Yearly archive for 2009

O governo invisível

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 e 18 de maio de 2009

Um dia, discutindo com oficiais de alta patente no Clube Militar do Rio de Janeiro, perguntei a um deles, homem com experiência em serviços de inteligência, se havia lido algum documento de fonte primária sobre o tópico em discussão. Não, não havia. Livros especializados? Também não. Estudos publicados em revistas acadêmicas? Também não. Relatórios de serviços de inteligência? Também não. “Então, de onde raios você tira as suas informações?”, perguntei. E ele, com a cara mais bisonha do mundo: “Dos jornais.”

Foi nesse instante que, com um arrepio na espinha, senti a catástrofe mental brasileira em toda a sua extensão. Quando comecei a trabalhar no jornalismo, todos ali sabíamos que o produto do nosso trabalho eram superficialidades para consumo popular. Quando entrevistávamos um estudioso, esperávamos sempre que ele tivesse fontes de informação melhores que as nossas. De repente, eu me via na situação terrivelmente incongruente de conversar com um especialista que só tinha a dizer aos repórteres aquilo que eles mesmos lhe haviam contado. O país dirigido por uma classe pensante nutrida tão somente dessa ração intelectual só podia mesmo ir para o buraco.

O pior era que, no vácuo de fontes mais substanciosas, a mídia crescera em prestígio na razão inversa da sua audiência: jornais que no último dia do milênio vendiam menos que na década de 50 haviam se tornado, no ambiente de ignorância geral, os proprietários quase monopolísticos do dom da credibilidade, incumbidos de separar realidade e fantasia ante os olhos de um cândido mundo.

Sei que esse processo, nos EUA, está longe de ter alcançado a compacta densidade das trevas brasileiras. No entanto, a velocidade que ele ganhou na última eleição justifica o temor de que, em breve, as classes falantes americanas também estarão tateando no escuro, sem exigir claridade por já não imaginarem que raio de coisa é isso.

Durante a campanha, a ocupação mais intensa da mídia americana foi uma sucessão de acrobacias admiráveis destinadas a fazer de Barack Obama o homem mais visível do mundo e proibir, ao mesmo tempo, qualquer investigação séria de sua biografia. Toda tentativa, por mais tímida e modesta, de desencavar dos arquivos a certidão de nascimento, os registros médicos, o histórico escolar e quaisquer daqueles documentos que todo candidato em campanha exibe normalmente, foi unanimemente condenada pelos maiores jornais e noticiários de TV como um delituoso extremismo de direita. Transcendendo a mera autocensura, a classe jornalística em peso impôs a mordaça ao resto da sociedade.

Mas isso não é nada em comparação com o que vem acontecendo desde que a misteriosa criatura foi juramentada como presidente de superpotência. Tendo prometido uma era de transparência e sinceridade jamais vista na história, o que Obama inaugurou foi um governo secreto, não no sentido usual das ocultações conspiratórias, mas num sentido absolutamente novo e inédito: o que se oculta do público não são ações ilícitas cometidas na calada da noite – são os próprios atos oficiais do governo. Se não houvesse internet, nem agências independentes, nem fontes primárias, nem o Freedom of Information Act, as decisões mais importantes da administração Obama nos últimos três meses teriam permanecido absolutamente confidenciais, invisíveis como um conluio de anarquistas famintos num porão miserável. Quando não foram totalmente omitidas pela grande mídia, foram noticiadas com discrição anestésica própria a torná-las ainda mais insensíveis do que poderia fazê-lo o silêncio total. Ou então foram relatadas sem o mínimo quadro comparativo capaz de elucidar seu alcance e seu significado. Como aquilo que chega aos jornais brasileiros é um recorte diminutivo do que sai na mídia americana, a ignorância dos nossos compatriotas quanto ao que se passa nos EUA só encontra comparação nas concepções astronômicas das minhocas e protozoários. Dizer que os brasileiros estão por fora é eufemismo. Graças aos bons préstimos da Folha, do Estadão, do Globo e outras entidades sublimes, os EUA que existem na imaginação dos nossos patrícios se parecem tanto com a realidade quanto um picolé de limão se parece com uma equação de segundo grau. Estamos no reino da heterogeneidade absoluta, irredutível à linguagem humana.

