Yearly archive for 2002

Agradido a chupetazos

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 29 de agosto de 2002

En las épocas revolucionarias – y sería ingenuidad negar que Brasil vive una de ellas – hay un síntoma que se repite invariablemente, con la constancia de las erupciones cutáneas al comienzo de una sífilis: de repente surgen de la nada personas que empiezan a opinar con pasión sobre asuntos que hasta la víspera no les interesaban lo más mínimo, de los que apenas han oído hablar y de los que siguen ignorándolo prácticamente todo.

El hecho es señalado por muchos analistas célebres del fenómeno revolucionario.

No es necesario averiguar sus causas. La pérdida de confianza entre grupos y clases destruye en la opinión pública el sentido de las proporciones, el sentido de la realidad y, automáticamente, el sentido de la prudencia en opinar. La propagación de la locura es espontánea y de progresión geométrica. En medio de la incertidumbre general, una palabra de orden, un runrún, una exclamación oída en un bar se convierten de repente en una tabla de salvación. Todos se agarran a la novedad, dispuestos a exhibirla como emblema de seguridad personal en medio del caos colectivo. De ahí proviene la epidemia de opiniones idiotas, emitidas con tono de certeza absoluta e intolerante. “El sueño de la razón produce monstruos.”

La última semana, tres de esos “monstruos”, nadando por el mar de las demencias nacionales, han venido a parar a mi buzón postal. El primero era un artículo firmado por el dibujante Jaguar, publicado en el periódico carioca O Dia, que aseguraba que ya no existían comunistas en el mundo – mucho menos en Brasil – y, basándose en esa verdad infalible, diagnosticaba mi pésimo estado de salud mental. Jaguar era calificado por su amigo Paulo Francis como un “genio idiota” (sic), incapaz de captar el sentido ideológico incluso de sus propios dibujos.

No es de extrañar, por tanto, que ignore la existencia del Foro de São Paulo, de los agentes de las Farc que operan en nuestro territorio nacional, de los campos de entrenamiento de guerrilleros del MST, etc. Lo que sí debería resultar extraño es que un periódico lo juzgue habilitado para opinar al respecto. Debería resultar extraño, si no fuese por que estamos en la época que estamos.

El segundo venía de la sección de cartas de Zero Hora. En una larga frase, cuyo predicado se iba alejando cada vez más del sujeto hasta olvidarlo por completo y acabar hablando de otra cosa, el autor de la misiva me acusaba de escribir muy mal. Acto seguido, me echaba la bronca por criticar a filósofos muertos, que no podían defenderse – objeción que, adoptada como regla universal, habría zanjado toda y cualquier discusión entre filósofos a partir de la muerte del primero, allá por el siglo VI a. C.

Finalmente, un joven universitario de Minas, en circular distribuida en Internet, me echaba una filípica con todas las de la ley, llamándome ignorante, burro y semi-analfabeto, por haber emitido un determinado parecer sobre la guerra civil americana, que dicho joven prometía hacer añicos, pocas líneas más abajo, fundándose en fuentes históricas de alto copete.

Como la opinión que yo había publicado se fundaba en las investigaciones académicas más recientes y meticulosas, me quedé de piedra. ¿Habría escapado a mi atención algún detalle esencial? ¿Habría cometido alguna metedura de pata histórica formidable, exponiéndome a la reprimenda magisterial de un Ph.D. recién salido de pañales? Empecé entonces a leer los párrafos siguientes, decidido ya interiormente a retirar lo dicho, si fuera necesario, puesto que no hay mayor infamia que la contumacia en el error comprobado.

Con lo que tropecé, sin embargo, fue con la narrativa estándar de los acontecimientos, idéntica a la de los viejos libros escolares, con la única diferencia de estar respaldada por la autoridad de un historiador que yo desconocía, un tal Roger Bruns. Fui a averiguar en Internet quién era el Sr. Bruns y descubrí que era un autor de libros de historia para niños, de uno de los cuales el factor de la misiva había extraído la sustancia de sus argumentos…

En mi larga vida de estudios, me había preparado para todo, todo – excepto para enfrentarme a un adversario que saltaba al campo super-confiante, seguro de poder fulminarme intelectualmente con citas de Espinete y de “Los tres cerditos”. ¡Ah, eso no! Todo, todo, menos eso.

Me he adiestrado para enfrentar, en disputa intelectual, todo tipo de arma: cañón, revólver, puñal, incluso mísiles atómicos. Agredido a golpes de chupete, todo lo que he podido hacer ha sido quedarme profundamente consternado, preguntándome a mí mismo qué especie de educación habrá recibido ese chico, que le ha inducido a presumir de sus fuerzas hasta ese punto.

Pero no ha sido sólo la educación: ha sido el espíritu de la época.

Agredido a chupetadas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 29 de agosto de 2002

Nas épocas revolucionárias – e seria ingenuidade negar que o Brasil vive uma delas – há um sintoma que se repete invariavelmente, com a constância das erupções cutâneas no início de uma sífilis: de repente surgem do nada pessoas que começam a opinar com paixão sobre assuntos que até à véspera não lhes interessavam no mais mínimo que fosse, dos quais mal ouviram falar e dos quais continuam ignorando praticamente tudo.

O fato é assinalado por muitos analistas célebres do fenômeno revolucionário.

Não é necessário sondar-lhe as causas. A quebra da confiança entre grupos e classes destrói na opinião pública o senso das proporções, o senso da realidade e, automaticamente, o senso da prudência no opinar. A propagação da loucura é espontânea e de escala geométrica. Na incerteza geral, uma palavra de ordem, um zunzum, uma exclamação ouvida num bar tornam-se de repente uma tábua de salvação. Cada um se agarra à novidade, pronto a exibi-la como emblema de segurança pessoal no meio do caos coletivo. Daí a epidemia de palpites idiotas, emitidos num tom de certeza absoluta e intolerante. “El sueño de la razón produce monstruos.”

Na última semana, três desses “monstruos”, nadando pelo mar das demências nacionais, vieram dar na minha caixa postal. O primeiro era um artigo assinado pelo cartunista Jaguar, publicado no jornal carioca O Dia, que assegurava não existirem mais comunistas no mundo – muito menos no Brasil – e, baseado nessa verdade infalível, diagnosticava o meu péssimo estado de saúde mental. Jaguar era considerado por seu amigo Paulo Francis um “gênio idiota” (sic), incapaz de captar o sentido ideológico até de seus desenhos.

Não espantava portanto que ignorasse a existência do Foro de São Paulo, dos agentes das Farc que operam no território nacional, dos campos de treinamento de guerrilheiros do MST, etc. Espantaria, apenas, que um jornal o julgasse habilitado a opinar a respeito. Espantaria, se não estivéssemos na época em que estamos.

O segundo vinha da seção de cartas do Zero Hora. Numa longa frase cujo predicado ia se afastando cada vez mais do sujeito até esquecê-lo por completo e acabar falando de outra coisa, o missivista acusava-me de escrever muito mal. Em seguida, ralhava comigo por criticar filósofos mortos, que não podiam se defender – uma objeção que, adotada como regra universal, teria bloqueado todas as discussões entre filósofos desde a morte do primeiro deles, no século VI a. C.

Por fim, um jovem universitário mineiro, em circular distribuída na Internet, passava-me um sabão em regra, chamando-me ignorante, burro e semi-analfabeto, por haver eu emitido determinado parecer sobre a guerra civil americana, o qual o dito jovem prometia reduzir a pó, linhas adiante, baseado em fontes históricas do mais alto gabarito.

Como a opinião que eu havia publicado era fundada nas pesquisas acadêmicas mais recentes e meticulosas, fiquei espantado. Teria algum detalhe essencial escapado à minha atenção? Teria eu cometido alguma gafe histórica formidável, expondo-me à reprimenda magisterial de um Ph.D. recém-saído dos cueiros? Comecei então a ler os parágrafos seguintes, já interiormente decidido a me desdizer se fosse o caso, pois não há vergonha maior que a teimosia no erro, quando provado.

O que veio a meu encontro, porém, foi a narrativa-padrão dos acontecimentos, idêntica à dos velhos livros escolares, apenas com a diferença de se respaldar na autoridade de um historiador que eu desconhecia, um tal de Roger Bruns. Fui averiguar na Internet quem era o sr. Bruns e descobri que era um autor de livros de história para crianças, de um dos quais o missivista havia colhido a substância de seus argumentos…

Na minha longa vida de estudos, eu havia me preparado para tudo, tudo – exceto a confrontação com um adversário que entrava em campo superconfiante, seguro de poder me fulminar intelectualmente por meio de citações de Dona Benta e de “A Vaca e o Frango”. Ah, isso não! Tudo, tudo, menos isso.

Adestrei-me para enfrentar, na disputa intelectual, todo tipo de arma:

canhão, revólver, faca, até mísseis atômicos. Agredido a golpes de chupeta, tudo o que pude fazer foi ficar profundamente consternado, perguntando a mim mesmo que raio de educação esse menino teria recebido, que o induzira a presumir de suas forças a esse ponto.

Mas não foi só a educação: foi o espírito da época.

A teoria da exploração do socialismo-comunismo – Capítulo IV

Eugen von BÖHM-BAWERK

A idéia de que toda renda não advinda do trabalho (aluguel, juro e lucro) envolve injustiça econômica

(Um extrato)

Tradução: LYA LUFT

IV – A teoria do juro de Marx1

A. Apresentação detalhada da teoria de Marx

O principal trabalho teórico de Marx é sua grande obra em três volumes, sobre o capital. Os fundamentos de sua teoria da exploração estão expostos no primeiro destes volumes, o único a ser publicado em vida do autor em 1867. O Segundo, editado postumamente por Engels, em 1885, está em total harmonia com o Primeiro, quanto ao conteúdo. Menos harmônico é sabidamente o terceiro volume, publicado novamente após intervalo de vários anos, em 1894. Muitas pessoas, entre elas o autor destas linhas, acreditam que o conteúdo do terceiro volume seja incompatível com o do primeiro, e vice-versa. Mas, como o próprio Marx não admitiu isso e, ao contrário, também no terceiro volume exigiu que se considerassem totalmente válidas as doutrinas do primeiro, a crítica deve considerar as teses expostas nesse primeiro livro expressão da verdadeira e permanente opinião de Marx. Mas é igualmente válido – e necessário – abordar no momento adequado as doutrinas do terceiro volume, como ilustração e crítica.

