Yearly archive for 2006

Jornalismo de ficção

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 30 de novembro de 2006

Sugestão ao leitor: abra a página www.vcrisis.com, ou então http://notalatina.blogspot.com/2006_11_26_notalatina_archive.html#116477160950154777, compare as fotos da manifestação pró-Chávez com as da passeata-monstro pró-Rosales e pergunte a si mesmo por que a mídia brasileira tem tanto horror aos fatos e tanta fé em institutos de pesquisa subsidiados pela estatal chavista PDVSA.

Nas últimas eleições legislativas, 75 por cento dos eleitores venezuelanos abstiveram-se de ir às urnas, em protesto contra as máquinas de votar controladas pelo governo. São esses que agora saem às ruas para mostrar que preferem Rosales. A diferença entre as duas passeatas é de aproximadamente um milhão de manifestantes a mais na dos antichavistas. Sem uniforme, sem lanche grátis, sem transporte fornecido pelo governo.

Em desespero, Chavez apelou ao mais patético dos recursos: acusou a oposição de tramar o assassinato do seu próprio líder no dia das eleições. É lindo. Os venezuelanos agüentam a ditadura por anos a fio e, quando aparece um candidato capaz de desafiá-la, não encontram nada melhor para fazer com ele do que estourar-lhe os miolos. Só mesmo o Chávez para ter uma idéia dessas, medindo o QI dos adversários pela sua própria estupidez, a moral deles pela sua própria sem-vergonhice. Está mais do que na cara que, se alguém quer matar Rosales, é o mesmo Chávez. Lançando preventivamente a culpa nos partidários da vítima, ele cola na própria testa o rótulo de suspeito número um.

Mas já não me espanta que a mídia brasileira passe longe de tantas obviedades.    Anos atrás, quando demostrei a absoluta impossibilidade física do crime que uma espetaculosa reportagem de Caco Barcelos atribuía às Forças Armadas (veja http://www.olavodecarvalho.org/semana/nditadores.htm), fiquei chocado ao ver a denúncia ostensivamente falsa ser laureada não com um, mas com dois prêmios jornalísticos. Eu ainda não havia compreendido que, no novo jornalismo que se praticava no Brasil desde os anos 80, o desprezo pela diferença entre verdadeiro e falso não era um desvio da norma profissional: era a própria norma.  Só comecei a suspeitar disso quando, por força das pesquisas para o meu livro A Mente Revolucionária, me vi obrigado a prestar muito mais atenção do que desejaria às obras de Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Gianni Vattimo e outros autores “pós-modernos”. Então me dei conta, retroativamente, de que as idéias desses senhores haviam dominado tão amplamente o meio universitário brasileiro – principalmente as escolas de jornalismo e letras –, que a simples tentação de contrariá-las já era reprimida in limine por meio do escárnio, das rotulações humilhantes e das ameaças explícitas. Mas não é só por meio da pressão autoritária que os professores ativistas sufocam na massa estudantil a capacidade de pensar. O conteúdo mesmo da mensagem pós-moderna é repressivo e paralisante. Negando a verdade, o conhecimento, o significado, a razão e por fim a própria existência do sujeito cognoscente, o pós-modernismo cria um vácuo mental no qual a única referência, o único valor, a única autoridade que resta é ele próprio: a vontade de poder do grupo de intelectuais iluminados. A ela os jovens se rendem com devoção servil e cega, jurando, paradoxalmente, que com isso se elevam ao mais alto cume da rebeldia, da independência e do “pensamento crítico”.

Faça o leitor uma experiência: tente apelar ao conceito de “verdade” numa discussão com estudantes de comunicações, de letras, de ciências sociais, de filosofia. Será objeto de chacota. Em seguida, raciocine: que confiabilidade podem ter jornais, revistas e programas de TV escritos por gente que despreza a idéia mesma de veracidade objetiva e, seguindo os gurus pós-modernos, só acredita na “vontade de poder”, na eficácia da ficção ideologicamente útil?

É claro que ainda existem, nas redações, profissionais imunes a essa influência corruptora. Mas seu número diminui dia a dia.

O sucesso do fracasso

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de novembro

Todos os “movimentos sociais” atuantes no Brasil, sem exceção, bem como as entidades que os representam e as leis baseadas nas suas reivindicações, nasceram da seguinte maneira:

1. Com dez, vinte, trinta anos de antecedência, os intelectuais esquerdistas de maior peso discutem e elaboram os conceitos e a linguagem das novas idéias destinadas a revigorar e ampliar o movimento revolucionário mundial.

