Yearly archive for 2002

Duelo Impossível

Por José Nivaldo Cordeiro


23 de Maio de 2002

A imprensa nos informa hoje que mais um oficial foi condenado pelos acontecidos de Eldorado dos Carajás. Volto ao tema, sem temer ser repetitivo, não por esse fato, que não mais é surpresa: a injustiça derivada daquele triste episódio passou a ser rotineira. Mas, sim, por causa de um dos argumentos utilizados pela acusação contra a ação dos policiais militares.A dúvida em debate diante do Júri era saber quem atirou primeiro. A simples colocação dessa questão já mostra a quantas anda o relativismo do nosso sistema jurídico e, por conseqüência, do sistema de Justiça. Uma ação como aquela, de restabelecimento da ordem pública e de desobstrução das vias de circulação, pressupunha o uso dos instrumentos normais nesse caso, como as bombas de gás lacrimogênio e as de efeito moral. O filme revela que policiais empunhando lançadores estavam na linha de frente da operação.

Pessoas normais temeriam a ação da PM e de seus instrumentos de trabalho e provavelmente entrariam em fuga, por medo natural. O que se viu é que aquelas não eram pessoas normais: à ação da PM responderam com inesperado ataque, pondo a correr os policias que despejavam as referidas bombas (não letais, como é do conhecimento geral). Do desfecho todos sabemos.

Ao se formular uma questão desse tipo é como se alguém pudesse cogitar a hipótese de a polícia ter que esperar ser atacada a tiros para poder cumprir o seu papel, o que é um absurdo. Ela estava ali para impor a ordem, não para travar um duelo fictício com os invasores. A polícia não pode ser derrotada. E a reação anormal à ação típica da PM apenas reforça a suspeita de um treinamento prévio – guerrilheiro – daquelas pessoas. Só alguém treinado para reagir daquela forma temerária.

É claro que era um duelo impossível. As Forças da Ordem tinham que se impor e os perturbadores da ordem tinham que ceder. Algo diferente disso seria supor que um poder alternativo imperasse naquelas plagas.

Nunca houve um duelo e a causa real do lastimável desenlace foi a resistência desmedida e imprevisível dos que pereceram.

Fantamasgoria verbal

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 23 de maio de 2002

Há uma diferença substancial entre aderir a uma posição política, julgando os fatos com base nela, e tomar conhecimento de fatos que, por sua força intrínseca, e mesmo contra a nossa vontade, acabam por mudar nossa opinião política.
Três obstáculos tornam difícil aos brasileiros de hoje perceber essa diferença na prática, se não mesmo apreendê-la conceptualmente.

O primeiro é o tradicional verbalismo nacional. Verbalismo não é amor às palavras. Também não é falar muito. É um mau hábito de percepção verbal, que faz o sujeito reagir emocionalmente à simples menção de certas palavras, sem esperar para obter uma adequada representação imaginativa das coisas e fatos mencionados.

O segundo obstáculo é o analfabetismo funcional, endêmico nas nossas classes superiores. Analfabetismo funcional é impossibilidade de produzir a representação imaginativa da coisa lida ou ouvida. É um upgrade do verbalismo. É verbalismo compulsório.

O terceiro é o adestramento ideológico marxista, que encobre e protege sob a capa de um discurso automatizado os dois vícios acima, tornando-os inacessíveis às mais engenhosas terapêuticas.

O verbalista salta direto do estímulo verbal à reação emotiva, sem passar pelo trabalho de imaginação e muito menos pela triagem crítica das representações imaginativas. Daí sua tendência a comover-se ante simples jogos vocabulares que, bem examinados, não significam nada e não podem suscitar emoção nenhuma. Todo o sucesso do movimento concretista em poesia deveu-se a esse tipo de leitores.

O analfabeto funcional não pode alcançar a representação imaginativa: ou permanece insensível à mensagem verbal ou tem de projetar sobre ela algum conteúdo da memória, escolhido ao acaso das associações de idéias e embebido de conotações valorativas deslocadas do assunto.

