Yearly archive for 2008

Arguing with apes

Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil , January 21th , 2008

What I explained in the previous article is the most elementary requirement of verbal communication: if you wish your statements to deal with realities, and not only with words, you must possess an adequate mental representation of the object before you can enunciate a single judgment about it, even a hypothetical one.  Even if the reality in question is purely imaginary, you must imagine it correctly in order to avoid building your reasoning and arguments without a corresponding representative content.

When I reintroduced the study of the argumentative art in Brazil – with the mimicking apes immediately beginning to talk about it as if they had a long experience in the subject – I didn’t expect that the word “argument” would be turned into a fetish. It is typical of intellectual apes to think that everything is a question of “having the right arguments”. They don’t even suspect that argumentation is the lowest and most rudimentary aspect of philosophical training.  Two perfectly equal arguments can express different ideas, one true and one false, according to the mental representation behind each of them. There are no true or false “sentences”: true or false is the judgment behind the sentence, what you are really thinking – and when you utter an apparently true sentence you may be thinking nothing, or thinking a total falseness which, by coincidence, is expressed with the same words as a true judgment.

Many times I try to analyze the meaning – the judgment – that lies behind what my interlocutor says, and the poor creature thinks that I’m “arguing”. Analysis aims to discover the lived and thought reality at the bottom of a verbal construction, and not to deny or confirm a statement.  Arguments are only possible after analysis has certified that both interlocutors have an identical mental representation of the object in discussion. Only then may each one argue whether the conclusions the other reached from the object thus represented correspond or not to reality, to experience, to testimonies, etc.  But in the majority of cases what I find out is that my interlocutor doesn’t have any representation, all that he has is a verbal scheme that conventionally designates the object.  To point this out is in no way “to argue”; rather it is to show that the interlocutor has no condition to argue anything about the object in discussion, but only about words.  It gets even worse when the words that substitute the absent object come associated to emotional values and the fellow thinks that while defending those values he is “arguing”.  Sadly this has been the outcome of almost all of the discussions I have entertained with Brazilians, especially with “intellectuals”.  Genuine arguments – eventually false when confronted with reality, but genuine as arguments – I have found only in the U.S. and in Europe. In Brazil nobody knows any longer what that is.

I notice this misery chiefly in the discussions about religion. Even if the God of the Bible were totally imaginary, you would not be able to discuss Him before you had imagined Him as he is in the Bible.  This takes us back to the internal effort that I mentioned in last week’s article – the only means to fill the representative content of the expression “the God of the Bible”.  As in general the enemies of Bible only read it – when they read it at all – with a firm disposition to void the meaning of its main character, instead of filling themselves with that meaning, the end result is that we have no argument whatsoever: there is only, on one hand, the apelike imitation of the art of argumentation, and on the other, my useless effort to explain to an ape that I’m not arguing with him.

Discutindo com macacos

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 21 de janeiro de 2008

O que expliquei no artigo anterior não é senão a exigência mais elementar da comunicação verbal: se você pretende que suas afirmações versem sobre realidades e não sobre meras palavras, tem de possuir uma adequada representação mental do objeto antes de poder enunciar a respeito dele um só juízo, ainda que hipotético. Mesmo que a realidade em questão seja puramente imaginária, você tem de imaginá-la corretamente para não sair construindo raciocínios e argumentos sem conteúdo representativo correspondente.

Quando recoloquei em circulação neste país o estudo da arte de argumentar – da qual imediatamente os macaqueadores começaram então a falar no tom de quem tivesse longa experiência do assunto — , não esperava que a palavra “argumento” se transformasse no fetiche em que se transformou. É característico dos macacos intelectuais achar que tudo é uma questão de “ter argumentos”. Nem suspeitam que a argumentação é a parte mais baixa e rudimentar do treino filosófico. Dois argumentos perfeitamente iguais podem expressar idéias diferentes, uma verdadeira, a outra falsa, conforme a representação mental por trás de cada uma. Não existem “sentenças” verdadeiras e falsas: verdadeiro ou falso é o juízo por trás da sentença, o que você está efetivamente pensando – e ao pronunciar uma sentença aparentemente verdadeira você pode não estar pensando nada, ou então pensando uma falsidade completa que, por coincidência, se exprima com as mesmas palavras de um juízo verdadeiro.

