Monthly archive for novembro 2007

Cartas a um amigo americano – I

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de novembro 2007

Quando você esteve no Brasil trinta anos atrás, o panorama de miséria, atraso, opressão e taxas altíssimas de mortalidade infantil por desnutrição parecia ser o resultado inevitável de um regime político dominado por oligarcas rurais corruptos e de uma economia agrícola latifundiária e monoculturista.

A reforma agrária, com distribuição de terras e ajuda estatal aos pequenos proprietários, parecia ser o remédio mais adequado para a situação desesperadora de milhões de brasileiros, mas os senhores do poder opunham à sua aplicação uma resistência obstinada, através do Congresso e da mídia.

Nos grupos políticos, intelectuais e militares livres de compromissos com os oligarcas, não havia muita divergência nem quanto ao diagnóstico, nem quanto à terapêutica. A necessidade da reforma agrária era admitida pelo consenso geral, só restando saber quem iria promovê-la, a esquerda ou a direita. Esta última, subindo ao poder em 1964, tomou logo a dianteira, promulgando o Estatuto da Terra e fundando em 1970 o Instituto nacional de Colonização e Reforma Agrária , que é até hoje o centro de comando da reforma agrária no Brasil.

No mesmo ano, a oposição comunista criou o Movimento dos Sem-Terra, para lutar por um modelo alternativo de reforma. Enquanto o governo preferia distribuir terras sem dono, aproveitando a reforma como instrumento de colonização das imensas áreas desocupadas do país, os comunistas preferiam invadir e ocupar as fazendas dos oligarcas, dando ao empreendimento o teor de luta de classes.

De início, o pretexto para fazer isso foi que se tratava de terras improdutivas, mas logo a distinção se tornou puramente acadêmica, pois fazendas altamente produtivas – algumas consideradas modelares pelos padrões da FAO – passaram a ser também invadidas. Invadidas, queimadas e totalmente destruídas. Isso mostrava claramente que o objetivo do MST não era a produção agrícola, mas sim a ocupação de espaços estratégicos que lhe dessem o controle sobre o sistema rodoviário, como acabou de fato acontecendo.

Outra diferença é que o modelo governamental privilegiava a exportação, enquanto os comunistas chamavam isso de concessão ao imperialismo e diziam preferir o mercado interno, embora jamais explicassem como abasteceriam o mercado interno (ou qualquer outro) queimando os meios de produção.

Antes, porém, que a distribuição de terras, seja pelo modelo governamental, seja pela via comunista, pudesse obter qualquer resultado economicamente sensível, sobreveio na década de 80 uma sucessão de fatos extraordinários que modificaram todo o quadro. No centro-oeste do Brasil há uma imensa extensão de terras que são as mais férteis do País. Uma parcela significativa dessa área foi ocupada pelo MST, cujos militantes, embora subsidiados pelo governo, não conseguiram — é claro — administrá-la, passando então a vender suas propriedades. Estas foram compradas, em parte, pelos antigos oligarcas, mas sobretudo por pequenos proprietários do Sul, que assim se tornaram grandes proprietários no centro-oeste.

Usando técnicas agrícolas aprimoradas, eles conseguiram em poucos anos
aumentar de tal modo a produção agrícola das grandes fazendas, que o preço dos alimentos básicos se tornou muito barato e o problema da fome praticamente desapareceu da cena brasileira.

Decerto, o candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva venceu as eleições de 2002 e 2004 anunciando um programa chamado Fome Zero, voltado aos “cinqüenta milhões de brasileiros que passam fome”, mas, após um dos comícios em que voltava a esse assunto, foi filmado declarando a seus assessores, na intimidade, que esse número era pura mentira.

E era mesmo. No Brasil um frango custa um dólar, um litro de leite meio dólar, o quilo de carne bovina dois dólares e meio, uma baguette cinqüenta centavos de dólar. Com cinqüenta ou sessenta dólares por mês você come sanduíches de carne e toma leite todos os dias. As mortes infantis por desnutrição, que eram endêmicas uns anos atrás, tornaram-se praticamente inexistentes.

O dinheiro distribuído pelo Fome Zero pode ajudar as pessoas a comprar
sapatos ou a pagar a conta de luz, mas quase ninguém precisa dele para comprar comida. O MST, ricamente subsidiado pelo governo, continua clamando pela reforma agrária, mas é o maior latifundiário do País e sua produção é irrisória.

Cada vez mais o movimento se dedica a objetivos puramente político-estratégicos, invadindo e queimando fazendas produtivas ao longo das rodovias, para poder paralisar o tráfego quando bem entende e assim exigir mais e mais dinheiro do governo.