O sujeito ideologicamente adestrado já traz na memória todo um repertório de conteúdos prontos para ser projetados sobre qualquer mensagem, o que o dispensa e protege do contato intelectual com o interlocutor e lhe dá ao mesmo tempo o sentimento tranqüilizante de estar compreendendo tudo da situação. (Há dois tipos de adestrados ideológicos: os assumidos, cândidos ou antigos, que crêem piamente na ideologia salvadora e não hesitam em oferecê-la como resposta a todos os problemas, e os enrustidos, maliciosos ou modernos, que se dizem livres de preconceito ideológico, mas, não tendo nenhum outro sistema de referências pelo qual orientar-se, continuam julgando tudo segundo os cânones da ideologia que pensam ter abandonado.)

No fundo, essas três doenças são a mesma, tomada em três níveis de gravidade crescente. O sujeito começa verbalista por herança cultural doméstica. Passa a analfabeto funcional pela consolidação do vício tornado irreversível. Por fim, ao receber instrução universitária, reveste-se aí daquela carapaça verbal que, consolidando e legitimando os dois vícios anteriores sob o rótulo de cultura superior, o tornará para sempre imune ao impacto de novas mensagens verbais. Só na educação superior o desenvolvimento da estupidez lingüística alcançará aquele patamar de estabilidade que permitirá ao sujeito não compreender nada e julgar tudo. O verbalista e o analfabeto funcional ainda têm uma fresta de insegurança, por onde pode entrar um raio de luz. A instrução universitária veda o buraco e encerra o sujeito numa escuridão perfeitamente segura.
Por isso são as pessoas instruídas as que mais têm dificuldade de atinar com a diferença que mencionei. Para essas, não há verdade e mentira, fato e ficção, lógica e nonsense. Há apenas “posições políticas” — a delas e a dos outros. Na verdade não há nem isso, porque uma opinião política própria é conhecida instantaneamente pelo sujeito no simples ato de inventá-la, ao passo que a alheia requer atenção, estudo e objetividade, inacessíveis por definição a essas criaturas. Então, para elas, só existe uma coisa: sua própria posição política, da qual a adversária não é senão a inversão projetiva, produto totalmente imaginário. Daí a facilidade com que enxergam a unidade de uma conspiração adversa por trás dos produtos mais díspares e heterogêneos da inventividade ideológica humana, compondo com eles o desenho de um inimigo impossível que é ao mesmo tempo liberal e conservador, saudosista da Idade Média e democrata burguês, católico e maçom, sionista e nazista. Que esse inimigo não possa existir no mundo real, pouco lhes importa: se deixassem de acreditar na existência dele, veriam que sua própria existência é fantasmal e ilusória.

O mal é o que sai da boca do intelectual de esquerda

Por Alceu Garcia


Maio de 2002

Conta Aristóteles que seu mestre Platão ocasionalmente interrompia as aulas que ministrava na Academia para questionar-se, e a seus alunos, se no tema desenvolvido eles estavam partindo dos primeiros princípios ou no caminho que se dirige a eles. No Brasil são poucos, mesmo nos mais sisudos centros acadêmicos, os que efetivamente se preocupam com essa investigação preliminar de máxima importância em qualquer campo do saber. Nos debates públicos ventilados na imprensa, então, nem se fala. Nesse universo marcado pelo falatório sofístico não só inexiste preocupação com princípios, como a própria linguagem encontra-se tão corrompida que é impossível sequer saber com um mínimo de clareza e precisão do que se está tratando nas discussões. E o maior problema é que a adulteração do sentido das palavras é deliberada, envolvendo um projeto de dominação ideológica no sentido marxista do termo, a falsa consciência, o véu de idéias forjadas por um grupo para, ocultando a realidade, explorar os demais com a anuência expressa ou tácita dos próprios explorados. Esse grupo é a classe letrada, a intelligentsia, obcecada pelo socialismo e imbuída do método gramsciano de reforma do senso comum para implementá-lo, como tem denunciado e fartamente provado o filósofo Olavo de Carvalho. A depravação da linguagem torna impossível identificar, isolar, compreender e enfrentar os problemas postos para a coletividade. Como discutir proveitosamente sobre algo que sequer sabemos o que é?O objetivo desse texto é contribuir modestamente para a difícil tarefa de remover a névoa pegajosa e traiçoeira que recobre certas palavras e expressões vertidas incessantemente na imprensa por intelectuais e políticos de “esquerda” (mas não apenas eles), de modo que os interessados de boa-fé possam ao menos tentar entender com alguma nitidez o que realmente está sendo afirmado e se as propostas de ação política reclamadas são compatíveis ou não com os fins (ocultos ou declarados) almejados.