2. Em seguida essas propostas passam à alçada das grandes fundações bilionárias e organismos internacionais, onde o segundo escalão intelectual – técnicos, planejadores sociais, publicitários, ativistas — lhes dá o formato operacional para transmutá-las em propostas concretas.

3. Essas propostas são então espalhadas pelo mundo por meio de uma infinidade de livros, artigos, conferências, filmes, espetáculos de teatro, sempre subsidiados pelas mesmas fontes, mas apresentados como iniciativas independentes, de modo a dar a impressão de que a mudança planejada provém de uma fatalidade histórica impessoal e não de uma ação organizada. Ao mesmo tempo, desencadeia-se um conjunto de operações preventivas destinadas a neutralizar, reprimir e, se necessário, criminalizar toda resistência.

4. Só então as propostas chegam aos países do Terceiro Mundo, por meio de ONGs e agentes pagos que as inoculam primeiro nos círculos de intelectuais mais ativos, que as retransmitem aos estudantes e à mídia, não raro apresentando-as como suas criações pessoais e originalíssimas, de modo que a multidão dos aderentes não tenha a mais mínima idéia da existência de um empreendimento internacional organizado por trás dos efeitos políticos que se seguem inexoravelmente.

5. A última etapa é a produção desses efeitos, por meio dos agentes políticos – militância organizada, agentes de influência, legisladores – que transformam as propostas em leis e instituições.

Na última etapa, as origens intelectuais das propostas, bem como sua base internacional de sustentação financeira e organizacional, já se tornaram praticamente invisíveis para a população em geral, de modo que toda a discussão a respeito, destinada a fazer com que a adoção das novas medidas pareça surgir do fluxo normal e espontâneo da vida democrática, se atenha às definições nominais e aos aspectos mais periféricos das questões respectivas, sem possibilidade de examinar seja o esquema de poder que articulou a seu belprazer a situação de debate, seja as implicações históricas de longo prazo que advirão das transformações pretendidas. Quando essas conseqüências se revelam catastróficas, a culpa pelo erro que as produziu já está tão disseminada pela sociedade que toda tentativa de rastrear e responsabilizar os autores das propostas iniciais, caso ainda ocorra a alguém a tentação de empreendê-la, começa a parecer rebuscada e artificiosa como uma “teoria da conspiração”.

A primeira condição para a existência de um movimento conservador ou liberal é a formação de equipes de estudiosos qualificados para fazer esse rastreamento e expor aos olhos da multidão o processo inteiro da “transformação social”, para que ela perca seu prestígio místico de fatalidade histórica ou vontade divina e possa ser discutida às claras como qualquer outro projeto de poder.

Infelizmente, as forças econômico-sociais cuja sobrevivência a longo prazo depende do sucesso de um movimento liberal-conservador – principalmente a classe empresarial que é a concorrente número um dos planejadores e burocratas iluminados – têm um horizonte de visão histórica muito restrito e dificilmente compreendem a necessidade de uma estratégia de longo prazo. Concentram-se na defesa dos seus interesses imediatos reais ou imaginários e, sem perceber, acabam colaborando com os planos mais vastos e gerais da esquerda, seja por meio de concessões conscientes que lhes parecem muito espertas na hora, seja por meio de resistências pontuais arbitrárias e inconexas que sempre podem ser absorvidas e neutralizadas no quadro maior da estratégia esquerdista, seja por meio da adaptação passiva, lenta e quase imperceptível à linguagem e à cosmovisão de seus inimigos.

O domínio do tempo histórico das transformações político-sociais tornou-se monopólio da elite esquerdista internacional. O mero fracasso econômico das propostas socialistas não diminui em nada o poder hipnótico que exercem sobre a multidão nem o controle hegemônico da esquerda sobre o processo histórico, porque esse fracasso é apenas um fato, e os fatos não se transformam por si em elementos de persuasão quando não integrados como símbolos num universo imaginário, isto é, quando não trabalhados dentro de um plano cultural abrangente e de longo prazo, precisamente o que falta por completo às forças liberal-conservadoras.

