortou para com base nele construir um Olavo de Carvalho à imagem e semelhança da sua fantasia difamatória foi um pedaço de um trecho entre parênteses sobre assunto alheio à tese central do livro.

Ninguém faz isso com intenção honesta. Não que o Sr. Silveira pratique desonestidade consciente. Nem que ele ignore os conceitos do honesto e desonesto. Ao contrário: ele leu tudo o que havia para ler a respeito na bibliografia tomista e pode dar aulas inteiras sobre filosofia moral. Só há um problema: para discernir o honesto e o desonesto, não em si mesmos e em teoria, mas na situação concreta, é preciso ter sensibilidade para os fatos – precisamente o que mais falta na fórmula cerebral do Sr. Silveira. Daí a boa consciência com que se entrega à prática da difamação, da mentira, da intriga e das acusações levianas. Ele só sabe o que lê, não o que faz.

5. A culpa é da platéia

Pensam que a coisa parou por aí? Que nada. Para insinuar que cobrei indevidamente ao seu malfadado exemplo mais precisão do que era cabível na situação de discurso (como se eu o tivesse acusado de mera imprecisão e não de um cabeludíssimo contrasenso lógico), o Sr. Silveira alega que o exemplo do copo foi feito ante “uma platéia bastante heterogênea”. Heterogênea em que sentido? A platéia que vai a um curso de filosofia tomista pode ser variada na sua composição sociológica e no nível de instrução, mas é manifestamente homogênea no seu interesse em aprender algo da filosofia tomista. Será descabido, extemporâneo, deslocado da situação pedir que, nessas circunstâncias, o expositor se abstenha de dar exemplos catastróficos que só ilustram o contrário do que a filosofia tomista ensina?

Um contrasenso não é falta de precisão, é falta de lógica e falta de compreensão concreta do assunto explicado. Nenhuma heterogeneidade da platéia pode levar a culpa disso.

Imprecisão, sim, cometi eu quando falei mal do neotomismo em bloco, sem distinguir nele o joio e o trigo. Não me justifico, mas me explico, ao dizer que escrevia para um público voltado sobretudo à atualidade política, sem nenhum interesse nas divergências internas de uma escola filosófica da qual só conhecia, se tanto, o nome de um único representante: Jacques Maritain, que exercera alguma influência política no Brasil, chegando a inspirar a criação de um partido, o hoje extinto Partido Democrata Cristão. Dando assim por pressuposto, com muita razão, que o termo “neotomismo” não evocaria na platéia senão esse nome e essa vertente em particular, abdiquei de maiores precisões e toquei em frente a exposição do tema central, perfeitamente alheio a essas sutilezas. Eu não poderia jamais imaginar que, dezoito anos mais tarde, um engraçadinho, para dar a impressão de que eu combatia não os maritainianos em especial mas a tradição católica inteira, iria ampliar desmesuradamente o sentido do termo para fazê-lo designar, não só todos os membros daquela escola, o que já seria um exagero, mas autores que tinham vivido três, quatro ou sete séculos antes do seu surgimento.

Se fosse necessário provar que eu nada tinha não só contra esses autores, mas nem mesmo contra outros neotomistas, imunes à influência de Maritain, basta lembrar que o curso Introdução à Vida Intelectual, por mim proferido desde 1987, que depois se transformou no atual Seminário de Filosofia, era e é declaradamente inspirado no livro La Vie Intellectuelle, de A. D. Sertillanges, e que nele se consagravam e se consagram muitas semanas de estudo a textos de dois outros destacados filósofos neotomistas, André Marc e Joseph Maréchal. Apenas, ao escrever para um público que não se compunha de alunos meus nem de estudiosos de filosofia – muito menos de filosofia tomista –, não me pareceu errado passar por cima desses detalhes e usar o termo “neotomismo” no único sentido imediato que ele podia ter para aquele público.

Ou seja: ao apelar à “heterogeneidade da platéia”, mais uma vez o Sr. Silveira inverte os dados da situação, usando indevidamente em seu favor um argumento que não se aplica ao caso dele e sim ao de quem ele ataca.