“JUSTIÇA SOCIAL” – Justiça deriva do latim justitia, exprimindo conformidade com o Direito, não necessariamente o Direito Positivo, legislado, que pode ser, e frequentemente é, injusto (ex: pensão vitalícia de dez mil reais para ex-governadores), mas os princípios gerais derivados dos valores que formam a Ética de um determinado grupo, que antecedem e informam as leis objetivas e sua interpretação, consubstanciado no mister de dar a cada um aquilo que é seu, como diziam os juristas romanos. E cada indivíduo só é proprietário daquilo que produziu com o seu próprio trabalho ou que adquiriu contratualmente por meio de trocas voluntárias (compra e venda, locação, contrato de trabalho, doação, etc). Social vem de sociale, relativo à sociedade (do lat. societate), ou seja, uma coletividade humana. Ora, se justiça é dar a cada um o que é seu, infere-se necessariamente que a existência de mais de um indivíduo é sua condição sine qua non . Não havia necessidade de justiça para o solitário Crusoe em sua ilha deserta, antes do aparecimento do Man Friday. Tudo lhe pertencia. Assim, toda justiça é por definição social, um imperativo de convívio humano. O adjetivo “social” é, pois, redundante e dispensável. O mesmo obviamente ocorre com outras expressões, tais como “movimento social”, “política social”, “investimento social”, “questão social”, “direitos sociais”, “democracia social” e muitas outras. Quem se lembra do slogan da propaganda oficial do malsinado Governo Sarney? Era “Tudo pelo Social”, o cúmulo do estelionato semântico demagógico. Até o erudito e em geral lúcido J. G. Merquior embarcou nessa canoa furada com o seu “liberalismo social”. O economista e filósofo Friedrich Hayek, em seu clássico Law, Legislation and Liberty, deu-se ao trabalho de enumerar dezenas de termos adjetivados com o infalível “social”, que nada acrescentava de racional e esclarecedor aos respectivos substantivos.

Se o “social” nada significa de relevante, porque é tão usado? Porque o sentido oculto dessa palavra é “socialismo”, ou seja, a intervenção coletiva, política, estatal, na esfera de autonomia individual, mesmo e sobretudo aquela em que as pessoas não estão tomando dos outros o que não lhes pertence. Em outras palavras, “social”, nesse contexto, consiste em ações coercitivas por meios das quais aqueles que detém o Poder Político ordenam os comportamentos e dispõem do patrimônio dos indivíduos da forma que bem entendem, dando a cada um o que, segundo critérios inteiramente arbitrários, entendem que cada um merece. Vê-se que o “social” é mais do que tautológico em relação à justiça. É incompatível com ela. “Justiça social” é pura e simplesmente injustiça. E quem aceita esse conceito distorcido e contraditório como premissa para o debate, mesmo que não seja socialista, já admitiu a viabilidade prática e conferiu validade moral ao socialismo.

“POLÍTICA PÚBLICA” – Política origina-se do grego polis, cidade-estado, daí politiké, ciência dos negócios de Estado, ou seja dos negócios públicos, sendo que público tem raiz no latim publicu, relativo à coletividade, oficial, estatal. Ou seja, “política pública” é mais uma expressão vazia, pois se é política já é pública. Seu uso tem se disseminado a partir das principais estações difusoras do gramscismo – as universidades – sobretudo por soar bonito, vestindo um modelito novo e sedutor às velhas e já algo desgastadas “políticas sociais”, intervenções estatais indevidas no domínio particular para “resolver” problemas que desastradas “políticas sociais” anteriores causaram. “Política pública” é, assim, mais um eufemismo para – adivinhem? – socialismo.