O próprio preconceito economicista que se apossou dessas forças, induzindo-as a esperar que a fraqueza econômica do socialismo se transmute automaticamente em fracasso político-cultural do movimento esquerdista, já mostra o quanto o imaginário liberal-conservador foi infectado e moldado pela cosmovisão esquerdista, hoje “onipresente e invisível” como a desejava Antonio Gramsci.

Desse preconceito, em simbiose com o imediatismo político, nasce o profundo desinteresse que os liberais e conservadores têm pelo debate interno de idéias na esquerda. Como o conteúdo desse debate lhes parece falso e alucinatório e por isso supremamente tedioso, não percebem que por trás dessa falsidade e alucinação há um método e uma estratégia. Nem muito menos que a falsidade louca de uma idéia jamais foi obstáculo ao seu sucesso político. Enquanto os liberais e conservadores discutem economia, criando esquemas saudáveis e racionais que jamais serão levados à prática, os esquerdistas, a salvo de qualquer fiscalização crítica da parte de seus adversários, inventam as mentiras e alucinações com que dominarão a consciência das multidões e conduzirão o processo histórico para onde bem entendam, com a facilidade com que um menino-pastor puxa um búfalo de uma tonelada pela argola do nariz.

Vou dar aqui um único exemplo de doutrina alucinatória que jamais vi despertar o interesse dos liberais e conservadores brasileiros e que por isso mesmo consegue praticamente dominar o ambiente universitário, cultural e midiático nacional, influenciando o curso dos acontecimentos e impondo derrotas humilhantes à racionalidade econômica liberal-conservadora.

Refiro-me à escola “desconstrucionista” de Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Paul de Man, Gianni Vattimo e outros, que torna inviável toda idéia de veracidade objetiva e instaura em seu lugar o primado da ficção militante.

Como em artigos vindouros pretendo abordar aqui vários fenômenos da política brasileira que jamais teriam podido produzir-se exceto num ambiente intelectual dominado por essa escola, a utilidade essencial de conhecê-la se tornará mais evidente nas próximas semanas.

Usei o termo “escola”, mas os próprios desconstrucionistas o rejeitam. Também não aceitam que o desconstrucionismo seja definido como uma filosofia, um método de interpretação, um projeto acadêmico ou qualquer outra coisa. Não aceitam definição nenhuma, o que já coloca o recém-chegado na obrigação de escolher entre embarcar às cegas na aventura sem nome ou, ficando de fora, não poder criticá-la sem ser acusado de incompreensão leiga. À entrada do templo desconstrucionista, portanto, um cartaz em letras de fogo já anuncia: “Ame-o ou deixe-o.” Mas deixá-lo significa excluir-se a si próprio da comunidade acadêmica e ser considerado um ignorante ou reacionário, um escravo do universo lingüístico pré-desconstrucionista e, portanto, um virtual objeto de desconstrução. Não há terceira alternativa entre desconstruir e ser desconstruído – e esta última hipótese não significa apenas ser objeto de análise corrosiva, mas de destruição social e profissional.

A desconstrução parte da premissa lingüística de Ferdinand de Saussure de que a língua é um sistema no qual o sentido de cada palavra é a diferença entre ela e todas as outras. O sacerdote supremo do desconstrucionismo, Jacques Derrida, joga essa premissa contra as pretensões científicas da própria lingüística, ao concluir daí que, se a língua é um sistema de diferenças entre signos, ela não tem qualquer referência a um “significado” externo. Tudo o que o ser humano diz, escreve ou pensa é apenas a exploração das possibilidades internas do sistema. Não tem nada a ver com “realidade”, “fatos” etc. O universo inteiro ao alcance do pensamento humano é constituído de “textos” ou “discursos”, mas, como não há nenhuma realidade externa pela qual esses discursos possam ser aferidos, não tem sentido falar de discursos “verdadeiros” ou “falsos”. Não existe representação da realidade. Todo discurso é livre invenção de significados.

Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido nietzscheano, afirmando que, se o dircurso não é representação da realidade, é expressão da “vontade de poder”. Mas isso não quer dizer que por trás do discurso exista um “eu” manifestando sua vontade de poder. A idéia de um eu estável e autoconsciente é ela própria uma representação da realidade. Como nenhuma representação da realidade pode funcionar, o eu também não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu”. Se a língua estava totalmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o desconstrucionista vai agora separá-la do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera “différence” a “différance”, com “a”, termo criado por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como autor do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto assunto do discurso. Em português ele não precisaria inventar esse trocadilho medonho, pois aí existe a palavra “diferição”, sinônima de “adiamento”, que, por aquela mistura de pedantismo e ignorância, típica do meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a usar, preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de uma nuance sutilíssima. Qualquer que seja o caso, Derrida está falando simplesmente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a si mesmo. Separado do objeto pela circularidade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela diferição, ou, se preferem, “différance” (como diria Dirty Harry: Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o que pensar, será sempre uma ausência falando de outra ausência.

Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe, só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu” e outra ficção chamada “objeto”. O motivo que produz a necessidade de criar essa ficção é o desejo de escapar da morte, da aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a “realidade”. Portanto a função de todos os discursos é negar a realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste o poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João, VIII:32) dizia que a liberdade nasce do conhecimento da verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em geral, a liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com isso, o próprio poder.

No início alguns marxistas ficaram alarmados com a nova filosofia, que, ao negar a realidade, punha em xeque toda pretensão de conhecer as leis objetivas do processo histórico. Mas Derrida logo conseguiu acalmá-los, mostrando que, se o desconstrucionismo era ruim para a teoria marxista, era bom para o movimento revolucionário, dando-lhe não só os meios de corroer toda a cultura ocidental por meio da negação do significado em geral, mas também de afirmar o seu próprio poder ilimitadamente: livre das coerções da realidade objetiva, imune portanto a qualquer cobrança na esfera dos argumentos racionais, ele poderia impor sua vontade por todos os meios ficcionais possíveis, enquanto seus adversários, travados por escrúpulos de realidade e lógica, observariam inermes a sua ascensão irresistível.

Todo o empreendimento desconstrucionista é, de fato, uma resposta prática ao apelo formulado pelo marxista húngaro Georg Lukacs, ao perceber que o grande obstáculo ao comunismo não era o poder econômico da burguesia, mas dois milênios de civilização judaico-cristã. “Quem nos livrará da civilização ocidental?”, perguntava angustiado Lukacs. Quem logo se apresentou como primeirão da fila foi o nazista Martin Heidegger. Destruição – Destruktion – é a palavra-chave de tudo o que ele fez na vida: desde escrever e depois desescrever Ser e Tempo até aplaudir a ascensão do Führer e recusar-se a esclarecer o assunto depois da II Guerra, deixando seus fãs numa dúvida perturbadora que dava à sua filosofia ainda mais sex appeal. A essência da filosofia de Martin Heidegger consiste em abolir o Logos, o verbo divino que faz a ponte entre o pensamento humano e a realidade externa, e colocar em seu lugar a “vontade de poder” do Führer. Heidegger foi o primeiro herói da guerra contra o “logocentrismo”. A convergência entre seus esforços filosóficos e os objetivos de Georg Lukacs foi o pacto Ribbentropp-Molotov da filosofia. Mas Heidegger, afinal, não criou como substitutivo para a civilização judaico-cristã nada além da filosofia de Martin Heidegger, que só serve para quem a entende. Derrida et caterva transmutaram essa filosofia num projeto acadêmico indefinidamente subsidiável e num movimento político do qual milhões podem participar sem entender coisa nenhuma do que estão fazendo. Tinha de ser mesmo um sucesso triunfal.

Ainda mais triunfal foi essa ascensão no Brasil, onde o temor reverencial à moda acadêmica francesa, o prestígio sacral do discurso incompreensível e a síntese de pedantismo e ignorância que constitui a forma mentis inconfundível da nossa classe universitária erigiram o desconstrucionismo num culto fanático que não apenas repele contestações mas nem mesmo admite a existência delas.

Um traço peculiar do desconstrucionismo, que no Brasil foi acentuado até suas últimas conseqüências, é que, ao negar a existência da verdade, ele não abdica de atacar a “mentira”. Quando ele o faz perante um público que desconhece a nuance específica que o termo tem para um desconstrucionista, a platéia acredita que ele está defendendo a “verdade”. Mas, no círculo interno, sabe-se que não existe verdade. “Mentira”, pois, é apenas aquilo que se opõe à ficção preferida do grupo desconstrucionista, à sua “vontade de poder”. Inversa e complementarmente, o termo “verdade”, ao ser usado pelo desconstrucionista perante os leigos, significará para estes uma representação adequada da realidade comprovável, mas, entre os iniciados, sabe-se que isto não existe e que o emprego do termo se destina apenas a explorar as ilusões do público para induzi-lo a submeter-se às ilusões e desejos do grupo ativista. Nesse sentido, pode-se e deve-se estigmatizar como “mentira” os fatos mais amplamente comprovados e impor como “verdade” qualquer mentirinha boba conscientemente inventada para vitaminar a “vontade de poder” do movimento.