Os fatos que vou resumir neste artigo e em artigos subseqüentes não só estão fora da nossa mídia – pelo menos se considerados na sua devida perspectiva –, mas estão fora da imaginação da nossa classe jornalística. Ao publicá-los, o Diário do Comércio cumpre sozinho a tarefa da mídia inteira:

1. Tão logo soube da morte de civis afegãos em bombardeio ocorrido em Farah em 3 de maio, a Secretária de Estado Hillary Clinton apressou-se em pedir desculpas, puxando portanto a responsabilidade do crime sobre o seu próprio país. No dia seguinte, revelou-se que o Taliban havia lançado granadas contra a população, de modo a culpar os americanos pelas mortes que ele mesmo provocara. O segundo fato foi noticiado sem nenhuma referência ao primeiro, e os repórteres abstiveram-se gentilmente de perguntar à secretária de Estado se mantinha o seu despropositado pedido de desculpas. Foi como se estas se referissem a um episódio totalmente diferente.

2. Em 5 de abril, em visita a Praga, horas depois do lançamento do míssil Taepodong-2 pela Coréia do Norte, Obama, diante de uma platéia de 20 mil tchecos, fez a promessa mais absurda, irrealizável e suicida que um presidente americano já fez: anunciou que vai acabar com o arsenal nuclear dos Estados Unidos unilateralmente. Qualquer de seus antecessores que dissesse isso seria imediatamente torrado e moído pela mídia inteira e acusado de crime de traição. A enormidade obâmica foi noticiada com discrição blasée pelo Washington Post de 6 de abril.

3. Nenhum jornal ou noticiário de TV deu o menor sinal de perceber alguma coisa de ofensivo quando Hugo Chávez, na Cúpula das Américas em Trinidad-Tobago, deu a Obama um exemplar de “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano, um dos livros mais virulentamente antiamericanos já publicados no planeta. Como a maioria do eleitorado americano não tem a menor idéia de quem é Eduardo Galeano, tudo se passou como se o presente fosse uma amabilidade e não um tapa na cara como efetivamente foi. Obama engoliu o sapo com a gentileza sorridente de quem acreditasse, como de fato ele acredita, que ofensas ao seu país não o atingem. No mesmo evento e com o mesmo cavalheirismo, ouviu cinqüenta minutos de pregação antiamericana do nicaragüense Daniel Ortega e voltou para casa seguro de que ninguém na mídia lhe faria nenhuma cobrança por isso, como de fato ninguém fez.

4. Pela primeira vez na história americana, um presidente promete ajuda a todos os regimes totalitários e genocidas do mundo sem lhes fazer a mais mínima exigência no que diz respeito a direitos humanos. O resultado é que, em países como o Irã ou a Coréia do Norte, Obama é amado enquanto seu país é odiado. Embora isso fosse demonstrado por conclusivas pesquisas de opinião, ninguém na grande mídia deu sinal de perceber que o presidente está se promovendo entre povos inimigos às custas do prestígio nacional.

5. Ao revelar os memorandos secretos da CIA sobre o uso de técnicas drásticas de interrogatório, ameaçando processar o governo anterior por crimes contra os direitos humanos, a Casa Branca omitiu-se de informar que essas técnicas tinham sido adotadas com pleno conhecimento e apoio das lideranças do próprio partido governante. Se Dick Cheney, retirado da política, não tivesse ido à televisão por sua própria conta para contar isso, ninguém saberia de nada até agora, porque o “jornalismo investigativo” da grande mídia realmente não se interessa por essas coisas.