“NEOLIBERALISMO” – Liberalismo é o nome de um conjunto de idéias e doutrinas que basicamente defendem a liberdade individual contra o Poder Político, formuladas por filósofos e economistas como John Locke, David Hume, Adam Smith, Herbert Spencer, Frédéric Bastiat e John Stuart Mill. A partir da segunda metade do século 19 o prestígio do liberalismo decaiu tão rapidamente quanto ascendeu a aceitação geral do socialismo entre os intelectuais e políticos, com sua ênfase na ação coletiva e estatal como meio de se alcançar a plena liberdade e dignidade do Homem. O liberalismo então extinguiu-se como doutrina politicamente eficaz, subsistindo apenas na obra de um punhado de estudiosos e publicistas isolados e espalhados pelo mundo, como Walter Lippmann, Wilhelm Ropke, Ludwig von Mises e Frank Knight.

Após a Segunda Guerra, contudo, diante do óbvio fracasso do socialismo, no atacado e no varejo, em cumprir suas mirabolantes promessas de abundância material e excelência moral, o pensamento liberal recuperou paulatinamente uma pequena parte de sua antiga influência graças aos esforços de Friedrich Hayek, Milton Friedman, Karl Popper, Peter Bauer, James Buchanan, Raymond Aron e outros pensadores eminentes. É isso o famoso neoliberalismo, que se traduz em continuação e aperfeiçoamento do antigo liberalismo. Na esfera política, o neoliberalismo só alcançou alguma expressão nos anos 80 do século passado, inspirando certas medidas, bastante limitadas, de alívio para a iniciativa individual na economia, tomadas pelos governos Thatcher e Reagan, tão claramente bem-sucedidas que logo foram imitadas por todo o mundo, inclusive em países comunistas como a China e o Vietnã. Vale frisar que o neoliberalismo ganhou força nos meios intelectuais combatendo os socialismos comunista e fabiano (ou social-democrata) com argumentos irrefutáveis, reforçados pela prova empírica inegável do fiasco universal do coletivismo, totalitário ou limitado, e só teve aplicação restrita no cenário político quando todas as formas de socialismo possíveis e imagináveis (comunismo, fascismo, nazismo, social-democracia etc) já tinham sido tentadas e rejeitadas.

Essa tímida ressurreição do liberalismo como doutrina intelectualmente respeitável e como alternativa política e econômica válida enfrentou uma formidável barragem de propaganda caluniosa movida pela esquerda culturalmente hegemônica. O neoliberalismo passou a ser inculpado por tudo de mau que acontecia pelo mundo, sobretudo em regiões em que absolutamente jamais houvera liberalismo ou neoliberalismo, como a África, continente dominado por regimes socialistas em variados graus. Após décadas de vulgarização e abuso, o termo “neoliberal” adquiriu uma conotação extremamente negativa -malgrado ninguém saiba ao certo o porquê -, comparável ao sentido odioso de palavras como “nazista” e fascista”. Acontece que nazista é a abreviação de nacional-socialista, assim como virulentamente nacionalista e socialista foi o fascismo. Dito de outro modo, o nazi-fascismo é irmão xifópago do socialismo dito de “esquerda”. O resultado dessa monumental campanha ideológica pode ser aferido pela simples análise do sentido comum dos termos “comunista” e “socialista”, usualmente significando uma doutrina política intrinsecamente benevolente e humanista, cujos efeitos bárbaros são debitados exclusivamente à perversões acidentais identificadas com o termo “stalinismo”. Muita gente ainda se diz comunista, e quase todo mundo se considera socialista (ou de “esquerda”, que é a mesma coisa), com a maior naturalidade, embora regimes comunistas e socialistas tenham perpetrado as piores barbaridades da História em toda parte. Por outro lado, ninguém – ninguém mesmo! – ousa assumir-se publicamente como neoliberal. Ora, pode-se concordar ou discordar das idéias liberais (ou neoliberais), desde que se procure tomar conhecimento do que efetivamente são essas idéias, submetendo-as então à uma crítica racional. É absurdo tomar como reais idéias pela imagem caricatural dela que seus inimigos forjaram. Mas é exatamente isso que ocorre.