1. A teoria de Marx sobre juro é mais extremista que a de Rodbertus

Marx parte do principio de que o valor de toda mercadoria depende unicamente da quantidade de trabalho empregada em sua produção. Dá muito mais ênfase a esse princípio do que Rodbertus. Enquanto este o menciona de passagem, no correr da exposição, muitas vezes apenas como hipótese, sem gastar tempo com sua comprovação,2 Marx o coloca no ápice de sua teoria, dedicando-lhe uma explicação extensa e fundamentada.

O campo de pesquisa que Marx se propõe examinar para “entrar na pista do valor” (I, p. 23)3 fica limitado originalmente às mercadorias, o que, para Marx, não significa todos os bens econômicos, mas apenas os produtos de trabalho criados para o mercado.4 Ele começa com uma análise da mercadoria (I, p. 9). A mercadoria é, por um lado [p. 282], uma coisa útil cujas qualidades satisfazem algum tipo de necessidade humana, um valor de uso; por outro, constitui o suporte material do valor de troca. A análise passa agora para este último. “O valor de troca aparece de imediato como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um tipo se trocam com valores de uso de outro tipo, relação essa que muda constantemente, conforme tempo e lugar.” Portanto, parece ser algo casual. Mas nessa troca deveria haver algo de permanente, que Marx trata de pesquisar. E faz isso na sua conhecida maneira dialética: “Tomemos duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Seja qual for a sua relação de troca, pode-se representá-la sempre numa equação segundo a qual uma quantidade dada de trigo é igualada a uma quantidade de ferro, p. ex., um moio de trigo x quintais de ferro. O que significa essa equação? Que existe algo de comum, do mesmo tamanho, em duas coisas diferentes, ou seja, em um moio de trigo e x quintais de ferro. Portanto, as duas coisas se equiparam a uma terceira, que em si não é nem uma nem outra. Cada uma das duas, portanto, na medida em que tem valor de troca, deve ser reduzível a essa terceira.”

2. Dialética do valor em Marx

“Esse elemento comum – prossegue Marx – não pode ser uma característica métrica, física, química, ou outra característica natural das mercadorias. Suas características corporais, aliás, só entram em consideração na medida em que as tornam úteis, e são, portanto, valores de uso. Mas, por outro lado, a relação de troca das mercadorias aparentemente se caracteriza por se abstrair dos valores de uso dessas mercadorias. Segundo ela, o valor de uso vale tanto quanto qualquer outro, desde que apareça na proporção adequada. Ou, como diz o velho Barbon: “… Um tipo de mercadoria é tão bom quanto outro, quando seu valor de troca for igual. Não existe distinção entre coisas do mesmo valor de troca.’ Como valores de uso, as mercadorias são principalmente de qualidades diferentes, como valores de troca só podem ser de quantidades diferentes e, portanto, não contêm um átomo sequer de valor de uso.”

“Abstraindo o valor de uso das mercadorias, elas guardam ainda uma característica, a de serem produtos de trabalho. No entanto, também o produto de trabalho já se transformou em nossas mãos. Se abstrairmos o seu valor de uso, também estaremos abstraindo os elementos e formas corporais que o tornam valor de uso. Não se trata mais de mesa, ou casa, ou fio, ou outra coisa útil. Todas as suas características sensoriais estão apagadas. Ele também já não é o produto da marcenaria, ou da construção, ou da tecelagem, ou de qualquer trabalho produtivo. Com o caráter utilitário dos produtos de trabalho, desaparece o caráter utilitário dos trabalhos neles efetuados, e somem também as diversas formas concretas desses trabalhos. Eles já não se distinguem entre si [p.283]: reduziram-se todos ao mesmo trabalho humano, trabalho humano abstrato.”

“Consideremos agora o que restou dos produtos de trabalho. Nada resta deles senão aquela mesma objetualidade espectral, mera gelatina de trabalho humano indistinto, ou seja, o gasto de forças de trabalho humanas sem consideração pela forma desse dispêndio. Essas coisas apenas nos dizem que na sua produção se gastou força de trabalho humano, se acumulou trabalho humano. Como cristais dessa substancia social comum, eles são valores.”

Assim se define e se determine o conceito de valor. Segundo a teoria dialética, ele não é idêntico ao valor de troca, mas relaciona-se com ele de maneira íntima e inseparável: ele é uma espécie de destilado conceitual do valor de troca. Para usar as palavras do próprio Marx, ele é “a parte comum que aparece na relação de troca ou valor de troca das mercadorias”. O reverso é igualmente válido: “o valor de troca é a expressão necessária ou a manifestação do valor” (I, p. 13).

3. O “tempo de trabalho socialmente necessário” de Marx

Marx passa da determinação do conceito de valor para a exposição de sua medida e grandeza. Como o trabalho, é a substância do valor, conseqüentemente a grandeza do valor de todos os bens se mede pela quantidade de trabalho neles contido, ou seja, pelo tempo de trabalho. Mas não aquele tempo de trabalho individual, que aquele individuo que produziu o bem casualmente precisou gastar, mas o “tempo de trabalho necessário para produzir um valor de uso, nas condições sociais normais de produção disponíveis, e com o grau de habilidade e intensidade do trabalho possíveis nessa sociedade” (I, p. 14). “Só a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir um valor de uso é que determina o seu valor. A mercadoria isolada vale aqui como exemplo médio da sua espécie. Mercadorias contendo igual quantidade de trabalho, ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho, têm por isso o mesmo valor. O valor de uma mercadoria relaciona-se com o valor de outra mercadoria, da mesma forma que o tempo de trabalho necessário para a produção de uma delas se relaciona com o tempo de trabalho necessário para a produção da outra. Como valores, todas as mercadorias são apenas medidas de tempo de trabalho cristalizado.”

4. A “lei do valor” de Marx

De tudo isso deduz-se o conteúdo da grande “lei de valor”, que é “imanente à troca de mercadorias” (I, pp. 141 e 150) e que domina as condições de troca. Essa lei significa – e só pode significar – que as mercadorias se trocam entre si segundo as condições de trabalho médio, socialmente necessário, incorporado nelas (p. ex., I. p. 52). Há outras formas de expressão da mesma lei: as mercadorias “se trocam entre si conforme seus valores” (p. ex., I, pp. 142, 183; III, p. 167); ou “equivalente se troca com equivalente” (p.ex., I, p. 150, p. 183). É verdade que, em casos isolados, segundo oscilações momentâneas de oferta e procura, também aparecem preços que estão acima ou abaixo do valor. Só que essas “constantes oscilações dos preços de mercado (…) [p. 284] se compensam, se equilibram mutuamente e se reduzem ao preço médio, que é sua regra interna” (I, p. 151, nota 37). Mas a longo prazo “nas relações de troca casuais e sempre variáveis”, “o tempo de trabalho socialmente necessário acaba sempre impondo-se à força, como lei natural imperante” (I, p. 52).

Marx considera essa lei como “eterna lei de troca de mercadorias” (I, p. 82), como “racional”, como “a lei natural do equilíbrio” (III, p. 167). Os casos eventuais em que mercadorias são trocadas a preços que se desviam do seu valor são considerados “casuais” em relação à regra (I. p. 150, nota 37), e os próprios desvios devem ser vistos como “infração da lei de troca de mercadorias” (I, p. 142).

5. A “mais valia” de Marx

Sobre essa base da teoria do valor, Marx ergue a segunda parte de sua doutrina, a sua famosa doutrina do mais-valia. Ele examina a origem dos ganhos extraídos pelos capitalistas dos seus capitais. Os capitalistas tomam determinada soma em dinheiro, transformam-na em mercadorias, e, através da venda, transformam as mercadorias em mais dinheiro – com ou sem um processo intermediário de produção. De onde vem esse incremento, esse excedente da soma de dinheiro obtida em relação à soma originalmente aplicada, ou, como diz Marx, essa mais-valia”?

Marx começa limitando as condições do problema, na sua peculiar maneira de exclusão dialética. Primeiro, ele explica que a mais-valia não pode vir do fato de que o capitalista, como comprador, compra as mercadorias regularmente abaixo do seu valor e, como vendedor, regularmente as vende acima do seu valor. Portanto, o problema é o seguinte: “Nosso ( … ) dono do dinheiro tem de comprar as mercadorias pelo seu valor, e vendê-las pelo seu valor, mas, mesmo assim, no fim do processo, tem de extrair delas valor mais alto do que o que nelas aplicou… Essas são as condições do problema. Hic Rhodus, hic salta!* (I, p. 150 ss).

Marx encontra a solução dizendo que existe uma mercadoria cujo valor de uso tem a singular faculdade de ser fonte de valor de troca. Essa mercadoria é a capacidade de trabalho, ou seja, a força de trabalho. Ela é posta à venda no mercado sob dupla condição: a primeira, de que o trabalhador seja pessoalmente livre – caso contrario não seria a força de trabalho o que ele estaria vendendo, mas ele próprio, sua pessoa, como escravo; a segunda, de que o trabalhador seja destituído “de todas as coisas necessárias para a realização de sua força de trabalho”, pois, se delas dispusesse, ele preferiria produzir por conta própria, pondo à venda seus produtos, em vez de sua força de trabalho. Pela negociação com essa mercadoria, o capitalista obtém a mais-valia. O processo se dá da seguinte forma:

O valor da mercadoria “força de trabalho” depende, como o de qualquer outra mercadoria [p. 285], do tempo de trabalho necessário para sua produção, o que, nesse caso, significa que depende do tempo de trabalho necessário para produzir todos os alimentos que são indispensáveis a subsistência do trabalhador. Se, por exemplo, para os alimentos necessários para um dia for preciso um tempo de trabalho de seis horas, e se esse tempo de trabalho corporificar três moedas de ouro, a força de trabalho de um dia poderia ser comprada por três moedas de ouro. Caso o capitalista tenha efetuado essa compra, o valor de uso da força de trabalho lhe pertence, e ele a concretiza fazendo o trabalhador trabalhar para ele. Se o fizesse trabalhar apenas as horas diárias corporificadas na força de trabalho pelas quais ele teve de pagar quando comprou essa força de trabalho, não existiria a mais-valia. Ou seja, seis horas de trabalho não podem atribuir ao produto em que se corporificam mais do que três moedas, uma vez que foi isso que o capitalista pagou como salário. Contudo, os capitalistas não agem dessa maneira. Mesmo que tenham comprado a força de trabalho por um preço que corresponde só a seis horas de trabalho, fazem o trabalhador trabalhar o dia todo. Então, no produto criado durante esse dia, se corporificam mais horas de trabalho do que as que o capitalista pagou, o que faz o produto ter valor mais elevado do que o salário pago. A diferença é a “mais-valia”, que fica para o capitalista.