6. Após anunciar gastos públicos da ordem de 3,4 trilhões de dólares, que o próprio Federal Reserve confessa não saber nem como contabilizar, Obama teve a indescritível cara de pau de ordenar um corte de 17 bilhões de dólares, meio por cento do total, e ainda alardear, com a aparente anuência da classe jornalística, que isso inaugurava “uma nova era de austeridade” nos gastos públicos. A desproporção passaria despercebida se não existisse mídia alternativa para mostrá-la.

7. Os cortes foram, na sua quase totalidade, efetuados sobre o orçamento da defesa – acontecimento inédito num país em guerra –, desfalcando as Forças Armadas e debilitando a polícia de fronteira num momento em que reconhecidamente a invasão de ilegais é o maior problema de segurança dos Estados Unidos. Em compensação, verbas faraônicas têm chovido sobre as entidades que apoiaram Obama durante a campanha, especialmente a Acorn, premiada com 4 bilhões de dólares por seus serviços eleitorais, inclusive a distribuição de títulos de eleitor falsos (a liderança democrata já anunciou que não tem nenhuma vontade de investigar o assunto). O caso – o mais óbvio exemplo de medida antipatriótica aliada a favorecimento ilícito que já se viu nas últimas décadas – foi noticiado pela grande mídia com tal comedimento que, até agora, nem mesmo as lideranças republicanas deram sinal de perceber aí algo de errado.

8. Na reestruturação da Chrysler e da GM, segundo os planos anunciados por Obama, o sindicato United Auto Workers assumirá o controle acionário da primeira e terá 39% das ações da segunda. Além de ter sido o principal responsável pela falência das duas empresas, o sindicato é um dos grandes contribuintes de fundos de campanha para o Partido Democrata. Como esses três fatos só aparecem separadamente – quando aparecem –, ninguém se dá conta do crime.

9. Tendo prometido acabar com a “cultura dos earmarks” (verbas politiqueiras destinadas a agradar eleitorados locais), Obama sancionou uma lei de orçamento que tinha mais de 9 mil earmarks – um recorde que a imprensa, gentilmente, se omitiu de assinalar. Tendo prometido, ademais, que nenhuma lei seria aprovada pelo seu governo sem ficar disponível para consulta pública no site da Casa Branca por pelo menos cinco dias, Obama assinou as leis de orçamento e “estímulo” sem que o respectivo calhamaço de mais de mil páginas tivesse sido exposto naquele site nem mesmo por um segundo. A mídia não reparou no detalhe.

10. Terça-feira passada, Obama nomeou Arturo Valenzuela chefe do setor latino-americano do Departamento de Estado. Valenzuela é diretor da ONG La Raza. Seguindo o estilo entorpecente de seus modelos jornalísticos americanos, o UOL informa o distinto público que La Raza é “a principal organização de defesa de hispânicos nos Estados Unidos”. La Raza não é nada disso: é uma organização separatista, empenhada em transferir para a soberania mexicana os estados da Flórida, do Texas e da Califórnia.

Em artigos vindouros, darei mais exemplos de medidas drásticas, de conseqüências incalculáveis, que estão sendo adotadas pelo governo Obama com velocidade alucinante, todas elas obviamente prejudiciais à nação americana, e noticiadas de tal modo que nenhuma discussão suscitem, isto quando não passam totalmente despercebidas, soterradas sob páginas e páginas de futilidades sobre os vestidos da sra. Obama, o cãozinho da família ou o tempero do sanduíche comido pelo presidente numa loja de fast-food, coisas que antigamente ficavam para os tablóides de fofocas vendidos nos supermercados, e que agora são matéria de amorosa atenção pelo Washington Post e pelo New York Times.

A América, sem sombra de dúvida, brasilianiza-se.

O capitalismo anticapitalista

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de maio de 2009

Quando digo que a democracia capitalista dificilmente pode sobreviver sem uma cultura de valores tradicionais, muitos liberais brasileiros, loucos por economia e devotos da onipotência mágica do mercado, fazem aquela expressão de horror, de escândalo, como se estivessem diante de uma heresia, de uma aberração intolerável, de um pensamento iníquo e mórbido que jamais deveria ocorrer a um membro normal da espécie humana.