O economista Eugen von Bohm-Bawerk certa vez foi censurado por não intervir quando alguns alunos de seu seminário expunham teorias obviamente erradas e absurdas. Ele disse em resposta que nada era mais eficaz para se revelar o erro de um raciocínio do que permitir que fosse desenvolvido até suas últimas consequências lógicas. A humanidade parece ter seguido procedimento similar em relação ao socialismo, o qual contou com meios e tempo mais do que suficientes para provar suas proposições e falhou lamentavelmente, precisamente onde e como seus críticos previram que falharia. Será que já não sofremos o bastante para admitir que o socialismo é um erro trágico?

“DIREITOS HUMANOS” – O Direito, do latim directu, aquilo que deve ser reto e justo, é uma criação humana, e somente o Homem é sujeito de direito. Mesmo as pessoas jurídicas e patrimônios personalizados (fundações) são ficções jurídicas cuja criação e atuação no mundo concreto se materializam através da vontade e da ação humana. O risível “direito dos animais”, que aliás acaba de ganhar foro constitucional na Alemanha, não é gerado pelos marinbondos e papagaios, é claro, mas pelos homens. Sendo assim, é evidente que o Direito é sempre humano, constituindo esse adjetivo mera tautologia. O que esse conceito espúrio pretende de fato, enrolado em um falso manto humanitário, é conferir às pessoas – sobretudo pessoas enquadradas em certas classificações capciosas – “direitos” a coisas imateriais, como felicidade e amor, ou coisas materiais, como emprego, renda, habitação etc, que o Estado não pode dar, porque não possui, ou só pode dar a um quando tira de outro, fazendo uma caridade farsesca com o chapéu alheio, mediada por uma casta burocrática que reserva para si a parte do leão dos recursos “pilantrópicos” que amealha. “Direitos Humanos”, em síntese, é mais um exemplo de socialismo disfarçado com belas palavras, um pretexto polivalente para a múltipla intromissão estatal injusta na esfera de autonomia individual..

Muito mais clara e adequada é a denominação Direitos Inalienáveis inscrita pelos fundadores dos Estados Unidos no preâmbulo de sua Constituição, derivados da filosofia lockeana dos Direitos Naturais. Esses direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade (aos quais deve ser acrescentado o direito à propriedade legitimamente adquirida) são inalienáveis porque não se pode dispor deles sem deixar de ser Homem, bem como se caracterizam pela reciprocidade, isto é, ao direito de cada pessoa corresponde direito igual de todas as outras, e o dever geral de respeitá-los. Esses atributos de reciprocidade e universalidade são violados pelos chamados “direitos humanos”, vez que, por exemplo, ao “direito” de fulano a uma renda de mil reais mensais inevitavelmente corresponde o “dever” de sicrano, que ganha mais do que isso, de prover recursos para fulano, muito embora este não seja culpado pela pobreza daquele. Os “direitos humanos” são a cristalização da injustiça sistematizada, ou seja, dos “direitos desumanos”.