Objetivamente falando, o valor inteiro do projeto desconstrucionista depende da premissa saussuriana de que o sentido de uma palavra é apenas a diferença entre ela e todas as outras. Essa premissa é falsa. Suponham a frase: “Jacques Derrida morreu.” A diferença entre Jacques Derrida e todos os outros seres dotados de nomes humanos é a mesma quer ele esteja vivo ou morto. A diferença entre morrer e estar vivo, por sua vez, é a mesma quer você esteja vivo ou morto. Mas, se Jacques Derrida morreu, a diferença entre ele e todos os outros continua intacta, enquanto ele, o indivíduo Jacques Derrida, não será mais visto por aí dando palestras e encantando milhões de idiotas. Ou a expressão “Jacques Derrida” significa algo mais do que a diferença entre ela e todas as outras, ou tabnto faz Jacques Derrida estar morto ou vivo. Do mesmo modo, uma frase como “Não há mais comida” é a mesma – e suas diferenças em relação a todas as outras são as mesmas — quer você a diga como puro exemplo verbal ou como expressão de um estado de fato. A diferença neste último caso está na presença ou ausência física de comida, que não é a mesma coisa que a “ausência do objeto” na mera formulação saussuriana do significado como diferença entre uma frase e todas as demais. Esta diferença é a mesma com comida ou sem comida. A falta de comida não é bem isso.

Reparando em detalhes como esse, o próprio Jacques Derrida foi obrigado a moderar as pretensões do seu método, reconhecendo a existência de “indesconstruíveis” e, no fim, admitindo que entre eles estava – que raiva, pô! – o próprioLogos. Desconstrua você o que desconstruir, estará sempre, pelo simples fato de pensar e falar, dentro de um quadro de referências balizado pelo Verbo Divino ou por seus reflexos na tradição metafísica. No fim das contas, a Destruktion, como o projeto nazista, pode destruir muitas coisas em torno, mas se destrói a si mesma – e àqueles que embarcaram na sua proposta – em escala infinitamente maior. Proclamando que a liberdade consiste em negar a verdade, o desconstrucionista só exerce sua liberdade de viver da ficção e sentir um gostinho de poder até o momento em que a morte substitui todas as ficções por uma verdade “indesconstruível” e a vontade de poder pela impotência definitiva dos cadáveres. Expressão modernizada da revolta gnóstica contra a estrutura da realidade, o projeto desconstrucionista está destinado ao fracasso, mas o fracasso cognitivo pode ser um sucesso político-social, na medida em que arraste na sua voragem milhões de idiotas hipnotizados pela atração do abismo.

Mais um advogado do marquês

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 23 de novembro

O marquês de Sader tem um blog em cuja seção de comentários publica democraticamente todos os elogios que recebe. No último dia 18, logo de manhãzinha, postei lá a seguinte mensagem:

Desculpe-me por imiscuir a minha nefanda pessoa em ambiente tão seleto, mas tenho duas perguntinhas: (1) Você imputou ou não ao senador Bornhausen a prática de crime inafiançável? (2) Imputação de crime é mera opinião ou é denúncia de um fato? Peço que você responda com a brevidade direta que as perguntas exigem.”

Até o momento, a mensagem não foi respondida, aliás nem publicada. Claro: o marquês não é besta de querer que o núcleo mesmo da questão que o envolve venha à luz, quando há tantos subterfúgios interessantes para alimentar uma desconversa sem fim.

Mas a prova de que minhas perguntinhas eram decisivas vêm dos próprios argumentos da sua defesa que, descontados os floreios ideológicos e as lacrimejações publicitárias, são dois:

1) O marquês está sendo punido por um delito de opinião.

2) O senador Bornhausen é racista mesmo, portanto a acusação que o marquês lhe lançou traduz uma verdade de fato.

Como esses argumentos se contradizem um ao outro, julguei-me no dever de pedir ao marquês que esclarecesse a dúvida em torno da qual gira toda controvérsia judicial possível quanto à sua culpa ou inocência. Mas para que esclarecê-la, quando é muito mais lindo jogar tinta na água para que ninguém enxergue nada com clareza?