Tomemos um exemplo: suponhamos que um trabalhador possa tecer em seis horas cinco quilos de algodão em fio, com o valor de três dólares. Suponhamos, também, que esse algodão tenha custado vinte horas de trabalho para ser produzido e que, por isso, tem um valor de dez dólares; suponhamos, ainda, que o capitalista tenha despendido, máquina de tecer, para estas seis horas de tecelagem, o correspondente a quatro horas de trabalho, que representam um valor de dois dólares. Assim, o valor total dos meios de produção consumidos na tecelagem (algodão + máquina de tecer) equivalerá a doze dólares, correspondentes a vinte e quatro horas de trabalho. Se acrescentarmos a isso as seis horas do trabalho de tecelagem, o tecido pronto será pois, no total, produto de trinta horas de trabalho, e terá, por isso, valor de quinze dólares. Se o capitalista deixar o trabalhador alugado trabalhar apenas seis horas por dia, a produção do fio vai custar-lhe 15 dólares: 10 pelo algodão, 2 pelo gasto dos instrumentos, 3 em salário. Não existe mais-valia.

Muito diferente seriam as circunstâncias se este mesmo capitalista fizesse o trabalhador cumprir 12 horas diárias. Nestas 12 horas, o trabalhador processaria 10 quilos de algodão, nos quais já teriam sido corporificadas, anteriormente, 40 horas de trabalho, com um valor de 20 dólares. Os instrumentos teriam consumido o produto de 8 horas de trabalho, no valor de 4 dólares, mas o trabalhador acrescentaria ao material bruto um dia de 12 horas de trabalho, ou seja, faria surgir um valor adicional de 6 dólares. As despesas do capitalista – 20 dólares pelo algodão, 4 dólares pelo gasto dos instrumentos, e 3 pelo salário – somariam apenas 27 dólares. Iria, então, sobrar uma “mais-valia” de 3 dólares.

Portanto, para Marx, a mais-valia é uma conseqüência do fato [P. 286] de o capitalista fazer o trabalhador trabalhar para ele sem pagamento durante uma parte do dia. O dia de trabalho se divide, assim, em duas partes: na primeira, o “tempo de trabalho necessário”, o trabalhador produz seu próprio sustento, ou o valor deste; por essa parte do trabalho, ele recebe o equivalente em forma de salário. Durante a segunda parte, o “superávit em tempo de trabalho”, ele é “explorado”, e produz a “mais-valia”, sem receber qualquer equivalente por ela (I, P. 205 ss). “Portanto, o capital não é apenas controle sobre o trabalho, como diz A. Smith. É essencialmente controle sobre o trabalho não-pago. Toda a mais-valia, seja qual for a forma em que vá se cristalizar mais tarde – lucro, juro, renda etc. – é, substancialmente, materialização de trabalho não Pago. O segredo da autovalorização do capital reside no controle que exerce sobre determinada quantidade de trabalho alheio não pago.” (I, P. 554).

6. As inovações de Marx comparadas com as de Rodbertus

Esse é o cerne da teoria da exploração de Marx, exposta no Volume I de O capital. No Volume III, essa teoria talvez tenha sido involuntariamente contraditada mas nunca foi revogada, segundo ainda veremos. O leitor atento reconhecerá nessa exposição – embora parcialmente revestidas de outra forma – todas as teorias essenciais a partir das quais Rodbertus já havia construído sua teoria do juro. Por exemplo, as teorias de que o valor dos bens se mede pela quantidade de trabalho; de que só o trabalho cria valor; de que o trabalhador recebe em seu salário menos valor do que criou, forçado por sua miséria, sendo o excesso tomado pelo capitalista; de que o ganho de capital assim conseguido tem, portanto, um caráter de saque, de lucro sobre trabalho alheio.

Devido à consonância entre as duas teorias – ou, melhor, entre as duas formulações da mesma teoria – quase tudo o que apresentei como objeção à doutrina de Rodbertus também vale, plenamente, para a de Marx. Por isso, posso agora limitar-me a algumas exposições complementares, que julgo necessárias, em parte para adequar minha crítica à singular formulação de Marx, em parte para tratar de uma verdadeira inovação introduzida por Marx.

Entre essas inovações, a mais importante é a tentativa, de afirmar e fundamentar o princípio de que todo valor se baseia em trabalho. Em relação a Rodbertus, combati esse princípio tão incidentalmente como ele o apresentou: contentei-me com a inclusão de algumas exceções indiscutíveis, sem ir ao fundo do assunto. Em relação a Marx, não posso nem quero fazer isso [p. 287]. Encontro-me num terreno que foi inúmeras vezes palmeado por excelentes intelectuais, em discussões teóricas, de modo que não posso esperar acrescentar aí muita novidade. Mas creio que não seria bom, ao escrever um livro que tem como tema a crítica das teorias de juro, fugir da crítica profunda a um princípio que consiste no próprio fundamento de uma das mais importantes teorias. Infelizmente, também, o estado atual da nossa ciência não permite que se considere como um exercício supérfluo a renovação do exame crítico: exatamente em nossos dias5 aquele principio – que, na verdade, não passa de uma fábula contada certa vez por um grande homem, e desde então repetida por uma massa crédula – começa a ser aceito como evangelho em círculos cada vez maiores.

B. Fraqueza da prova de autoridade de Marx, baseada em Smith e Ricardo

Geralmente mencionam-se, não só como origem, mas também, como autoridades testemunhais da doutrina de que todo valor repousa no trabalho, dois nomes de peso: Adam Smith e Ricardo. Isso não constitui erro, mas também não é inteiramente correto. Nos textos de ambos encontra-se essa doutrina, mas por vezes Adam Smith a contradiz.6 Ricardo, por sua vez, limita de tal forma sua validade, e a contraria com tão importantes exceções, que não é muito justo afirmar que ele considere o trabalho como fonte geral e exclusiva do valor dos bens.Ele abre seus Principles explicando claramente que o valor de troca dos bens nasce de duas fontes: da sua raridade, e da quantidade de trabalho que custaram. Certos bens, como estátuas raras e quadros, auferiram seu valor exclusivamente da primeira fonte. Assim, só o valor daqueles bens que se deixam multiplicar ilimitadamente pelo trabalho – que são, na opinião de Ricardo, a grande maioria – é determinado pela quantidade de trabalho que custaram. Mas também em relação aos últimos bens, Ricardo se vê forçado a nova limitação. Ele precisa admitir que também em relação a eles o valor de troca não se determina só pelo trabalho: o tempo decorrido entre o dispêndio de trabalho inicial e a realização final do produto tem uma influência importante.8

Com isso, nem Smith nem Ricardo defenderam o princípio em questão sem reservas, como se acredita popularmente. Vejamos, pois, em que bases eles o aceitaram.

7. Nem Smith nem Ricardo fundamentaram sua própria obra

Aqui se pode fazer uma estranha descoberta. Smith e Ricardo nem mesmo fundamentaram seu princípio: apenas afirmaram sua validade, como se esta fosse algo por si mesma evidente. As famosas palavras de Smith em relação a isso, assumidas textualmente por Ricardo em sua própria doutrina, foram: “O verdadeiro preço de cada coisa – o que cada coisa custa realmente a quem a deseja adquirir [p. 288] – equivale ao esforço e à dificuldade da aquisição. O que cada coisa vale realmente para aquele que a adquiriu e a deseja vender ou trocar é o esforço e a dificuldade que essa coisa lhe poupa, e que podem ser repassados a outrem.”9

Aqui convém parar um pouco. Smith diz isso como se a veracidade de tais palavras fosse evidente em si. Mas serão tão óbvias assim? Valor e esforço serão realmente dois conceitos tão interligados que se tem de reconhecer, de imediato, que o esforço é razão do valor? Creio que nenhuma pessoa imparcial dirá isso. O fato de eu me ter esfalfado por uma coisa é um dado; o fato de essa coisa valer todo esse esforço é um segundo dado diferente. Por outro lado, a experiência nos mostra, de maneira indubitável, que os dois fatos nem sempre andam juntos. Cada um dos incontáveis esforços vãos, desperdiçados num resultado insignificante, seja por falta de habilidade técnica, seja por especulação errônea, ou simplesmente por infelicidade, dá testemunho disso a cada dia. Mas também o testemunha cada um dos incontáveis casos em que pouco esforço é compensado com alto valor: a ocupação de um pedaço de terra, a descoberta de uma pedra preciosa ou de uma mina de ouro. Mas, para fazer uma abstração de tais casos que se podem considerar exceções no curso regular das coisas, é um fato absolutamente normal que o mesmo esforço de pessoas diferentes terá valor bem diverso. O fruto do esforço de um mês de um artista muito bom normalmente vale cem vezes mais do que o fruto do mesmo mês de trabalho de um simples pintor de paredes. Isso não seria possível se realmente o esforço fosse o princípio do valor. Ou se, em função de uma relação psicológica, nosso julgamento de valor tivesse de se apoiar unicamente sobre critérios de esforço e dificuldade. A natureza não e tão elitista que suas leis psicológicas nos obriguem a valorizar cem vezes mais o esforço de um artista do que aquele de um modesto pintor de paredes.10 Penso que quem se propuser a refletir um pouco sobre isso, ao invés de acreditar cegamente, se convencerá de que não é possível falar numa relação interna óbvia entre esforço e valor, como a que parece pressupor aquele trecho de Smith.