“DESIGUALDADE SOCIAL” – Novamente o adjetivo “social” é objetivamente inútil, porém politicamente malicioso. Para haver desiguais há naturalmente que haver mais de um ser humano, de maneira que “social” já está implícito no substantivo “desigualdade”. Nada é mais lacrimosamente denunciado pelo intelectual, com tom de ira santa, do que a desigualdade. Que esta existe é um fato incontestável, um dado da natureza.. As pessoas são mesmo desiguais, e o seriam mesmo que toda a humanidade fosse constituída de clones. Não há outra igualdade possível senão aquela diante da lei, fundada nos direitos inalienáveis, recíprocos e universais estudados acima. A intelligentsia, entretanto, discorda categoricamente. Há que haver igualdade material, dizem de modo bastante vago, e cabe ao Estado instaurá-la, comandado por eles mesmos ou por quem acate suas idéias. Como Thomas Solwell observou com sagacidade, os intelectuais de “esquerda” dividem a humanidade em três grupos: os desvalidos, os desalmados e os iluminados. Os primeiros, os pobres, são maltratados pelos segundos, os ricos, cabendo aos terceiros – os próprios intelectuais de “esquerda” – intervir munidos dos poderes coativos estatais para defender os bons dos maus e implantar a “justiça social” na Terra. A contradição insolúvel nesse discurso igualitário é que sua execução exige que um determinado grupo seja incumbido da tarefa de igualar os outros grupos, detendo para tanto poderes exclusivos, o que por si só inviabiliza a priori a igualdade. De resto, se os indivíduos são naturalmente desiguais e a igualdade material é impossível – até porque se fosse viável igualar a renda monetária de todos (e não é), seria impossível igualar a renda real, vez que, v.g., para quem vive no litoral é muito mais barato o lazer na praia do que para quem vive no interior – a doutrina igualitária é absolutamente inexequível, portanto absurda e, logo, intrinsecamente nefasta.

A eficácia desse discurso absurdo depende da associação implícita e falaciosa da desigualdade com a miséria, e também da estimulação sub-reptícia do sentimento da inveja. A falsidade do sofisma da miséria pode ser facilmente exposta em termos econômicos. A miséria é causada basicamente pela baixa produtividade do trabalho, que deriva de reduzidos padrões de capital investido per capita em determinada comunidade. A solução, assim, passa necessariamente pela acumulação de capital de modo a que o trabalho se torne mais produtivo, elevando ipso facto o nível de consumo das profissões marginais (aquelas cuja remuneração é mais baixa) para um patamar acima da mera subsistência. A teoria e a experiência provam que somente a economia de mercado, ou seja o capitalismo, é capaz de gerar os requisitos necessários e suficientes para se extinguir rapidamente a miséria. Como, porém, o capitalismo é rejeitado veementemente pelos intelectuais de esquerda, conclui-se que Joaozinho Trinta estava certíssimo quando afirmou que esses sujeitos adoram a miséria. Miséria para os outros, bem entendido. A invocação da inveja, além de imoral, é contraproducente, posto que a ênfase na expropriação dos que têm mais em prol dos que têm menos desencoraja o trabalho e incentiva o parasitismo. No final do processo, a inveja resulta na miséria geral, pois quem vai querer produzir para ser roubado? E se ninguém produz, o que o parasita vai parasitar?

“GLOBALIZAÇÃO” – Quando o homo sapiens emigrou há milênios de sua África natal para todos os recantos do planeta estava terminada a única “globalização” de fato relevante. Tratando-se de uma única espécie, gregária e sociável, nada mais natural do que a progressiva intensificação dos intercâmbios de todos os tipos entre seus componentes. A língua, o fogo, a roda, a escrita, a matemática, as religiões e muito mais coisas se “globalizaram” no curso do tempo. Então o que há de diferente e novo no que hoje se chama vulgarmente de “globalização”? Nada. Em boa parte o termo tem conotação negativa, identificado com capitalismo, imperialismo e bobagens do gênero. Para identificar a má-fé nessa campanha de desinformação propagandística basta constatar que seus autores são os mesmos que ainda ontem pregavam (e ainda pregam, embora em outros termos) o “internacionalismo proletário”, isto é, a globalização do comunismo.

“EXCLUSÃO SOCIAL” – Olhem o infame “social” aí de novo! O termo “excluído” foi concebido pela intelectuária para substituir aos desgastados “proletário”, “trabalhadore” e “camponês”, malgrado corresponda, mais tecnicamente, ao que os marxistas clássicos rotulavam de “lumpenproletariado”. Como a retórica da “esquerda” é cada vez mais vaporosa, contraditória e mutante, “excluído” pode identificar as mais diversas categorias. Hoje são os índios, para os quais se exigem terras equivalentes ao território de vários países, amanhã são os “sem-terra”, que demandam o fim do “latifúndio” e a divisão de todas as terras em pequenas propriedades, e assim por diante.