Com isso, só demonstram que ignoram tudo e mais alguma coisa do pensamento econômico capitalista. Aquela minha modesta opinião, na verdade, não é minha. Apenas reflete e atualiza preocupações que já atormentam os grandes teóricos do capitalismo desde o começo do século XX.

Um dos primeiros a enunciá-la foi Hillaire Belloc, no seu livro memorável de 1913, The Servile State, reeditado em 1992 pelo Liberty Fund. A tese de Belloc é simples e os fatos não cessam de comprová-la: destravada de controles morais, culturais e religiosos, erigida em dimensão autônoma e suprema da existência, a economia de mercado se destrói a si mesma, entrando em simbiose com o poder político e acabando por transformar o trabalho livre em trabalho servil, a propriedade privada em concessão provisória de um Estado voraz e controlador.

Rastreando as origens do processo, Belloc notava que, desde o assalto dos Tudors aos bens da Igreja, cada novo ataque à religião vinha acompanhado de mais uma onda de atentados estatais contra a propriedade privada e o trabalho livre.

Na época em que ele escrevia The Servile State, as duas fórmulas econômicas de maior sucesso encarnavam essa evolução temível cujo passo seguinte viria a ser a I Guerra Mundial. Quem mais compactamente exprimiu a raiz do conflito foi Henri Massis (que parece jamais ter lido Belloc). Em Défense de l’Occident (1926), ele observava que, numa Europa desespiritualizada, todo o espaço mental disponível fôra ocupado pelo conflito “entre o estatismo ou socialismo prussiano e o anti-estatismo ou capitalismo inglês”. O capitalismo venceu a Alemanha no campo militar, mas a longo prazo foi derrotado pelas idéias alemãs, curvando-se cada vez mais às exigências do estatismo, principalmente na guerra seguinte, quando, para enfrentar o socialismo nacional de Hitler, teve de ceder tudo ao socialismo internacional de Stálin.

Défense de l’Occident é hoje um livro esquecido, coberto de calúnias por charlatães como Arnold Hauser – que chega ao absurdo de catalogar o autor entre os protofascistas –, mas seu diagnóstico das origens da I Guerra continua imbatível, tendo recebido ampla confirmação pelo mais brilhante historiador vivo dos dias atuais, Modris Eksteins, em Rites of Spring: The Great War and the Birth of the Modern Age, publicado em 1990 pela Doubleday (nem comento o acerto profético das advertências de Massis quanto à invasão oriental da Europa, do qual tratarei num artigo próximo). Segundo Eksteins, a Alemanha do Kaiser, fundada numa economia altamente estatizada e burocrática, encarnava a rebelião modernista contra a estabilidade da democracia parlamentar anglo-francesa baseada no livre mercado. Esta só saiu vitoriosa em aparência: a guerra em si, por cima dos vencedores e perdedores, fez em cacos a ordem européia e varreu do mapa os últimos vestígios da cultura tradicional que subsistiam no quadro liberal-capitalista.

Outro que entendeu perfeitamente o conflito entre a economia de mercado e a cultura sem espírito que ela mesma acabou por fomentar cada vez mais depois da I Guerra foi Joseph Schumpeter. O capitalismo, dizia ele em Capitalism, Socialism and Democracy (1942), seria destruído, mas não pelos proletários, como profetizara Marx, e sim pelos próprios capitalistas: insensibilizados para os valores tradicionais, eles acabariam se deixando seduzir pelos encantos do estatismo protetor, irmão siamês da nova mentalidade modernista e materialista.

Que na era Roosevelt e na década de 50 a proposta estatista fosse personificada por John Maynard Keynes, um requintado bon vivant homossexual e protetor de espiões comunistas, não deixa de ser um símbolo eloqüente da união indissolúvel entre o antiliberalismo em economia e o antitradicionalismo em tudo o mais.