O promotor Renato Eugênio de Freitas Peres, no recurso que apresentou contra a sentença do juiz Rodrigo César Muller Valente, faz isso com a potência de um exército de polvos, compondo uma petição-camuflagem onde não se encontra uma só afirmação unívoca entre batalhões de indiretas capciosas.

Ele argumenta, por exemplo, que jamais viu uma condenação por crime contra a honra – mas não esclarece se com isso quer dizer que foi inépcia judicial, que esses crimes não existem ou que eles não devem ser punidos.

Ele alega também que juízes não lêem petições, mas não esclarece se está se referindo ao juiz que condenou o marquês, ao juiz que vai julgar o seu recurso ou aos juízes em geral. Também não diz se espera que a sua petição desfrute da atenção legente que os juízes sonegam às demais ou se aposta na sorte de que ela seja deferida sem leitura.

Não querendo insistir abertamente na alegação de que Bornhausen é mesmo racista, mas não querendo prescindir dela por completo, ele transmuta-a de afirmação explícita em sugestão indireta, alegando que o senador “efetivamente tem o hábito de utilizar o conceito de raça”. A ambigüidade é aí levada ao extremo do confusionismo, pois, de um lado, o promotor não cita um único exemplo extra de utilização da palavra “raça” pelo senador, donde se conclui que ato habitual, para S. Excia,, é o ato praticado uma vez só. De outro lado, faz de conta que não sabe que utilizar uma palavra em sentido impróprio ou figurado é precisamente o contrário de usar o conceito correspondente. Chamar de jumento um animal que caiba na classe dos jumentos é usar o conceito de jumento. Chamar de jumento o marquês de Sader ou o promotor Freitas é usar a palavra totalmente fora do conceito que ela nomeia, pois nada, na definição de jumento, admite a inclusão de animais de outra espécie que só se jumentalizam por vontade própria. Deste modo, ao atribuir ao senador um hábito, o promotor não apenas se absteve de provar a reiteração de atos necessária para configurar um hábito, mas se absteve de provar até mesmo um único ato, solitário e isolado que fosse. Está claro, portanto, que o único motivo que ele pode ter tido para atribuir ao senador o uso habitual do conceito de raça é seu desejo de carimbar o senador como racista sem ter de afirmar explicitamente que ele é racista. Aí fica difícil distinguir se o promotor é advogado do marquês ou se é o próprio marquês.

Diz ainda o referido que os demais insultos lançados contra o senador, como “repulsivo, fascista, mente suja, abjeto, mesquinho, desprezível” – ele omitiu gentilmente “assassino de trabalhadores” — são apenas expressões de “um debate acalorado”, não cabendo pois ação judicial para puni-los.

Diante do exposto, e data vênia de S. Excia., deixo aqui registrada a minha acaloradíssima opinião de que o promotor Renato Eugênio de Freitas Peres é um chicaneiro, malicioso, mentiroso, trapaceiro na argumentação e fofoqueiro de cortiço na escala de valores morais, além de jumento em sentido arquifigurado, que em nada depõe contra a espécie jumenta.

Quanto ao marquês, professor universitário que escreve “Getulho” e “opróbio” e usa da solidariedade ideológica como gazua para tirar vantagem ilícita de seus companheiros, o gajo é tão ruim que não pode ser qualificado. Já o xinguei de tudo quanto é nome, e sinto que ainda não consegui expressar a quintessência da sua personalidade excrementícia. Ele é uma espécie de cocô metafísico, transcendental, inefável e inexprimível. Nem todos os demônios do inferno defecando juntos poderiam produzi-lo. Talvez só ele próprio, em agonias intestinais dantescas, conseguisse se gerar a si mesmo por propulsão gasosa, invertendo-se todo na saída do jato pelo orifício anal e, com as tripas no lugar do cérebro, julgasse por isso ver o mundo às avessas.

Opinião por opinião, deixo também registrada aqui a minha sobre o tal de minhocarta. Se ele dissesse ou publicasse de um filho meu o que publicou e disse do filho do Diogo Mainardi, eu só não quebraria a cabeça do desgraçado a pauladas caso não conseguisse distingui-la do rabo. Neste último caso, que pelo que li da sua autoria é o mais provável, meter-lhe-ia um rojão aceso com o cano para dentro e daria o problema por resolvido sem maiores discussões. Mesmo no auge da fúria, sou um sujeito educadíssimo.

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