“A LÓGICA DO CAPITALISMO” – A lógica é a disciplina filosófica que estuda a forma do raciocínio, pelo qual de premissas admitidas como certas se inferem conclusões necessárias, pois já implícitas nas premissas. Assim, quando um intelectual de “esquerda” fala em “lógica do capitalismo”, essa expressão só é válida se o interlocutor aceita as premissas sugeridas. Quando, ao contrário, o interlocutor pretende justamente problematizar essas premissas, não há lógica nenhuma, e sim dialética. Infelizmente é quase impossível um intelectual de esquerda aceitar esse debate franco e aberto – dialético – acerca da real natureza do que se conhece como capitalismo. Para ele, premissas como “exploração”, “egoísmo”, “exclusão”, “imperialismo” são artigos de fé (rectius: de má-fé) em toda e qualquer peroração sobre o assunto. E se o oponente prova cabalmente os múltiplos erros nos seus teoremas, o intelectual de esquerda recorre ao argumento ad hominem, também denominado por Ludwig von Mises de polilogismo, que se resume a colar no interlocutor impertinente a etiqueta odienta de “capitalista”, que o torna inerentemente incapaz de sequer compreender a “lógica proletária”, quanto mais refutá-la.

“AS FORÇAS CEGAS DO MERCADO” – O mercado é essencialmente um processo através do qual os fatores de produção (terra, trabalho e capital) são alocados segundo as demandas mais urgentes dos consumidores, processo esse não controlado e dirigido por nenhum órgão central. A maior e mais antiga controvérsia da economia, desde Adam Smith e até mesmo antes dele, tem por objeto a capacidade auto-reguladora do mercado. Para Smith e Bastiat, von Mises e M. Rothbard, o mercado é auto-regulável; para Malthus e Sismondi, Marx e Keynes, a economia de mercado sofre de contradições internas que acarretam sua destruição, exigindo, pois, a intervenção estatal para corrigir (ou abolir, no caso de Marx) as suas “falhas”. Quem assevera que as forças de mercado são “cegas” está afirmando que o planejamento estatal é onisciente, ou menos falível do que o mercado. Nesse ponto temos que aplaudir a coerência dos socialistas totalitários (comunistas e nazistas), posto que, se o Estado é capaz de corrigir as falhas do mercado, deve logicamente suprimi-lo por completo. A posição dos socialistas fabianos (terceira via, keynesianos, sociais-democratas) nessa questão é frágil, vez que, se o Estado é intrinsecamente superior ao mercado na organização da economia, porque então não substituí-lo integralmente?

Por outro lado, se a intervenção do Estado no domínio econômico também é “cega”, a economia será sempre um processo pelo qual cegos são guiados por cegos. E se algo pôde ser inferido de certo e conclusivo da calamitosa experiência econômica do século 20 é que a intervenção estatal é sempre “cega”, muito embora conduzida por políticos, intelectuais e burocratas dotados de enorme “olho grande”. Proponho ao leitor o seguinte teste empírico: a oferta de pão está em nosso país à cargo do mercado, enquanto que a provisão de serviços de segurança incumbe ao estado. Quem o atende com mais eficiência? Quanto a mim, não há dúvida. Eu viajei por todo o Brasil e não encontrei lugar em que não houvesse uma padaria disponível para se adquirir o tradicional pãozinho para o café da manhã. Por outro lado, sempre que necessitei de auxílio policial nas diversas ooprtunidades em que fui roubado ou furtado, fiquei frustrado. Imaginem só se a oferta de pães fosse monopólio estatal afetado a uma “Pãobrás” qualquer. Provavelmente não haveria pão em lugar nenhum, como não há em Cuba nem havia nos países comunistas.