Nos EUA dos anos 60, essa união tornou-se patente na “contracultura” das massas juvenis que substituíram a velha ética protestante de trabalho, moderação e poupança pelo culto dos prazeres – pomposamente camuflado sob o pretexto de libertação espiritual –, investindo ao mesmo tempo, com violência inaudita, contra o capitalismo que lhes fornecia esses prazeres e contra a democracia americana que lhes assegurava o direito de desfrutá-los como jamais poderiam fazer na sua querida Cuba, no seu idolatrado Vietnã do Norte. Mas o reino do mercado é o reino da moda: quando a moda se torna anticapitalista, a única idéia que ocorre aos capitalistas é ganhar dinheiro vendendo anticapitalismo. A indústria cultural americana, que no último meio século cresceu provavelmente mais que qualquer outro ramo da economia, é hoje uma central de propaganda comunista mais virulenta que a KGB dos tempos da Guerra Fria. A desculpa moral, aí, é que a força do progresso econômico acabará por absorver os enragés, esvaziando-os pouco a pouco de toda presunção ideológica e transfigurando-os em pacatos burgueses. O hedonismo individualista e consumista que veio a dominar a cultura americana a partir dos anos 70 é o resultado dessa alquimia desastrada; tanto mais desastrada porque o próprio consumismo, em vez de produzir burgueses acomodados, é uma potente alavanca da mudança revolucionária, visceralmente estatista e anticapitalista: uma geração de individualistas vorazes, de sanguessugas carregadinhos de direitos e insensíveis ao apelo de qualquer dever moral não é uma garantia de paz e ordem, mas um barril de pólvora pronto a explodir numa irrupção caótica de exigências impossíveis. Em 1976 o sociólogo Daniel Bell já se perguntava, em The Cultural Contradictions of Capitalism, quanto tempo poderia sobreviver uma economia capitalista fundada numa cultura louca que odiava o capitalismo ao ponto de cobrar dele a realização de todos os desejos, de todos os sonhos, de todos os caprichos, e, ao mesmo tempo, acusá-lo de todos os crimes e iniqüidades. A resposta veio em 2008 com a crise bancária, resultado do cinismo organizado dos Alinskys e Obamas que conscientemente, friamente, se propunham drenar até ao esgotamento os recursos do sistema, fomentando sob a proteção do Estado-babá as ambições mais impossíveis, as promessas mais irrealizáveis, os gastos mais estapafúrdios, para depois lançar a culpa do desastre sobre o próprio sistema e propor como remédio mais gastos, mais proteção estatal, mais anticapitalismo e mais ódio à nação americana.

Em 1913, as previsões de Hillaire Belloc ainda poderiam parecer prematuras. Era lícito duvidar delas, porque se baseavam em tendências virtuais e nebulosas. Diante do fato consumado em escala mundial, a recusa de enxergar a fraqueza de um capitalismo deixado a si mesmo, sem as defesas da cultura tradicional, torna-se uma obstinação criminosa.

Aristóteles em Nova Perspectiva (por João Seabra Botelho)

João Seabra Botelho

Leonardo, 10 de maio de 2009

A “Leonardo” leva já dois anos e meio de presença nestas suas vestes informáticas e, a confirmar a sua radical irrelevância para o “establishment” cultural, social, político, académico e editorial, está o facto de nunca ter recebido aqueles testemunhos de “estima e consideração” próprios do ambiente letrado, que são a oferta de livros feitos pelos “oficiais do mesmo ofício”.

Para isso, ninguém nos liga nenhuma! Excelente.

Libertos assim, como sempre desejámos, de qualquer serventia ou cumplicidade, seja com os mais visíveis apparatchiks da “cultura”, seja com os mais discretos ou secretos “independentes, mas conformes”, que lhe ocupam, à “cultura”, os contornos da auréola, fomos, contudo, recentemente prendados com duas obras.

Prendados, apenas pela nobre razão de seus autores quererem ser lidos; apenas isto, porque outras pretensões não envenenam, bem o podemos avaliar, o desejo dos autores, nem tampouco seriam exequíveis, connosco.