Além disso, será que aquela realmente se relaciona – como em geral aceitamos sem discussão – com o valor de troca? Creio que, lendo Smith de modo imparcial, não se poderá, tampouco, afirmar isso. Não há referência nem a valor de troca, nem a valor de uso, nem a qualquer “valor” no sentido estritamente científico. Mas aqui, como já indica o termo usado (worth, não value), Smith quis dizer que a palavra valor está sendo usada naquele sentido mais amplo e indeterminado da linguagem comum. Fato muito significativo! Sentindo que uma reflexão científica séria não aceitaria seu princípio, Smith se utiliza da linguagem corrente para entrar no terreno das impressões cotidianas, menos controladas. E, conforme nos mostra a experiência, ele teve sucesso, o que, para a ciência, é lamentável [p. 289].

Não se pode considerar que essa passagem seja séria do ponto de vista cientifico. Uma prova disso é que, em suas poucas palavras, existe uma contradição. Num mesmo fôlego, Smith admite serem princípios do “verdadeiro” valor tanto o esforço que é poupado pela posse de um bem, quanto o esforço que é repassado a outrem. Ora, essas duas medidas, todos o sabem, não são idênticas. Com a divisão de trabalho vigente, o esforço que eu pessoalmente teria de aplicar para obter a posse de certa coisa desejada é, em geral, bem maior do que o esforço com que um operário especializado a produz. Qual desses dois esforços, o “poupado” ou o “repassado”, determinará o verdadeiro valor?

Em suma, a famosa passagem em que o velho mestre Adam Smith introduz o princípio do trabalho na doutrina do valor fica bem distante do que se pretende ver nela: um grande e bem-fundamentado princípio científico básico. Essa passagem não é óbvia, não apresenta fundamento em palavra alguma. Além de ter a forma e a natureza negligentes de uma frase vulgar, encerra uma contradição em si mesma. Na minha opinião, o fato de ela geralmente merecer crédito deve-se a dois fatores: primeiro, ela foi emitida por um Adam Smith; segundo, ele a emitiu sem qualquer fundamentação. Se Adam Smith tivesse dirigido ao interlocutor uma só palavra que a fundamentasse – ao invés de falar apenas para a emoção – o interlocutor não teria desistido do seu direito de colocar a prova esse fundamento, o que certamente faria aparecer sua precariedade. Esse tipo de doutrina só vence pela surpresa.

Vejamos o que Smith e, depois dele, Ricardo têm a dizer:

“O trabalho foi o primeiro preço, o dinheiro de compra original, que se pagou por todas as coisas.” Essa frase é irrefutável, mas não prova nada para o princípio do valor.

“Naquele estado primitivo e rude da sociedade em que acontece a acumulação de capitais e a apropriação de terra, a relação entre as diversas quantidades de trabalho necessárias à aquisição de diversos objetos parece ser a única circunstância capaz de dar uma norma para a troca recíproca. Quando, por exemplo, uma tribo de caçadores gasta na caça de um castor duas vezes mais do que na caça de um cervo, naturalmente um castor comprará ou valerá dois cervos. É natural que aquilo que habitualmente é produto de trabalho de dois dias ou de duas horas de trabalho valha duas vezes o que é produto de um dia ou uma hora.”

Também nessas palavras procuraremos em vão qualquer fundamento. Smith diz simplesmente “parece”, “deve ser natural”, “é natural” [p. 290] etc., mas deixa que o leitor se convença por si da “naturalidade” dessas palavras. Aliás, tarefa que pois os primeiros, via de regra, se levam dez dias para encontrar, enquanto o cervo habitualmente se caça depois de um segundo condições de tempo de trabalho, teria de ser natural também, por exemplo, que uma borboleta rara e colorida, ou uma rã comestível, valesse dez vezes mais do que um cervo, pois os primeiros, via de regra, se levam dez dias para encontrar, enquanto o cervo habitualmente se caça depois de um dia de trabalho. É uma relação cuja “naturalidade” dificilmente parecerá óbvia a quem quer que seja.

Creio poder resumir da seguinte maneira o resultado dessas últimas considerações: Smith e Ricardo afirmaram axiomaticamente, sem nenhuma fundamentação, que o trabalho é princípio do valor dos bens. No entanto, não se trata de um axioma. Consequentemente, se quisermos manter este princípio, devemos ignorar Smith e Ricardo como autoridades, e procurar fundamentações independentes.

É muito singular que quase ninguém entre os seus sucessores tenha feito isso. Os mesmos homens que normalmente varavam as doutrinas tradicionais com sua crítica devastadora, os mesmos para quem não havia princípio antigo que parecesse suficientemente firme, a ponto de não precisar ser novamente questionado e examinado, esses mesmos homens renunciaram a qualquer crítica diante do princípio fundamental mais importante tomado da doutrina tradicional. De Ricardo a Rodbertus, de Sismondi a Lassalle, o nome Adam Smith é o único aval que se julga necessário para aquela doutrina. Como contribuição original só acrescentaram a essa doutrina repetidas afirmações de que o princípio é verdadeiro, irrefutável, indubitável. Não houve qualquer tentativa de realmente provar sua veracidade, de refutar possíveis objeções, de eliminar dúvidas. Os que desprezam provas baseadas em autoridades contentam-se, eles próprios, com a invocação de autoridades. Os que lutavam contra afirmações infundadas contentam-se, eles próprios, em afirmar, sem comprovação. Só muito poucos defensores da teoria do valor do trabalho constituem exceção a essa regra, e um desses poucos é Marx.

C. Exame e refutação da proposição básica de Marx

8. Marx escolheu um método de análise defeituoso

Alguém que busque uma verdadeira fundamentação da tese em questão poderá encontrá-la através de dois caminhos naturais: o empírico e o psicológico. O primeiro caminho nos leva a simplesmente examinar as condições de troca entre mercadorias, procurando ver se nelas se espelha uma harmonia empírica entre valor de troca e gasto de trabalho. O outro – com uma mistura de indução e dedução muito usada em nossa ciência – nos leva a analisar os motivos psicológicos que norteiam as pessoas nas trocas e na determinação de preços, ou em sua participação na produção. Da natureza dessas condições de troca poderíamos tirar conclusões sobre o comportamento típico das pessoas. Assim, descobriríamos, também, uma relação entre preços regularmente pedidos e aceitos, de um lado, e a quantidade de trabalho necessária para produzir mercadorias de outro [p. 291]. Mas Marx não adotou nenhum desses dois métodos naturais de investigação. É muito interessante constatar, em seu terceiro volume, que ele próprio sabia muito bem que nem a comprovação dos fatos nem a análise dos impulsos psicológicos que agem na “concorrência” teriam bom resultado para a comprovação de sua tese.

Marx opta por um terceiro caminho de comprovação, aliás, um caminho bastante singular para esse tipo de assunto: a prova puramente lógica, uma dedução dialética tirada da essência da troca.

Marx já encontrara no velho Aristóteles que “a troca não pode existir sem igualdade, e a igualdade não pode existir sem a comensurabilidade” (I, p. 35). Marx adota esse pensamento. Imagina a troca de duas mercadorias na forma de uma equação, deduz que nas duas coisas trocadas, portanto igualadas, tem de existir “algo comum da mesma grandeza”, e conclui propondo-se a descobrir essa coisa em comum, à qual se devem poder “reduzir, como valores de troca, as coisas equiparadas.”11

9. Fatos que antecedem uma troca devem evidenciar antes desigualdade do que igualdade

Eu gostaria de intercalar aqui um comentário. Mesmo a primeira pressuposição – a de que na troca de duas coisas existe uma “igualdade” das duas, igualdade essa que se manifesta, o que, afinal, não significa grande coisa – me parece um pensamento muito pouco moderno e também muito irrealista, ou, para ser bem claro, muito precário. Onde reinam igualdade e equilíbrio perfeitos não costuma surgir qualquer mudança em relação ao estado anterior. Por isso, quando no caso da troca tudo termina com as mercadorias trocando de dono, é sinal de que esteve em jogo alguma desigualdade ou preponderância que forçou a alteração. Exatamente como as novas ligações químicas que surgem a partir da aproximação: entre elementos de corpos: muitas vezes o “parentesco” químico entre os elementos do corpo estranho aproximado não é forte, mas é mais forte do que o “parentesco” existente entre os elementos da composição anterior. De fato, a moderna Economia é unânime em dizer que a antiga visão escolástico-teológica da “equivalência” de valores que se trocam é incorreta [p. 292]. Mas não darei maior importância a esse assunto, e volto-me agora ao exame crítico daquelas operações lógicas e metódicas através das quais o trabalho termina por surgir como aquela coisa em “comum” à qual as coisas equiparadas se poderiam reduzir.

10. Método intelectual errôneo de Marx

Para a sua busca desse algo em “comum” que caracteriza o valor de troca, Marx procede da seguinte maneira: coteja as várias características dos objetos equiparados na troca e, depois, pelo método de eliminação das diferenças, exclui todas as que não passam nessa prova, até restar, por fim, uma única característica, a de ser produto de trabalho. Conclui, então, que seja esta a característica comum procurada.

É um procedimento estranho, mas não condenável. É estranho que, em vez de testar a característica de modo positivo – o que teria levado a um dos dois métodos antes comentados, coisa que Marx evitava -, ele procure convencer-se, pelo processo negativo, de que a qualidade buscada é exatamente aquela, pois nenhuma outra é a que ele procura, e a que ele procura tem de existir. Esse método pode levar à meta desejada quando é empregado com a necessária cautela e integridade, ou seja, quando se tem, escrupulosamente, o cuidado necessário para que entre realmente, nessa peneira lógica, tudo o que nela deve entrar para que depois não se cometa engano em relação a qualquer elemento que porventura fique excluído da peneira.

Mas como procede Marx?