“DIREITOS DAS MINORIAS” – Todo sujeito de direito é uma minoria de um, uma vez que ao seu direito corresponde o dever geral de não infringi-lo, conforme estabelecido na breve investigação acima sobre a natureza do Direito. De maneira que a expressão “direitos das minorias” é vazia. O direito do homossexual é precisamente o mesmo do heterossexual, como o direito do branco é o mesmo que o do negro, e assim por diante. A campanha dos “direitos das minorias” não passa de uma ofensiva da intelligentsia esquerdista contra o Estado de Direito com o fito de fomentar conflitos artificiais para depois “resolvê-los” via coerção policial. Não é outra coisa a recente importação da “affirmative action” (outra expressão melíflua e contraditória em seus termos) dos Estados Unidos pelo hediondo governo FHC, com sua infame política de quotas raciais. Isso equivale a institucionalizar o racismo num dos poucos países do mundo isentos desse problema. Até mesmo as mulheres, maioria da população, são qualificadas como “minoria”, o que é ridículo.

“CONSCIÊNCIA CRÍTICA” – O intelectual de “esquerda” ama de paixão a palavra “crítica”, desde que não seja jamais criticado. Para ele, somente aqueles que foram devidamente doutrinados nas idéias esquerdistas são indivíduos “conscientes” e “críticos”. Ocorre que a peculiaridade de pessoas que pensam assim é exatamente a completa incapacidade de raciocinar criticamente, isto é, de pensar por si mesmas, articular argumentos e formar juízos objetivos e imparciais sobre a realidade. Na melhor tradição orwelliana, para o intelectual de “esquerda”, “consciente” é o que para gente normal é “lobotomizado”, e “crítico” traduz-se por “acrítico”.

“SETORES CONSCIENTES E ORGANIZADOS” – Essa é clássica. Os intelectuais de “esquerda” denominam assim os grupos que estão inteiramente doutrinados e arregimentados por eles. Quem está fora é “alienado” ou “inimigo de classe”.

“ELITES PERVERSAS” – Para os intelectuais de esquerda as “elites perversas” são sempre os outros, nunca eles mesmos, não obstante eles constituam evidentemente um grupo de elite. Reparem no Luis Fernando Veríssimo, por exemplo. Nascido em berço de ouro, educado nos Estados Unidos, escritor de um best-seller atrás do outro, prestigioso e regiamente pago colunista de grandes jornais, bajulado servilmente pela mídia, amigo e guru de políticos influentes e poderosos, ele costuma passar as férias em Paris. Se Veríssimo não integra a elite brasileira, a que classe ele pertence então? Mas o insensado escritor de “esquerda” e seus pares jamais se incluem na fina-flor da sociedade brasileira, a despeito de contribuirem mais do que ninguém para a formação da cultura do país, e daí naturalmente para a organização política nacional.

Fala-se muito no “poder econômico” das “elites”, que seriam responsáveis pelo atraso e pela miséria no Brasil. Ora, e quem tem mais poder econômico nesse país do que o Estado, que inclusive detém o poder de criar dinheiro? Que indivíduo, que empresa, que elite se reveste do poder de tributar, de se apropriar de 34% do que se produz nacionalmente? Quem tem privilégios como estabilidade no emprego, vencimentos desvinculados da produtividade do trabalho, aposentadoria especial, remuneração muito acima da média nacional etc. etc. etc.? Ora, que eu saiba são os funcionários públicos a elite mais rica e poderosa do Brasil. O rendimento médio mensal de um servidor federal está por volta de R$ 3.355,09; já o assalariado do setor privado recebe em média R$ 751,60 por mês. Os funcionários federais aposentados e pensionistas ganharam em média R$ 2.474,37 ao mês; os aposentados do regime comum do INSS tiveram que se contentar com R$ 324,00 mensais em média. Acontece que a incessante ladainha dos intelectuais de “esquerda” é justamente atribuir ainda mais poder e mais dinheiro a essa elite insaciável, da qual a maioria deles faz parte. Isso é que é “utopia” em causa própria!

A lista acima é meramente exemplificativa. Cada leitor pode compor a sua própria lista, e, se uma vinte pessoas o fizessem, poderiam publicar uma enciclopédia de sofismas com uns dez volumes. O fato é que enquanto a linguagem continuar ideologicamente viciada como está nada vai mudar nesse país – salvo para pior.

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