E sendo assim o que somos, tanto os autores como os leitores, é em concreta liberdade e amor à verdade que agora nos manifestamos e deixamos o nosso testemunho sobre as obras recebidas.

São elas “Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à teoria dos Quatro Discursos”, de Olavo de Carvalho, e “Considerando os filósofos”, de Carlos Aurélio.

Do primeiro livro, irei agora dizer alguma coisa. Do segundo, será de seguida publicado um texto de Miguel Bruno Duarte. Mas outros textos poderão aparecer mais tarde, sobre qualquer um destes dois livros, porque temos em ambos muito “pano para mangas”.


A perpetuidade da Filosofia Clássica

A primeira nota que quero deixar bem frisada sobre o livro de Olavo de Carvalho foi ter tido uma constante, surpreendente e agradável sensação de familiaridade com o texto, com o pensamento, com o exercício filosófico que subjaz a este livro.

E, no entanto, o livro tem ideias originais, teses invulgares e propostas inovadoras…

Essa familiaridade foi, então, a primeira condição ou circunstância que suscitou a interrogação. Porquê?

Depois, eis o facto de estar também documentada e patente, no livro, a polémica que esta obra gerou, que me causou um “dejá vue” arrepiante da reacção típica do bacharelismo positivista que controla, lá como cá, muitos dos púlpitos e varandas do “templo da cultura oficial”, onde as novas obras e autores devem obedientemente desfilar, para aprovação comprometedora dos maiores e aplauso invejoso dos menores.

Respondo já à interrogação feita acima lembrando agora a conclusão do texto de Orlando Vitorino, aqui recentemente publicado, sobre Álvaro Ribeiro. Essa conclusão é a de que cabe à Filosofia Portuguesa a demonstração da perpetuidade da Filosofia Clássica, e nesta, da obra de Aristóteles, “ a filosofia natural do homem”.

Ora, para mim, a familiaridade que senti com esta obra deve-se ao simples facto de Olavo de Carvalho ser um filósofo a quem também tocou essa missão!

Em favor desta minha afirmação não quero adiantar supostos esclarecimentos sobre o modo misterioso em que tais vínculos espirituais se transmitem, que a serem tidos em conta afastariam parte do espanto que esta afirmação possa causar; basta-me dizer, mais simplesmente, que não é “impunemente” que se filosofa em Português! Filosofar em Português, aqui, como no Brasil, ou em Macau, é sempre inspirar, ou aspirar, os tropos lusos que no incansável tempo ganharam morfologia própria e sustêm a Língua Portuguesa. O resto, vem da alma de cada um! E se Olavo nasceu autor de razão animada, não admira que filosofe com autonomia e que o seu filosofar seja um fruto germinado ao sol e à chuva de uma Pátria singular, mas já universal. E foi sob este sol e esta chuva que melhor se entendeu Aristóteles, enquanto decorriam muitos e longos séculos e se mudavam as vontades.

Depois das obras de Álvaro Ribeiro, como Razão Animada, Estudos Gerais, Escola Formal ou a Arte de Filosofar, que reabriram em Portugal, no século XX, os mais altos horizontes da filosofia aristotélica, vejo agora em Olavo de Carvalho, e nesta sua obra, o estudo aristotélico actual mais relevante da Escola Formal, e com não menor relevância até na sua aptidão didáctica para quem se queira iniciar no que mais importa da obra aristotélica, aptidão ou valor que Álvaro também nunca desdenhou ou esqueceu nos seus livros.

E, no entanto, até é possível que o Olavo não se sinta pessoalmente identificado nestes termos, já que não é pequeno o oceano concreto que nos separa a todos, o Atlântico, e um escol requer alguma proximidade e conformidade de conceitos e termos. Mas o que possa faltar de medida e peso, para firmar essa sintonia, sobra na espontânea empatia de sentimentos e pensamentos que existe, seja lá por que razão seja, (se a razão que já adiantei não chegar), e me cumpre constatar, por ser verdade.