Desde o começo, ele só coloca na peneira aquelas coisas trocáveis que têm a característica que ele finalmente deseja extrair como sendo a “característica em comum”, deixando de fora todas as outras que não a têm. Faz isso como alguém que, desejando ardentemente tirar da urna uma bola branca, por precaução coloca na urna apenas bolas brancas. Ele limita o campo da sua busca da substância do valor de troca às “mercadorias”. Esse conceito, sem ser cuidadosamente definido, é tomado como mais limitado do que o de “bens” e se limita a produtos de trabalho, em oposição a bens naturais. Aí, então, fica óbvio que, se a troca realmente significa uma equiparação que pressupõe a existência de algo “comum da mesma grandeza”, esse “algo comum” deve ser procurado e encontrado em todas as espécies de bens trocáveis: não só nos produtos de trabalho, mas também nos dons da natureza, como terra, madeira no tronco, energia hidráulica, minas de carvão, pedreiras, jazidas de petróleo, águas minerais, minas de ouro etc.12 Excluir, na busca do algo “comum” que há na base do valor de troca, aqueles bens trocáveis que não sejam bens de trabalho é, nessas circunstâncias, um pecado mortal metodológico [p. 293]. É como se um físico que quisesse pesquisar o motivo de todos os corpos terem uma característica comum, como o peso, por exemplo, selecionasse um só grupo de corpos, talvez o dos corpos transparentes, e, a seguir, cotejasse todas as características comuns aos corpos transparentes, terminando por demonstrar que nenhuma das características – a não ser a transparência – pode ser causa de peso, e proclamasse, por fim, que, portanto, a transparência tem de ser a causa do peso.

A exclusão dos dons da natureza (que certamente jamais teria ocorrido a Aristóteles, pai da idéia da equiparação na troca) não pode ser justificada, principalmente porque muitos dons naturais, como o solo, são dos mais importantes objetos de fortuna e comércio. Por outro lado, não se pode aceitar a afirmação de que, em relação aos dons naturais, os valores de troca são sempre casuais e arbitrários: não só existem preços eventuais para produtos de trabalho, como também, muitas vezes, os preços de bens naturais revelam relações nítidas com critérios ou motivos palpáveis. É conhecido que o preço de compra de terras constitui um múltiplo da sua renda segundo a porcentagem de juro vigente. É também certo que, se a madeira no tronco ou o carvão na mina obtêm um preço diferente, isso decorre da variação de localização ou de problemas de transporte e não do mero acaso.

Marx se exime de justificar expressamente o fato de haver excluído do exame anterior parte dos bens trocáveis. Como tantas vezes, também aqui sabe deslizar sobre partes espinhosas de seu raciocínio com uma escorregadia habilidade dialética: ele evita que seus leitores percebam que seu conceito de “mercadoria” é mais estreito do que o de “coisa trocável”. Para a futura limitação no exame das mercadorias, ele prepara com incrível habilidade um ponto de contato natural, através de uma frase comum, aparentemente inofensiva, posta no começo do seu livro: “A riqueza das sociedades em que reina a produção capitalista aparece como uma monstruosa coleção de mercadorias.” Essa afirmação é totalmente falsa se entendermos o termo “mercadoria” no sentido de produto de trabalho, que o próprio Marx lhe confere mais tarde. Pois os bens da natureza, incluindo a terra, são parte importante e em nada diferente da riqueza nacional. Mas o leitor desprevenido facilmente passa por essas inexatidões, porque não sabe que mais tarde Marx usará a expressão “mercadoria” num sentido muito mais restrito.

Aliás, esse sentido também não fica claro no que se segue a essa frase [p. 294]. Ao contrário, nos primeiros parágrafos do primeiro capitulo fala-se alternadamente de “coisa”, de “valor de uso”, de “bem” e de “mercadoria”, sem que seja traçada uma distinção nítida entre estes termos. “A utilidade de uma coisa”, escreve ele na p. 10, “faz dela um valor de uso”. “A mercadoria…é um valor de uso ou bem”. Na p. 11, lemos: “o valor de troca aparece… como relação quantitativa… na qual valores de uso de uma espécie se trocam por valorem de uso de outra.” Note-se que aqui se considera primordialmente no fenômeno do valor de troca também a equação valor de uso = bem. E com a frase “examinemos a coisa mais de perto”, naturalmente inadequada para anunciar o salto para outro terreno, mais estreito, de análise, Marx prossegue: “Uma só mercadoria, um ‘moio’ de trigo, troca-se nas mais diversas proporções por outros artigos.” E ainda: “tomemos mais duas mercadorias” etc. Aliás, nesse mesmo parágrafo ele volta até com a expressão “coisas”, e logo num trecho muito importante, em que diz que “algo comum da mesma grandeza existe em duas coisas diferentes” (que são equiparadas na troca).

11. A falácia de Marx consiste numa seleção tendenciosa de evidências

No entanto, na p. 12, Marx prossegue na sua busca do “algo comum” já agora apenas para o “valor de troca das mercadorias”, sem chamar a atenção, com uma palavra que seja, para o fato de que isso estreitará o campo de pesquisa, direcionando-o para apenas uma parcela das coisas trocáveis.13

Logo na página seguinte (p. 13), ele abandona de novo essa limitação, e a conclusão, a que há pouco havia chegado para o campo mais restrito das mercadorias, passa a ser aplicada ao círculo mais amplo dos valores de uso dos bens. “Um valor de uso ou bem, portanto, só tem um valor, na medida em que o trabalho humano abstrato se materializa ou se objetiva nele!”

Se, no trecho decisivo, Marx não tivesse limitado sua pesquisa aos produtos de trabalho, mas tivesse também procurado o “algo comum” entre os bens naturais trocáveis, ficaria patente que o trabalho não pode ser o elemento comum. Se Marx tivesse estabelecido essa limitação de maneira clara e expressa, tanto ele quanto seus leitores infalivelmente teriam tropeçado nesse grosseiro erro metodológico. Teriam sorrido desse ingênuo artifício, através do qual se “destila”, como característica comum, o fato de “ser produto de trabalho”, pesquisando num campo do qual antes foram indevidamente retiradas outras coisas trocáveis que, embora comuns, não são “produto do trabalho”. Só seria possível lançar mão deste artifício da maneira como o fez, ou seja, sub-repticiamente, com uma dialética ríspida, passando bem depressa pelo ponto espinhoso da questão. Expresso minha admiração sincera pela habilidade com que Marx apresentou de maneira aceitável um processo tão errado, o que, sem dúvida, não o exime de ter sido inteiramente falso [p. 295].

Continuemos. Através do artifício acima descrito, Marx conseguiu colocar o trabalho no jogo. Através da limitação artificial do campo de pesquisa, o trabalho se tomou a característica “comum”. No entanto, além dele, há outras características que deveriam ser levadas em conta, por serem comuns. Como afastar essas concorrentes?

Marx faz isso através de dois raciocínios, ambos muito breves, e ambos contendo um gravíssimo erro de lógica

No primeiro, Marx exclui todas as “características geométricas, físicas, químicas ou quaisquer outras características naturais das mercadorias”. Isso porque “suas características físicas só serão levadas em conta na medida em que as tornam úteis, portanto as transformam em valores de uso. Mas por outro lado, a relação de troca das mercadorias aparentemente se caracteriza pela abstração de seus valores de uso”. Pois “dentro dela (da relação de troca) um valor de uso cabe tanto quanto outro qualquer, desde que exista aí em proporção adequada” (I, p. 12).

O que diria Marx do argumento que segue? Num palco de ópera, três cantores, todos excelentes, um tenor, um baixo e um barítono, recebem, cada um, um salário de 20.000 dólares por ano. Se alguém perguntar qual é a circunstância comum que resulta na equiparação de seus salários, respondo que, quando se trata de salário, uma boa voz vale tanto quanto outra: uma boa voz de tenor vale tanto quanto uma boa voz de baixo, ou de barítono, o que importa é que a proporção seja adequada. Assim, por poder ser, “aparentemente”, afastada da questão salarial, a boa voz não pode ser a causa comum do salário alto.

É claro que tal argumentação é falsa. É igualmente claro também que é incorreta a conclusão a que Marx chegou, e que foi por mim aqui transcrita. As duas sofrem do mesmo erro. Confundem a abstração [p. 296] de uma circunstância em geral com a abstração das modalidades específicas nas quais essa circunstância aparece. O que, em nosso exemplo, é indiferente, para a questão salarial, é apenas a modalidade especifica da boa voz, ou seja, se se trata de voz de tenor, baixo ou barítono. Mas não a boa voz em si. Da mesma forma, para a relação de troca das mercadorias, abstrai-se da modalidade específica sob a qual pode aparecer o valor de uso das mercadorias, quer sirvam para alimentação, quer sirvam para moradia ou para roupa. Mas não se pode abstrair do valor de uso em si. Marx deveria ter deduzido que não se pode fazer abstração desse último, pelo fato de que não existe valor de troca onde não há valor de uso. Fato que o próprio Marx é forçado a reconhecer repetidamente.14

Mas coisa pior acontece com o passo seguinte dessa cadeia de argumentação. “Se abstrairmos do valor de uso das mercadorias”, diz Marx textualmente, “resta-lhes só mais uma característica, a de serem produtos de trabalho”. Será mesmo? Só mais uma característica? Acaso bens com valor de troca não têm, por exemplo, outra característica comum, qual seja, a de serem raros em relação à sua oferta? Ou de serem objetos de cobiça e de procura? Ou de serem ou propriedade privada ou produtos da natureza? E ninguém diz melhor nem mais claramente do que o próprio Marx que as mercadorias são produtos tanto da natureza quanto do trabalho: Marx afirma que “as mercadorias são combinação de dois elementos, matéria-prima e trabalho”, e cita Petty num trecho em que este diz que “o trabalho é o pai (da riqueza) e a terra é sua mãe”.15

Por que, pergunto eu, o princípio do valor não poderia estar em qualquer uma dessas características comuns, tendo de estar só na de ser produto de trabalho? Acresce que, a favor dessa última hipótese, Marx não apresenta qualquer tipo de fundamentação positiva. A única razão que apresenta é negativa, pois diz que o valor de uso, abstraído, não é princípio de valor de troca. Mas essa argumentação negativa não se aplica, com igual força, a todas as outras características comuns, que Marx ignorou?