Muitas vezes busco analisar o sentido – o juízo – por trás do que o meu interlocutor diz, e o desgraçado acha que estou “argumentando”. A análise visa a descobrir a realidade vivida e pensada no fundo de uma formulação verbal, não a contestar ou abonar uma afirmação. Argumentos só são possíveis depois que a análise certificou que ambos os interlocutores têm uma representação mental idêntica do objeto em discussão. Aí cada um pode discutir se as conclusões que o outro tira do objeto assim representado correspondem ou não à realidade, à experiência, aos testemunhos, etc. Mas, na maior parte dos casos, o que descubro é que meu interlocutor não tem representação nenhuma, tem no máximo um esquema verbal que designa convencionalmente o objeto. Mostrar isso não é de maneira alguma “argumentar”: é mostrar que o interlocutor não tem condição de argumentar nada sobre o objeto da discussão, apenas sobre palavras. Pior ainda quando as palavras que substituem o objeto ausente vêm associadas a valores emocionais e o fulano acha que ao defender estes últimos está “argumentando”. Infelizmente foi isso o que aconteceu na quase totalidade das discussões em que me meti com brasileiros, principalmente “intelectuais”. Argumentos genuínos – eventualmente falsos no confronto com a realidade, mas genuínos enquanto argumentos – só encontrei nos EUA e na Europa. No Brasil ninguém mais sabe o que é isso.

Observo essa miséria sobretudo nas discussões sobre religião. Mesmo que o Deus da Bíblia fosse totalmente imaginário, você não poderia discuti-Lo antes de imaginá-Lo tal como Ele está na Bíblia. Isso remete ao esforço interior que mencionei no artigo da semana passada – o único meio de preencher de conteúdo representativo a expressão “Deus da Bíblia”. Como em geral os inimigos da Bíblia só a lêem – quando a lêem – com uma firme disposição de esvaziar de sentido o seu personagem em vez de preencher-se a si próprios com esse sentido, o resultado é que não há discussão nenhuma: há apenas, de um lado, a imitação simiesca da arte de argumentar, do outro – o meu – o esforço inútil de explicar a um macaco que não estou argumentando com ele.

PT, o partido dos ricos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de janeiro de 2008

O PT não é um partido ladrão porque abandonou seus altos ideais e se corrompeu ao contato com a maldita direita. Para que a direita o corrompesse seria preciso que ela fosse mais corrupta do que ele, e é só comparar a lista de escândalos dos governos respectivos para ver que o próprio P. C. Farias teria muito a aprender com os Dirceus e Berzoinis. O PT é um partido ladrão porque é um partido revolucionário, filiado a uma tradição de amoralismo maquiavélico que pelo menos desde a Revolução Francesa, com intensidade crescente desde a Primeira Internacional de 1864 e mais ainda desde a fundação do Partido Socialdemocrata de Lênin, sempre achou que era de seu direito, e até da sua obrigação, financiar a si próprio por meio de assaltos, de seqüestros, de extorsões, de desvio de dinheiro público, bem como de uma infinidade de negócios capitalistas legais e ilegais, cujo volume total faria inveja a seus mais reacionários inimigos burgueses.