O facto, pois, é este: comungamos, interiormente, de uma mesma “traditio”; e, como se vê, cá e lá, para o bem e para o mal.

A tese fundamental deste livro é a unidade do saber em Aristóteles, unidade que tem o seu concreto assento na existência de um único potencial intelectivo, o discurso humano, que se desenvolve por quatro disciplinas, a Poética, a Retórica, a Dialéctica e a Lógica. Na intuição desta unidade discursiva e das quatro modalidades principais em que Aristóteles propõe o seu desenvolvimento unitário, para atingir assim a plenitude das suas formas próprias, perfazendo no horizonte os limites do possível saber humano e deixando entreaberta a via sófica, vê Olavo, e com razão, o resultado da sua autoria, já que de ninguém ouviu ou aprendeu isto.

Esta tese, obviamente, contraria as vulgarizadas versões sectárias de Aristóteles, e disso tem clara consciência Olavo de Carvalho, quando afirma que irá apresentar “como um apóstolo da unidade aquele a quem todos costumam encarar como guardião da esquizofrenia”, da esquizofrenia que é o autêntico pilar da tese da dualidade do saber. O seu esforço não é vão, e quedam esclarecidas as suas razões e, supletivamente, as causas do sectarismo corrente.

Esta “doutrina dos quatro discursos” é lucidamente exposta, tanto nas curiosas contingências históricas que terão contribuído para a sua ocultação ou esquecimento – apenas Avicena refere esta visão com alguma acuidade – como sejam o desaparecimento da Poética praticamente até ao Renascimento, ou a hipertrofia da argumentatio da Dialéctica e da mecanicidade da Lógica dos silogismos nas disputas teológicas e nos conflitos de Fé, ou na gradual morte da Retórica enquanto instrumento vital da pólis e da domus justitia, como nas suas causas intrínsecas e essenciais, que a natureza humana impõe e que determinam uma única fonte de culto e cultura, de pensamento e expressão, um único cadinho onde se fundem sensibilidade, memória, imaginação e razão, o discurso humano; eis a teoria de “uma expressão integral do logos”.

Ao mesmo tempo que vai expondo a sua original descoberta, original por se tratar de algo que se encontra no âmago da doutrina aristotélica e foi bebido na sua origem, descoberta por ter sido mostrada ou demonstrada, após muitos séculos de obnubilação, Olavo vai deixando igualmente a sua interpretação de outros tópicos da obra do Estagirita, alguns deles não menos relevantes para o reavivar deste pensamento abrangente e orgânico, estruturado mas dinâmico, que caracteriza a unidade do monumental opus aristotélico.

Também se encontra nesta obra uma vertente mais virada para a história das ideias: da história remota, na metódica leitura de várias épocas culturais sob a perspectiva do quadro da evolução sequencial dos “quatro discursos” e sua respectiva relação com as mentalidades próprias dessas épocas; da história recente, com a impagável e humorística polémica travada com alguns “sábios da mula ruça”, dos muitos que pululam pelos muitos galhos da frondosa “cultura oficial”.

Gostaria de deixar aqui, após esta primeira referência global à obra, os temas que me levantaram dúvidas ou simples desacordo, já que em relação a tudo o mais, nada melhor que a leitura da obra, que está dsponível na Net para aquisição, e que é o modo adequado de conhecer realmente as teses de Olavo de Carvalho.

Tenho, então, para concluir, as seguintes notas a acrescentar:

– Julgo que a Sofística não está suficientemente mencionada no contexto dos “quatro discursos”; compreende-se que traria algum desconforto a introdução de um “quinto discurso”, ou de uma possível versão deformada ou sombria de um, ou mais, dos quatro disccursos, mas seja como for, a questão da sofistica é demasiado relevante, na filosofia em geral, na filosofia Grega em particular, e na própria obra de Aristóteles, nomeadamente no seu aspecto ético, para não merecer mais que esta breve referência : “Aristóteles adverte expressamente os seus discípulos de que não se aventurem a terçar argumentos dialécticos com quem desconheça os princípios da ciência; seria expôr-se a argumentos de mera retórica, prostituindo a filosofia.”