E há mais ainda! Na mesma p. 12, em que Marx abstraiu da influência do valor de uso no valor de troca, argumentando que um valor de uso é tão importante quanto qualquer outro, desde que exista em proporção adequada, ele nos diz o seguinte sobre o produto de trabalho: “Mas também o produto de trabalho já se transformou em nossas mãos. Se abstrairmos do seu valor de uso, abstrairemos também dos elementos materiais e das formas que o tornam valor de uso. Ele já não será mesa, casa ou fio, ou outra coisa útil. Todas as suas características sensoriais serão eliminadas. Ele não será produto de trabalho em marcenaria, construção ou tecelagem, ou outro trabalho produtivo. O caráter utilitário dos trabalhos corporificados nos produtos de trabalho desaparece se desaparecer o caráter utilitário destes produtos de trabalho, da mesma forma que desaparecem as diversas formas concretas desse trabalho: elas já não se distinguem; são reduzidas a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato.”

Será que se pode dizer, de modo mais claro e explícito, que, para a relação de troca, não apenas um valor de uso, mas uma espécie de trabalho, ou produto de trabalho, “vale tanto quanto qualquer outro, desde que exista na proporção adequada”? E que se pode aplicar ao trabalho exatamente o mesmo critério em relação ao qual Marx antes pronunciou seu veredito de exclusão contra o valor de uso? Trabalho e valor de uso têm, ambos, um aspecto quantitativo e outro qualitativo. Assim como o valor de uso é qualitativamente diverso em relação a mesa, casa ou fio, assim também são qualitativamente diferentes os trabalhos de marcenaria, de construção ou de tecelagem. Por outro lado, trabalhos de diferentes tipos podem ser diferenciados em função de sua quantidade, enquanto é possível comparar valores de uso de diferentes tipos segundo a magnitude do valor de uso. É absolutamente inconcebível que [p. 297] circunstâncias idênticas levem, ao mesmo tempo, à exclusão de alguns elementos e à aceitação de outros!

Se, por acaso, Marx tivesse alterado a seqüência de sua pesquisa, teria excluído o trabalho com o mesmo raciocínio com que exclui o valor de uso. Com o mesmo raciocínio com que premiou o trabalho, proclamaria, então, que o valor de uso, por ser a única característica que restou, é aquela característica comum tão procurada. A partir daí poderia explicar o valor como uma “cristalização do valor de uso”. Creio que se pode afirmar, não em tom de piada, mas a sério, que nos dois parágrafos da p. 12 onde se abstrai, no primeiro, a influência do valor de uso e se demonstra, no segundo, que o trabalho é o “algo comum” que se buscava, esses dois elementos poderiam ser trocados entre si sem alterar a correção lógica externa. E que, sem mudar a estrutura da sentença do primeiro parágrafo, se poderia substituir “valor de uso” por “trabalho e produtos de trabalho”, e na estrutura da segunda colocar, em lugar de “trabalho”, o “valor de uso”!

12. Idéia de Böhm-Bawerk de que Marx tinha “um intelecto de primeira categoria”

Assim é a lógica e o método com que Marx introduz em seu sistema o princípio fundamental de que o trabalho é a única base do valor. Como já afirmei recentemente em outra parte,16 julgo totalmente impossível que essa ginástica dialética fosse a fonte e a real justificativa da convicção de Marx. Um pensador da sua categoria – e considero-o um pensador de primeiríssima ordem – caso desejasse chegar a uma convicção própria, procurando com olhar imparcial a verdadeira relação das coisas, jamais teria partido por caminhos tão tortuosos e antinaturais. Seria impossível que ele tivesse, por mero e infeliz acaso, caído em todos os erros lógicos e metodológicos acima descritos, obtendo, como resultado não conhecido nem desejado, essa tese do trabalho como única fonte de valor.

Creio que a situação real foi outra. Não duvido de que Marx estivesse sinceramente convencido de sua tese. Mas os motivos de sua convicção não são aqueles que estão apresentados em seus sistemas. Ele acreditava na sua tese como um fanático acredita num dogma. Sem dúvida, foi dominado por ela por causa das mesmas impressões vagas, eventuais, não bem controladas pelo intelecto, que antes dele já tinham desencaminhado Adam Smith e Ricardo, e sob influência dessas mesmas autoridades. E ele, certamente, jamais alimentou a menor dúvida quanto à correção dessa tese. Seu princípio tinha, para ele próprio, a solidez de um axioma. No entanto, ele teria de prová-lo aos leitores, o que não conseguiria fazer nem empiricamente nem segundo a psicologia que embasa a vida econômica.

Voltou-se, então, para essa especulação lógico-dialética que estava de acordo com sua orientação intelectual. E trabalhou, e revolveu os pacientes concertos e premissas, com uma espécie de admirável destreza, até obter realmente o resultado que desejava e que já de antemão conhecia, na forma de uma conclusão externamente honesta.

Conforme vimos acima, Marx teve pleno sucesso nessa tentativa de fundamentar convincentemente sua tese, enveredando pelos caminhos da dialética. Mas será que teria obtido algum amparo se tivesse seguido [p. 298] aqueles caminhos específicos que evitou, ou seja, o empírico e o psicológico?

13. Outros métodos de abordagem que não os de Marx

No segundo volume do presente trabalho – sua parte principal e positiva -, veremos que a análise dos motivos psicológicos que influenciam o valor de troca levaria a um resultado diferente. Isso foi admitido até por Marx no seu terceiro volume póstumo17. Resta, pois, a prova empírica a prova da experiência factual. O que esta nos revelaria?

14. Cinco exceções factuais negligenciadas por Marx

A experiência mostra que o valor de troca está em relação com a quantidade de trabalho apenas em parte dos bens, e, mesmo nesses, isto só acontece incidentalmente. A relação factual, embora seja muito conhecida em decorrência da obviedade dos fatos em que se baseia, é raramente levada em conta. Todo mundo – inclusive os intelectuais socialistas – concorda que a experiência não confirma inteiramente o princípio do trabalho, Frequentemente encontramos a opinião de que os casos em que a realidade está de acordo com o princípio do trabalho formam a regra geral, e que os casos que contrariam esse princípio são uma exceção bastante insignificante. Essa idéia é muito errônea. Para corrigi-la de uma vez por todas, pretendo reunir as “exceções” que proliferam no início do trabalho, dentro da Economia. Verão que as “exceções” são tão numerosas, que pouco sobra para a “regra”.

1) Em primeiro lugar, todos os “bens raros” foram excluídos do princípio do trabalho. Esses são todos os bens que não podem nunca – ou só podem limitadamente – ser reproduzidos em massa, por algum impedimento objetivo ou legal. Ricardo menciona, por exemplo, estátuas e quadros, livros raros, moedas raras, vinhos excelentes, e comenta ainda que esses bens “são apenas uma parte muito pequena dos bens diariamente trocados no mercado”. Se pensarmos que nessa mesma categoria se situam, além da terra, todos os inúmeros bens cuja produção está relacionada à patente de invenção, direitos autorais ou segredo industrial, não se consideraria insignificante a extensão de tais bens.18

2) Todos os bens que não se produzem por trabalho comum, mas qualificado, são considerados como exceção. Embora nos produtos diários de um escultor, de um marceneiro especializado, de um fabricante de violinos. [p. 299], ou de um consultor de máquina etc., não se corporifique mais trabalho do que no produto diário de um simples trabalhador manual, ou de -um operário de fábrica, os produtos dos primeiros frequentemente têm valor de troca mais elevado – às vezes muito mais elevado – que os dos segundos.

Os defensores da teoria do valor do trabalho naturalmente não puderam ignorar essa exceção. Porém, singularmente, fazem de conta que isso não é exceção, mas apenas uma pequena variante, que ainda se mantém dentro da regra. Marx, por exemplo, considera o trabalho qualificado apenas um múltiplo do trabalho comum. “O trabalho complexo”, diz ele, (p. 19), “vale só como trabalho comum potenciado, ou multiplicado. Assim, uma pequena quantidade de trabalho complexo equivale a uma quantidade maior de trabalho comum. A experiência nos mostra que essa redução acontece constantemente. Uma mercadoria pode ser produto de um trabalho complexo mas, se seu valor a iguala ao produto de trabalho comum, ela passa a representar apenas determinada quantidade de trabalho comum”.

Eis urna obra-prima de espantosa ingenuidade! Não há nenhuma dúvida de que em muitas coisas, por exemplo, no valor monetário, um dia de trabalho de um escultor pode valer cinco dias de trabalho de um cavador de valetas. Mas que 10 horas de trabalho do escultor sejam realmente 60 horas de trabalho comum, certamente ninguém pretende afirmar. Acontece que, para a teoria – assim como para se estabelecer o princípio do valor – não importa o que as pessoas pretendem, e sim o que é real. Para a teoria, o produto diário do escultor continua sendo produto de um dia de trabalho. Se, por acaso, um bem que seja produto de um dia de trabalho vale tanto quanto outro bem que seja produto de cinco dias de trabalho, não importa o que as pessoas queiram que ele valha. E ai está uma exceção à regra – que se quer impor – de que o valor de troca dos bens se mede pela quantidade de trabalho humano neles corporificado. Imaginemos uma ferrovia que determinasse suas tarifas segundo a extensão do trajeto exigido por passageiros e cargas, mas que determinasse, também, que, dentro de um trecho com operações particularmente dispendiosas, cada quilômetro fosse computado como dois quilômetros. Será possível a alguém dizer que a extensão do trajeto é o único princípio para a determinação das tarifas da ferrovia? Certamente não; finge-se que sim, mas, na verdade, o princípio é modificado levando em conta a natureza do trajeto. Assim também; apesar de todos os artifícios, não se pode salvar a unidade teórica do princípio do trabalho.19

Essa segunda exceção abrange também significativa parcela dos bens comerciais, o que não deve ser necessário explicar mais detidamente. Se quisermos ser rigorosos, estão aí contidos praticamente todos os bens, uma vez que na produção individualizada de quase todos os bens entra em jogo ao menos um pouco de trabalho qualificado: o trabalho de um inventor, de um diretor, de um capataz etc. [p. 300]. Isso eleva o valor do produto a um nível um pouco acima daquele que corresponderia apenas a quantidade de trabalho.