Estudem a vida de Lênin e confirmarão o que estou dizendo. O volume do capital que o financiava, sem contar a ajuda de governos estrangeiros, era tal que, se aplicado em atividades produtivas, teria feito dele uma espécie de J. P. Morgan – com o detalhe significativo de que as contribuições de J. P. Morgan engrossavam aquele capital junto com o dinheiro dos assaltos comandados por Stálin. Revoluções custam caro. O revolucionário Parvus, que enriqueceu com mil e um negócios na Turquia, já ensinava em 1914: “A melhor maneira de derrubar o capitalismo é nós mesmos nos tornarmos capitalistas.” Não foi o Lulinha quem descobriu essa fórmula. Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht riram dela e acabaram derrotados. Lênin, o vitorioso, ouviu-a com reverência e gratidão da boca de seu gerente financeiro na Suíça, Jacob Hanecki, a quem depois da Revolução premiaria com o cargo de Comissário do Povo para as Finanças. Leiam Lenin in Zurich , de Alexander Solzhenitsyn (London, Farrar, Straus & Giroux, 1975). A revolução socialista consiste na simples transfiguração de uma elite ativista proprietária de boa parte do capital em senhora absoluta de todo o capital. Sempre foi assim, e com a esquerda nacional não é diferente. O mensalão não foi um pecado temporão cometido por almas santas no último minuto antes da ascensão aos céus. Foi a execução lenta e metódica de planos traçados desde o começo da década de 90 — contemporâneos à criação do Foro de São Paulo –, já denunciados então por César Benjamin, algo como uma versão “los macaquitos” de Karl Liebknecht, à qual, como a este último, a História e o distinto público deixaram falando sozinha.

Tomem, por exemplo, a forma mais simples e bruta do capital – a posse da terra – e façam a conta de tudo o que a militância organizada, com o auxílio deste governo e dos anteriores, vem amealhando  ao longo dos últimos anos. Somem a extensão das propriedades do MST com as reservas indígenas, com os quilombos (ou ditos tais) em vias de desapropriação, com os imóveis estatais e privados já transferidos a ONGs ativistas, com as áreas sob domínio das Farc diretamente ou através de seus prepostos  locais – e verão que nunca houve, neste país, um patrimônio imobiliário comparável. Nem incluo aí o patrimônio financeiro – as verbas estatais que jorram sobre as organizações esquerdistas, as participações acionárias em mil e uma empresas, as contribuições internacionais impossíveis de calcular e, last not least , os lucros do narcotráfico. Os ricos não serão destruídos pelos pobres. Serão destruídos pelos mais ricos.

       No fundo, o cinismo lulista é até mais respeitável do que o moralismo posado de seus críticos de esquerda, postiço até o desespero, macaqueação tardia do mesmo discurso enganoso que levou o PT às supremas glórias eleitorais. O que o antilulismo de esquerda nos promete, na hipótese viabilíssima de sua ascensão ao poder, são prodígios de ladroagem que farão Dirceu e Berzoini parecerem São Cosme e São Damião. No ato mesmo em que explicam a corrupção petista como traição aos ideais revolucionários, os santarrões do PSOL e do PSTU se desmascaram a si próprios com uma eloqüência quase sublime: Quem pode acreditar em patifes que prometem fazer a revolução marxista sem descumprir em nada os ditames da moral burguesa?

       Ademais, por que alardeiam suas denúncias na Rede Globo, na Folha , no Estadão – naquela mesma mídia a que chamam reacionária e imperialista – antes de haver sequer tentado discuti-las discretamente no Foro de São Paulo, a instância máxima do esquerdismo continental? Roupa suja se lava em casa, e quando alguém o faz em público antes de haver nem mesmo tocado no assunto em família, é porque está tramando alguma. Imaginem um soi disant dissidente soviético que, nos anos 60, saísse berrando contra o comunismo na Voz da América ou Rádio Europa Livre, ao mesmo tempo que conservasse seu cargo e suas boas relações no Politburo ou na KGB. É exatamente a mesma coisa. Se a esquerda está dividida entre os corruptos e os honestos, a divisão deveria aparecer primeiro nos seus debates internos – só depois ante os inimigos, se chegasse a tanto. O inverso é prova clara de que se trata de pura encenação, de que por trás a família continua unida e coesa, tramando para ludibriar uma vez mais a multidão dos trouxas. Não há cisão na esquerda: há apenas uma natural divisão de trabalho – uns amealham dinheiro e poder à custa de enfeiar a imagem do esquerdismo, outros embelezam a imagem consentindo devotadamente em adiar o recebimento da sua quota de dinheiro e poder. Sempre foi assim. O movimento revolucionário limpa-se na sua própria sujeira, engorda alimentando-se do seu próprio cocô.