– Já na pag. 41 Olavo descreve: “De discurso em discurso há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível; da ilimitada abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das crenças realmente aceites na praxis colectiva; porém, da massa de crenças subscritas pelo senso comum, só umas poucas sobrevivem aos rigores da triagem dialéctica; e destas, menos ainda são as que podem ser admitidas pela ciência como absolutamente certas e funcionar, no fim, como premissas de raciocínios científicamente válidos.” Ora, temos aqui uma descrição que me parece excessivamente reducionista, da ciência como filtro que sintetiza dados vários, e falsos, muitos deles: tal visão gera-se com o racionalismo Moderno, e julgo que é anacrónica com Aristóteles e a sociedade Ateniense. Aristóteles não tem uma visão sintetizante, ascendente e afunilante do exercício de conhecer, e os dois movimentos, ascendente e descendente, nele se completam e estimulam mutuamente… Tanto vale a sintetização e a abstracção, como momentos do processo científico, quanto vale a atenta e curiosa observação de novas e multímodas formas em que a vida se organiza, e a imaginação de novas espécies e diferenças, ou a intelecção de géneros e categorias. Nos discursos poético e retórico, aliás, exige-se necessariamente o desenvolvimento das capacidades próprias ao apreciar e recriar do concreto e do diverso, e na própria dialéctica Aristóteles não sobrevaloriza a síntese sobre a análise, ou a dedução sobre a indução; portanto, só se quisermos ver o Organon em versão algo estática e piramidal, aqui já talvez excessivamente medieval, é que iríamos também coroar e subjugar todo o sistema com a Silogística que, essa sim, filtra as proposições pelo crivo da certeza apodítica. Em suma, creio que Aristóteles não desdenharia de ver representado o seu sistema como esférico, mas não piramidal. O dinamismo não gera mais formas sob a égide da crença e da ignorância, enquanto o saber se encarrega de afunilar a verdade num cada vez menor número de seres ou formas, através da subida nos “discursos”. Para Aristóteles, os entes a serem conhecidos são incontáveis e mais reais, ou verdadeiros, que os fantasiados ou aceites pelo senso comum. Conhecer, é conhecer essa diversidade múltipla dos entes, e tão importante é classificá-los numa só classe, como reconhecer-lhes a diferença única que os identifica. Evoluir na credibilidade ou cientificidade dos discursos não é só depurar ou filtrar as fantasiosas crenças do ignorante, numa espécie de movimento do múltiplo ao uno; a organização, ou o organon, permite avançar disciplinada e efectivamente para o conhecimento da imensa multiplicidade de entes e eventos, não para a diminuir, ou abstrair, ou para visionar os modelos do seu mestre, Platão, mas para conhecer o movimento universal que é a demonstração da inteligência divina e que se manifesta nos movimentos de todos os entes, que se movem para culminarem em, ou cumprirem a, sua perfeição.

– Finalmente, apesar de registar com agrado que não é o hilemorfismo, ou a tese do composto da matéria e da forma, que sempre vem à baila nas divulgações de Aristóteles, que mais interessa a Olavo, mas antes a tese da potência e do acto, que sendo mais difícil é muitas vezes posta de lado, embora seja a mais importante contribuição de Aristóteles, na minha opinião, para ultrapassar os desconcertantes paradoxos do movimento e da imobilidade que tanto “trabalho” deram a Platão e a toda a cabeça pensante de Atenas, tenho as minhas objecções à leitura que Olavo faz dessa tese. Mas sobre esse tema será preciso um outro texto, que aqui já não tem cabimento, até porque esse tema vai obrigar-me a ser… digamos atrevido, talvez original.

Lisboa, 10 de maio de 2009

Veja todos os arquivos por ano