3) A quantidade de exceções aumenta com o número bastante grande de bens produzidos por trabalho extraordinariamente mal pago É sabido que – por razões que aqui não se precisa mencionar – em certos ramos da produção o salário de trabalho está sempre abaixo do mínimo necessário para a sobrevivência, como, por exemplo, no caso do trabalho manual feminino, como bordados, costura, malharia etc. Os produtos dessas ocupações têm, então, um valor extraordinariamente baixo. Não é incomum que o produto de três dias de trabalho de uma simples costureira não valha nem mesmo o produto de dois dias de uma operária de fábrica.

Todas as exceções que mencionei até aqui eximem certos grupos de bens da validade da lei do valor do trabalho, reduzindo, pois, o campo de validade desta própria lei. Na verdade, deixam para a lei do valor do trabalho apenas aqueles bens para cuja reprodução não há qualquer limite, e que nada exigem para sua criação além de trabalho. Mas mesmo esse campo de aplicabilidade tão reduzido não é dominado de modo absoluto pela lei do valor do trabalho: também aí, algumas exceções afrouxam sua validade.

4) Uma quarta exceção do princípio do trabalho é formada pelo conhecido e admitido fenômeno de que também aqueles bens cujo valor de troca se harmonize com a quantidade de custos de trabalho não demonstram tal harmonia em todos os momentos. Ao contrário, pelas oscilações de oferta e procura, frequentemente o valor de troca sobe ou desce além ou aquém daquele nível que corresponderia ao trabalho corporificado naqueles bens, trabalho esse que só determinaria um ponto de gravitação, não uma fixação do valor de troca. Parece-me que os defensores socialistas do princípio do trabalho também se ajeitam depressa com essa exceção. Constatam-na, sim, mas a tratam como uma pequena irregularidade passageira, que em nada prejudica a grande “lei” do valor de troca. Mas não se pode negar que tais irregularidades não são mais que exemplos de valores de troca regulados por outros motivos que não a quantidade de trabalho. Esse fato deveria provocar pelo menos uma investigação, no sentido de examinar a possibilidade de existir um princípio mais geral do valor de troca, que explicaria não só os valores de troca “regulares”, mas também aqueles que – do ponto de vista da teoria do trabalho – são tidos como irregulares. Nenhuma investigação desse tipo será encontrada entre os teóricos dessa linha.

5) Por fim vemos que, além dessas oscilações momentâneas, o valor de troca dos bens se desvia da quantidade de trabalho que eles corporificam, de maneira considerável e constante [p. 301]. De dois bens cuja produção exige exatamente a mesma quantidade média de trabalho, aquele que exigiu maior quantidade de trabalho “prévio” vale mais. Como sabemos, Ricardo comentou extensamente essa exceção do princípio de trabalho, em duas seções do Capitulo I de suas Grundsätze. Rodbertus e Marx a ignoram na formulação de suas teorias,20 sem a negarem expressamente, o que não poderiam fazer: É conhecido demais, para admitir dúvidas, o fato de que o valor de um tronco de carvalho centenário é mais elevado do que o correspondente ao meio-minuto que sua semeadura requer.

Vamos resumir: parcela considerável dos bens não faz parte daquela presumida “lei” segundo a qual o valor dos bens é determinado pela quantidade de trabalho neles corporificada, e o restante dos bens nem obedece sempre, nem com exatidão. Esse é o material empírico que serve de base para os cálculos do teórico do valor.

Que conclusão um investigador imparcial pode tirar? Certamente não será a de que a origem e medida de todo valor se fundamenta exclusivamente no trabalho. Uma conclusão dessas não seria em nada melhor do que aquela a que se poderia chegar, pelo método experimental – a partir da constatação de que a eletricidade vem não só do atrito mas também de outras fontes -: toda eletricidade provém de atrito.

Em contrapartida, pode-se concluir que o dispêndio de trabalho exerce ampla influência sobre o valor de troca de muitos bens. Mas não como causa definitiva, comum a todos os fenômenos de valor, e sim como causa eventual, particular. Não haverá a necessidade de procurar uma fundamentação interna para essa influência do trabalho sobre o valor, pois ela não seria encontrada. Pode também ser interessante – além de importante – observar melhor a influência do trabalho sobre o valor dos bens, e expressar esses resultados na forma de leis. Mas não se pode esquecer que estas não serão mais que leis particulares, que em nada atingem a essência do valor.21 Para usar de uma comparação: leis que formulam a influência do trabalho no valor dos bens estão para a lei geral do valor mais ou menos como a lei “Vento oeste traz chuva” está para uma teoria geral da chuva. Vento oeste é uma causa eventual de chuva, como o emprego de trabalho é causa eventual do valor dos bens. Mas a essência da chuva se fundamenta tão pouco no vento oeste quanto o valor se fundamenta no emprego de trabalho.

15. Marx agravou o erro de Ricardo

O próprio Ricardo ultrapassou pouco as fronteiras legítimas. Como demonstrei acima [p. 302], ele sabe muito bem que sua lei do valor do trabalho é somente uma lei particular de valor, e que o valor dos “bens raros”, por exemplo, tem outros fundamentos. Mas Ricardo engana-se na medida em que valoriza demais o campo de abrangência dessa lei, atribuindo-lhe uma validade praticamente universal. A este engano pode-se relacionar o fato de que, em fases posteriores, ele praticamente não dá mais atenção as exceções, pouco valorizadas, que no começo de sua obra mencionara com bastante acerto. E muitas vezes – injustamente – fala de sua lei como se ela fosse realmente uma lei universal de valor.

Foram os seus sucessores – que ampliaram o campo de abrangência dessa lei – que caíram no erro quase inconcebível de apresentar o trabalho, com pleno e consciente rigor, como princípio universal de valor. Digo “erro quase inconcebível”, pois, com efeito, é difícil acreditar que homens de formação teórica pudessem firmar, depois de reflexão madura, uma doutrina que não podiam apoiar em coisa alguma: nem na natureza da coisa, uma vez que nesta natureza não se revela absolutamente nenhuma relação necessária entre valor e trabalho; nem na experiência, pois esta, ao contrário, mostra que o valor geralmente não se coaduna com o dispêndio de trabalho; nem mesmo, por fim, nas autoridades, pois as autoridades invocadas jamais afirmaram o princípio com aquela pretendida universalidade que agora lhe era conferida.

Mas os seguidores socialistas da teoria da exploração, quando apresentam um princípio tão precário, não o colocam numa posição secundária, em algum ângulo inofensivo de sua doutrina teórica. Colocam-no no topo de suas afirmações práticas mais importantes. Sustentam que o valor de todas as mercadorias repousa no tempo de trabalho nelas corporificado. Em outro momento, atacam todos os valores que não se coadunam com essa “lei” (por exemplo, diferenças de valor que recaem como mais-valia para os capitalistas), dizendo-os “ilegais”, “antinaturais” e “injustos”, e condenando-os a anulação. Portanto, primeiro ignoram a exceção e proclamam a lei do valor como sendo universal. Em seguida, após terem obtido, sub-repticiamente, a universalidade dessa lei, voltam a prestar atenção às exceções, rotulando-as de infração dessa lei. Com efeito, tal argumentação não é muito melhor do que a de alguém que constate que existe gente louca, – ignorando que também há gente sensata – e que, a partir desta constatação, chegue a uma “lei de valor universal” segundo a qual “todas as pessoas são loucas”, exigindo que se exterminem todos os sábios, considerados “fora da lei”.

16. Dois volumes póstumos contraditórios no sistema marxista (por Engels: Vol. II, em 1885, e Vol. III, em 1894)

Na primeira edição da presente obra, há muitos anos, dei meu veredito sobre a lei do valor do trabalho em si, e particularmente sobre a fundamentação, que Marx lhe deu. Depois disso apareceu o terceiro volume, póstumo, de O Capital de Marx. Sua publicação era esperada com certa tensão nos meios teóricos de todas as orientações [p. 303]. Esperava-se, com curiosidade, o modo como Marx se livraria de certa dificuldade que o confundira no primeiro volume, e que, além de continuar sem resolução, não era mais mencionada.

Já comentei, quanto a Rodbertus, que a pressuposição imanente à lei do trabalho, de que os bens se trocam segundo o trabalho a eles ligado, é absolutamente conflitante com outra pressuposição do mesmo Rodbertus, claramente apresentada como fato empírico: a de que existe um nivelamento dos ganhos de capital.22 Naturalmente, também Marx sentiu essa dificuldade, que, para ele, se mostrava ainda mais drástica, uma vez que, na sua doutrina, a parte que contém o ponto crucial está formulada com ênfase particular, o que, por assim dizer, desafia tal dificuldade.

Marx distingue, no capital que serve aos capitalistas para obterem a mais-valia, duas partes: aquela que serve para pagar os salários do trabalho, ou seja, o “capital variável”, e aquela que é empregada em meios de produção como a matéria-prima os instrumentos e máquinas, e assim por diante, que é o “capital constante”. Como só o trabalho vivo pode produzir a nova noção de mais-valia, também só a parte de capital transformada em forma de trabalho pode modificar, aumentar seu valor no processo de produção, motivo pelo qual Marx chama esta parte de “capital variável”. Só este reproduz seu próprio valor, e, além disso, um superávit chamado de mais-valia. O valor dos meios de produção consumidos é mantido igual: reaparece no valor do produto de outra forma, mas com o mesmo tamanho; por isso, é chamado de “capital constante” e não pode “produzir mais-valia”. Como consequêcia necessária – que Marx destaca enfaticamente -, a massa de mais-valia que pode ser produzida com um capital não se liga diretamente ao montante do capital total, mas apenas à parte variável dele.23 Disso resulta também que capitais de igual montante têm de produzir uma quantidade desigual de mais-valia, quando sua composição em parcelas constantes e variáveis – chamada por Marx de “composição orgânica” – é diferente. Designemos, como faz Marx, a relação entre a mais-valia e a parte de capital variável, que paga os salários, de “porcentagem de mais-valia”; e designemos a relação entre a mais-valia e o capital total aplicado pelo empresário – na base do qual, na prática, se costuma calcular a mais-valia – de “porcentagem de lucro”. Marx diria, então, que, se o grau de exploração é igual ou se a porcentagem de mais-valia é a mesma, nesse caso, capitais de composição orgânica diferente necessariamente vão redundar em porcentagens de lucro diferentes. Capitais em que a composição apresenta parcela variável maior levarão a uma porcentagem de lucro maior do que a resultante daqueles capitais em cuja composição a parcela constante é mais elevada. Mas a experiência revela que, por causa da lei do nivelamento de ganhos, os capitais sempre redundam logo em altas porcentagens de lucro, independentemente de sua composição. Há, portanto, um conflito evidente entre o que é e o que deveria ser segundo a doutrina marxista.