       O hábito de salvar o prestígio do esquerdismo no ato mesmo de denunciar os seus crimes já está tão arraigado nas rotinas mentais da classe falante, que aparece até mesmo nos lugares que se julgariam, à primeira vista, os mais inusitados. Falando dos reféns em poder da narcoguerrilha colombiana, escreve a Veja desta semana – sim, Veja , nominalmente o spalla da orquestra antipetista:

       “A organização que mantém cerca de oitocentas pessoas em seu poder, conhecida pela sigla Farc, não é formada por guerrilheiros marxistas , como repete a denominação usual (grifo meu). Nem Marx endossaria as barbáries cometidas pelas Farc, que se originaram numa querra civil ocorrida na Colômbia e depois tiveram inspiração esquerdista, mas há muito tempo degeneraram em uma espécie de seita de fanáticos que vive à custa do tráfico de cocaína.”

       Desde logo, é falso que Marx não endossaria essas violências e outras piores, de vez que contemplava como exigência normal e desejável do processo revolucionário a extinção sumária de povos inteiros. Em segundo lugar, o narcotráfico das Farc é mixaria perto do que foi feito na China por Mao Dzedong, a quem ninguém jamais acusou de ser infiel às tradições marxistas. Em terceiro lugar, o comércio latino-americano de drogas foi na sua parte mais substantiva uma criação da KGB, que se empenhou nisso desde os anos 50 (v. o depoimento do general tcheco Jan Sejna – um participante direto da operação – em Christopher Story , Red Cocaine. The Drugging of America and the West , London, Edward Harle, 2nd. Ed., 1999). Devemos crer que o governo soviético, Mao Dzedong e o próprio Marx não representam o autêntico espírito do marxismo, cujo único porta-voz autorizado é o redator de Veja ? Este aliás se trai miseravelmente ao dizer que, de esquerdistas genuínos, os militantes das Farc se trasnformaram numa “seita de fanáticos”. Se dissesse que se transformaram em aproveitadores sem fé nenhuma, talvez enganasse melhor. Mas “fanáticos”? Fanáticos do quê? Do espiritismo? Do vegetarianismo? Da Seicho-No-Iê? Fanáticos jogadores de futebol-de-botão? Fanáticos admiradores da Ana Paula Arósio? Fanáticos, por definição, acreditam em alguma coisa, e em que acreditam os homens das Farc, senão no bom e velho marxismo de sempre? Fanáticos marxistas, sim, é o que são, ontem como hoje. Se não o fossem, não seriam aceitos e celebrados como representantes fidedignos do marxismo no templo mesmo da revolução comunista, o Foro de São Paulo. Ou será que Veja tem mais autoridade do que o Foro de São Paulo para julgar a ortodoxia comunista dos outros?

       Mais abusadamente ainda, Marcelo Otávio Dantas, no artigo “Messianismo e o credo petista” (Folha de S. Paulo), querendo contrastar o PT corrupto de hoje com o PT puríssimo de outrora, diz que a mentalidade do partido “converteu-se, assim, em um neosabbatianismo radical, alimentado por uma intelectualidade delirante, especializada em justificar o injustificável”. Como se os traços da heresia de Sabbatai Zevi já não estivessem no próprio sangue do movimento revolucionário desde sempre e como se a marca distintiva do PT não tivesse sido, desde a origem, o culto do pecado redentor assumido até mais explicitamente que o dos outros partidos de esquerda então existentes. Nascido de uma aliança entre os comunistas e a esquerda católica, o PT veio imbuído do projeto gramsciano de subverter a Igreja por dentro, esvaziando-a de seu conteúdo espiritual e fazendo dela o instrumento dócil do que pode haver de mais anticristão no mundo, a revolução comunista. Se isso não é uma forma extrema de heresia messiânica, não sei em que outra classificação possa caber. O discurso untuosamente moralista do PT nunca teve nada de sincero, foi sempre, entre os líderes, uma parasitagem maquiavélica do prestígio da Igreja para fins de propaganda e, na arraia miúda dos militantes, uma forma patológica de auto-engano lisonjeiro. Perto disso, o mensalão é apenas um pecadinho de fim de semana. A corrupção financeira do PT não é senão a exteriorização tardia – e mais vistosa, para a mentalidade dinheirista – da podridão interior sem fim que inspirou a criação do partido-seita.

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