Sua militância compõe-se em grande parte de desempregados urbanos que perceberam as vantagens de transmutar-se em falsos agricultores sem-terra para poder viver de verbas estatais ou, melhor ainda, de receber de graça terras do Incra, vendê-las e entrar novamente na fila.

Não espanta que, nessas condições, o objetivo declarado do MST, hoje,
seja o de destruir precisamente a parte mais produtiva e próspera da agricultura nacional, o chamado agronegócio.

É preciso acabar com essa bête noire porque ela produz comida barata, alimenta o país e desmoraliza não só o MST como também, no fim das contas, a própria idéia de reforma agrária.

A segunda parte da carta, na próxima segunda.

Três lições inesquecíveis

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 15 de novembro de 2007

O espetáculo reconfortante da humilhação pública do sr. Hugo Chávez foi um dos mais instrutivos das últimas semanas. Com ele aprendemos três lições: sobre o que é democracia, sobre o que é um rei e sobre como funciona (ou não funciona) a cabeça de um revolucionário. A primeira delas devemos ao presidente José Luis Zapatero, a segunda a Juan Carlos de Bourbon, a terceira ao próprio sr. Chávez.

(1) Ao exigir o respeito devido ao seu antecessor José Maria Aznar, que ali fôra ofendido por um orador insolente, o sr. Zapatero mostrou a diferença – que nem sempre há, mas deveria haver — entre esquerda democrática e esquerda revolucionária. Esta última acredita que seus projetos sociais são tão sublimes que fazem dela “o primeiro escalão da espécie humana”, como dizia Che Guevara, condição que a autoriza a ignorar solenemente os deveres morais e legais que pesam sobre as pessoas comuns e a investe do direito de mentir, trapacear, roubar e matar ilimitadamente em nome das belezas imaginárias de um futuro hipotético. Já a esquerda democrática, consciente da fragilidade das idéias humanas, pode lutar pelos seus projetos com entusiasmo, mas sabe que eles valem menos do que a regra do jogo em que concorrem com os do adversário. Para o revolucionário, só o que importa é modificar a sociedade – se não a natureza humana — de maneira integral e irreversível, passando por cima de tudo e de todos. O democrata, de direita ou de esquerda, sabe que nenhuma mudança introduzida por um governo é tão inquestionavelmente boa que deva a priori estar vacinada contra a possibilidade de que o governo seguinte a reverta. Zapatero mostrou que, na ordem democrática, ninguém tem a última palavra.

(2) Um rei não é um governante. É o comandante vitalício das Forças Armadas, o garantidor da autoridade dos governos sucessivos, o guardião de uma ordem que permanece enquanto os políticos passam. Com sua inesperada intervenção, o rei Juan Carlos não entrou no mérito do assunto em debate. Apenas garantiu, contra a insolência de um monólogo ditatorial histérico, o direito do seu chefe de governo à palavra. Não faltarão na mídia brasileira desinformantes cínicos o bastante para tentar impingir ao leitor um relato invertido, fazendo de Chávez o indiozinho indefeso, oprimido pela prepotência do colonizador. Mas a seqüência das imagens mostra claramente que foi Chávez o primeiro a oprimir o interlocutor, só se detendo, atônito, ante a entrada em cena de uma personalidade mais forte. Se as palavras dessa personalidade foram exemplarmente abruptas e cortantes, isso só mostra que não é próprio da função real tagarelar, mas tapar a boca dos tagarelas que se arrogam o monopólio da fala.

(3) Quanto ao sr. Hugo Chávez, fazendo diante da reprimenda aquela expressão inconfundível de perplexidade e medo, mostrou algo que há anos venho dizendo: todos esses líderes revolucionários, a começar por Fidel Castro, pelos chefes das Farc e pela multidão dos nossos terroristas indenizados por seus próprios crimes, são indivíduos fracos, covardes, frouxos, bons para atirar em manifestantes desarmados ou para matar pelas costas adversários desprevenidos, mas incapazes de qualquer ato de genuína coragem, que por definição é sempre um ato solitário. Valentes diante dos holofotes ou fortalecidos pela proteção de uma rede internacional de cúmplices, tão logo se vêem abandonados à própria sorte só o que sabem fazer é implorar como Che Guevara: “Não me matem! Não me matem!” Mostra-me os teus heróis e eu te direi quem és.