6. Em busca de uma explicação

Se me perguntam, agora, por que um cidadão que se diz empenhado em restaurar as grandes verdades da doutrina mostra tanto desprezo pelas humildes verdades de fato, pisoteando a máxima tomista de que contra factum non argumentum est, respondo, desde logo, que o doutrinarismo abstrato, com o inevitável estilo magisterial grotesco que lhe serve de expressão verbal, é doença crônica de uma cultura subdesenvolvida, onde as grandes correntes do pensamento mundial só aportam na condição de signos de prestígio e autoridade, desprovidas da função existencial genuína que tinham na origem.

O doutrinarismo é, nesse ambiente, o pendant infalível do nativismo bárbaro que se compraz no culto de idiossincrasias e miudezas locais, tomadas, pelo simples fato de serem locais, como valores eternos e sacrossantos. Num país onde o “samba do Recôncavo Baiano” é reconhecido por decreto do governo como “um valor universal”, equivalente portanto à Catedral de Chartres, ao Taj-Mahal ou às cantatas de Bach, e onde Chico Buarque de Holanda chegou a ser enaltecido como artista das dimensões de Michelangelo Buonarotti, não é de espantar que, do outro lado da escala, numa tentativa canhestra e desesperada de fugir à mesquinharia circundante, as grandes teorias, as proposições universais abstratas sejam veneradas como fetiches, repetidas como fórmulas sagradas que pairam acima da realidade sem jamais tocá-la, para não se sujar.

O Sr. Silveira, nesse sentido, é como tantos outros uma pobre vítima da atmosfera cultural miserável da qual buscou evadir-se por um salto direto para as verdades eternas, sem passar por aquele extenuante e demorado corpo-a-corpo da inteligência com a confusão das realidades imediatas, que é a condição sine qua non da formação de um intelectual sério.

A simples rapidez com que, convertido ao catolicismo aos 39 anos de idade, aos quarenta e poucos já posava de abalizadíssimo impugnador de heréticos antes mesmo de ter aprendido a examinar criticamente a moralidade dos seus próprios atos mais públicos e vistosos, basta para revelar nele um descompasso fatal entre a aquisição de cultura teológico-filosófica e a formação da personalidade, donde resulta a gritante falta de nexo entre suas idéias gerais e sua percepção dos fatos.

Decerto, o mal do Sr. Silveira não pode ser imputado só a ele como indivíduo singular, sendo, como de fato é, um pouco o mal de todos nós, brasileiros. Todos, reagindo à turva confusão de uma sociedade cujo desenho de conjunto nos escapa e na qual nos movemos sem rumo como destroços num mar revolto, temos a tentação de apegar-nos a fórmulas abstratas para escapar ao exame daquilo que desnorteia e humilha a nossa inteligência. Vivemos como os homens dos tempos primitivos, que, segundo a brilhante análise de Wilhelm Worringer, se apegavam às formas puras da arte geométrica para fugir ao terror da selva informe e indomável.

Quando as fórmulas que escolhemos como tábuas de salvação se revelam logo manifestamente falsas, como o marxismo, a psicanálise ou a Nova Era, o dom divino das decepções repetidas amadurece o nosso espírito e nos prepara para a verdadeira vida intelectual, que começa ao compreendermos o adágio tomista de que veritas filia temporis, a verdade é filha do tempo.

Quando, porém, a fórmula que vem parar nas nossas mãos é precisamente a da verdade das verdades, a do próprio Verbo Divino Encarnado, então, meus filhos, a tentação de usá-la como defesa contra a realidade dos fatos é ainda mais forte e quase invencível, porque aí já não cabe decepcionar-nos com ela e sim apenas conosco mesmos, com o mau uso que fizemos do que havia de mais belo, genuíno e precioso; aí já não podemos dizer que fomos enganados, mas apenas que nos enganamos a nós mesmos, que prostituímos o depósito sagrado ao usá-lo como instrumento de alienação, como carapaça de proteção de uma falsa auto-imagem.

Entre o auto-engano da alma cristã embriagada de ilusão magisterial e o engano intelectual vulgar, a relação é a mesma que Agostinho via entre o orgulho e os demais pecados capitais: estes se apegam ao mal, para que se realize; aquele se apega ao bem, para que pereça.

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