Revolução capitalista na Bruzundanga

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de novembro 2007

Jamais duvidei da capacidade e idoneidade de Armínio Fraga, mas quando, com base em puros sinais da Bolsa de Valores, ele sai proclamando que “o Brasil vive uma revolução capitalista”, a palavra mais doce que me ocorre é: “Estupidez.” Não se avalia o curso das coisas num país só pela economia, muito menos por um de seus aspectos isolados. Como se pode falar de revolução capitalista quando um pool onipotente de partidos de esquerda já anuncia abertamente o ingresso próximo do país no socialismo, a propaganda comunista se tornou praticamente a única atividade cultural visível, as crianças são educadas desde a escola primária para odiar o capitalismo, a quase totalidade dos estudantes universitários sonha com um emprego público, as Farc já mandam e desmandam no nosso território, a atividade econômica privada se tornou uma concessão estatal altamente policiada, o socialismo light já é a forma extrema de conservadorismo admissível entre pessoas decentes e o único partido “de direita” que existe (aliás envergonhadíssimo desse rótulo) professa modelar-se pelo exemplo dos democratas americanos, tradicionalmente intervencionistas em economia, politicamente corretíssimos em educação, cultura e ecologia e há mais de trinta anos fanaticamente pró-comunistas em política externa?

É verdade que há pessoas e grupos ganhando dinheiro como nunca, mas isso só confirma o diagnóstico de Lênin sobre os burgueses: “Dêem-lhes uma gorjeta e eles nos entregarão alegremente o poder.” Quanto mais acreditam que seu enriquecimento prova prova a revolução capitalista, mais cegos se tornam diante do esquema socialista que vai dominando tudo à sua volta.

Já cheguei à conclusão de que neste país os economistas vivem num mundo paralelo, feito só de números, sem gente nem ação humana dentro, sem conspirações nem espionagem, sem grupos ativistas, sem revoluções nem guerras, sem movimentos de massa, sem mitos culturais, sem nada do que compõe a trama substantiva da História. E o pior é que o restante da nação, intoxicada de um espécie de marxismo capitalista, uma obsessão dinheirista como nunca se viu no mundo, os ouve como se fossem porta-vozes supremos do mundo dos fatos, primores de maturidade e realismo. O argumento final em todas as discussões é Nasdaq dixit .

O mais patético em tudo isso é que praticamente todas as grandes previsões políticas feitas na base dos índices econômicos, desde o início do século XX até agora, falharam miseravelmente.

Pelo critério bolsístico, a Rússia de Lênin, em 1920, estava em vias de tornar-se uma democracia capitalista. Pelo mesmo critério, o livre mercado estava morto e enterrado por volta de 1938: o triunfo do estatismo alemão era a última palavra no mundo da indústria. Em 1987, três anos antes do desmantelamento da URSS, o maior best seller nos meios empresariais era Ascensão e Queda das Grandes Potências , de Paul Kennedy, que, com base na comparação entre orçamentos nacionais e despesas militares, anunciava para a década seguinte a derrocada americana e o sucesso retumbante da economia soviética. Diante da queda da URSS, os tagarelas não se deram por achados: improvisaram explicações econômicas sapientíssimas e proclamaram que em poucos anos o movimento esquerdista no mundo seria coisa do passado. Uma década depois, a esquerda havia se tornado a única força política internacional significativa, e Jean-François Revel estava escrevendo La Grande Parade para explicar como isso podia ter acontecido contra todas as previsões bem-pensantes. No início da mesma década, os idiotas que haviam aplaudido o livro de Kennedy como o nec plus ultra da historiografia já estavam alardeando que uma injeção de investimentos capitalistas na China acabaria por dissolver o poder dos generais chineses. Os generais estão mais fortes e autoritários do que nunca.

Não, a economia não rege o curso dos fatos, ela nem é sequer o fator principal “em última instância”, como pretendia o charlataníssimo Karl Marx. A economia é apenas a condensação quantitativa e temporária de milhões de decisões humanas nascidas de fatores psicológicos, culturais, religiosos, militares e políticos. Nada é mais instável, mais sujeito a mudanças súbitas, do que a economia, enquanto os outros fatores se movem muito mais lentamente, com mais peso, sendo por isso mais determinantes. Prever o curso das coisas com base na economia é prever o movimento das camadas geológicas com base na direção do vento.

Previsões efetivas, realistas, nascem de um complexo raciocínio interdisciplinar, auxiliado por uma espécie de sexto sentido que se pode aprender, mas não ensinar. Digo isso com a autoridade de quem há duas décadas não erra uma. Mas digo-o também com a irritação de quem, há duas décadas, vê o erro crasso ser mais respeitado e aplaudido do que os acertos mais precisos, mais fundamentados, mais meticulosos.

As classes ditas superiores, neste país, já perderam há muito tempo aquele senso natural da verdade, que nasce — e morre — com o instinto de sobrevivência.