O próprio Marx não ignorava esse conflito. Já o comentara laconicamente em seu primeiro volume, como se fosse apenas “aparente”, deixando sua solução para momentos posteriores de seu sistema .24 A longa e tensa espera para ver como Marx se esquivaria desse dilema fatal terminou, enfim, com a publicação do terceiro volume, que, apesar de conter um detalhado comentário do problema, não apresenta, para o mesmo, qualquer solução. Ao invés disso, como era de se esperar, confirma a contradição insolúvel, e glosa, de forma velada, sub-reptícia e suavizada, a doutrina do primeiro volume.

Marx desenvolve agora a seguinte doutrina: reconhece expressamente que, na realidade, por causa da concorrência, as porcentagens de lucro dos capitais – não importa qual sua composição orgânica – são igualadas numa porcentagem media de lucro, e isso tem de ser assim.25 Ele ainda reconhece expressamente que uma porcentagem igual de lucros para capitais cujas composições orgânicas são diferentes só é possível quando mercadorias isoladas não se trocam entre si segundo o seu valor determinado por trabalho, mas a partir de uma relação que se desvia desse valor. E a troca é feita de maneira tal que as mercadorias com proporção mais elevada de capital constante (capitais de “composição mais elevada”) se trocam acima do seu valor [p. 304]. Em contrapartida, as mercadorias em cuja criação participa capital com proporção mais baixa de capital constante e mais alta de capital variável (capitais de “composição mais baixa”) se trocam abaixo do seu valor.26 E Marx, por fim, reconhece expressamente que na vida prática o estabelecimento de preceitos realmente acontece assim. Ele denomina esse preço de uma mercadoria – preço que contém, além da recompensa pelos salários pagos e pelos meios de produção gastos (seu “preço de custo”), o lucro médio pelo capital empregado na produção – de “preço de produção” (III, p. 136). Este “corresponde, na verdade, ao mesmo que A. Smith chama de ‘natural price’, Ricardo, de ‘price of production’, e os fisiocratas, de ‘prix nécessaire’: a longo prazo ele é a condição do abastecimento, da reprodução da mercadoria em qualquer esfera especial de produção” (III, p. 178). Na vida real, pois, as mercadorias não se trocam mais segundo seus valores, mas segundo seus preços de produção, ou – como Marx prefere dizer eufemisticamente (p. ex., III, p. 176) – “os valores se transformam em preços de produção”.

É impossível, não reconhecer que essas afirmações e concessões do terceiro volume contradizem fortemente as doutrinas básicas do primeiro [p. 305]. No primeiro volume, apresentou-se aos leitores uma situação lógica e necessária, nascida da natureza da troca. Duas mercadorias igualadas entre si na troca devem conter algo em comum da mesma grandeza, e esse algo em comum de igual grandeza é o trabalho. No terceiro volume, lemos que as mercadorias igualadas na troca contém de fato, e regularmente, quantidades desiguais de trabalho, e isso tem de ser necessariamente assim. No primeiro volume (1, p.142) havia sido dito que “mercadorias podem ser vendidas à preços que se desviam dos seus valores, mas esse desvio aparece como infração da lei de troca de mercadorias”. Agora se diz que a lei de troca de mercadorias prevê que as mercadorias sejam vendidas por seus preços de produção, que se desviam fundamentalmente dos seus valores! Creio que jamais o início de um sistema tenha sido punido por sua mentira final de maneira tão severa e cabal!

Naturalmente, Marx não admite que haja nisso qualquer contradição. Também em seu terceiro volume ele proclama que a lei de valor do primeiro volume demonstra as verdadeiras condições da troca de bens, e não poupa esforços nem fugas dialéticas para demonstrar que essas condições ainda existem. Já comentei amplamente todos esses subterfúgios, demonstrando sua invalidade.27 Vou agora levar em conta, expressamente, apenas um deles, em parte por ser, à primeira vista, extremamente sedutor, em parte por ser defendido não só por Marx, ainda antes do terceiro volume, mas também por alguns dos mais brilhantes teóricos socialistas da atual geração. Em 1889, Konrad Schmidt tentou desenvolver, de forma independente mas ainda na linha de Marx, a parte incipiente da doutrina marxista.28 Sua teorização também desembocou no fato de que mercadorias isoladas não se trocam – como preconizava a lei de valor de Marx – segundo o trabalho nelas corporificado. Naturalmente, o autor se defrontou com a indagação: em que medida ainda se pode defender como válida a lei de valor de Marx, se é que se pode fazê-lo? Schmidt procurou, então, salvar essa validade com os mesmos argumentos dialéticos do terceiro volume de Marx.

Esses argumentos dizem que as mercadorias isoladas, de fato, são trocadas por valores abaixo ou acima do seu valor, mas que esses desvios se compensam e se anulam mutuamente. Assim, calculadas em conjunto, as mercadorias têm um preço que se iguala novamente a soma dos seus valores. Seria, pois, possível afirmar que, quando se considera o conjunto de todos os ramos de produção, a lei do valor é uma “tendência dominante”.29

Mas é muito fácil demonstrar a trama dialética dessa pseudo-argumentação [p. 306], como já expliquei em outra oportunidade.30

Afinal, qual é a tarefa da lei do valor? Nenhuma, senão explicar a relação de troca de bens que se observa. Queremos saber por que na troca, por exemplo, um casaco equivale a dez metros de linho, por que cinco quilos de chá equivalem a meia tonelada de ferro, e assim por diante. Foi a partir daí que o próprio Marx concebeu a lei do valor. Evidentemente, só se pode falar em relação de troca entre mercadorias diferentes entre si. No entanto, no momento em que colocamos todas as mercadorias juntas e somamos seus preços, estamos necessária e deliberadamente fazendo abstração da relação que há no interior desse conjunto. As diferenças relativas de preços existentes no interior desse conjunto compensam-se na soma total: o quanto o chá, por exemplo, vale mais que o ferro, corresponde ao quanto o ferro, por sua vez, vale menos que o chá, ou vice- versa. De qualquer modo, tal explicação não responde à nossa indagação sobre a relação da troca de bens na economia, pois só é válida para o preço total de todas as mercadorias juntas. Seria o mesmo que, a uma pergunta que fizéssemos sobre quantos segundos ou minutos o vencedor de uma prova teria levado a menos do que seus concorrentes para percorrer a pista, nos respondessem que todos os concorrentes juntos haviam levado 25 minutos e 13 segundos!

O problema é que os marxistas respondem à questão do valor com a sua lei do valor. Dizem que as mercadorias se trocam segundo o tempo de trabalho nelas corporificado. Depois, disfarçada ou abertamente, negam essa resposta quando se trata de troca de mercadorias isoladas – justamente neste terreno em que a pergunta mais caberia. Assim, sua lei do valor tem validade apenas para o produto nacional total, ou seja, num campo em que essa questão não faz sentido nem tem resposta. Assim, a “lei do valor” é desmentida pelos fatos. A única situação em que não é desmentida não traz uma boa resposta para a nossa pergunta, pois serviria de resposta a qualquer outra indagação.

Na verdade, essa resposta nem mesmo pode ser considerada como tal, uma vez que não passa de mera tautologia. Como qualquer economista sabe, mesmo nas formas mais veladas de transação monetária, mercadorias se trocam por mercadorias. Toda mercadoria que é objeto de troca, ao mesmo tempo é mercadoria, é também o preço que a ela corresponde. A soma das mercadorias é idêntica à soma dos preços obtidos por elas. Em outras palavras, o preço do produto nacional total nada mais é que o próprio produto nacional. Sob este ponto de vista é totalmente correto que a soma dos preços que se paga por todo o produto nacional combine inteiramente com o valor ou quantidade de trabalho cristalizada nele [p. 307]. Mas essa tautologia não significa progresso em direção a um verdadeiro conhecimento, nem pode servir como prova de que é correta a suposta lei de que os bens se trocam segundo o trabalho neles corporificado. Se fosse assim, essa seria uma maneira de se verificar qualquer outra “lei”, como, por exemplo, a “lei” de que os bens se trocam segundo medida do seu peso específico! Pois embora meio quilo de ouro como “mercadoria isolada” não se troque por meio quilo de ferro, mas por 20.000 quilos de ferro, a soma de preço que se paga, no total, por meio quilo de ouro e 20.000 quilos de ferro, não é nem mais nem menos do que 20.000 quilos de ferro e meio quilo de ouro. Portanto, o peso total da soma dos preços – vinte mil quilos e meio – é exatamente igual ao peso total corporificado no total das mercadorias, isto é, vinte mil quilos e meio. Conseqüentemente, seria possível considerar o peso como verdadeira medida segundo a qual se regula a relação de troca dos bens?!

NOTAS

1 Zur Kritik der politischen ökono mie. Berlim. 1859. Das Kapital. Kritik, de politischen Ökonomie, 3 vol., 1867: 1894. Cp. sobre Marx o artigo “Marx”, de Engels, no Handwarterbuch des Staatswissenschaften, (além de lista completa de escritos de Marx, na 3. edição no Handwörterbuch, completado por K. Diehl); cp. Também Knies, Das Geld, 2. ed.. 1885, (p.153 ss); A. Wagner em sua Grundlegung der politischen Ökonomie, 3. ed. passim, especialmente II (p. 285 ss); Lexis nos Jahrbiicher de Conrad, 1885, nova série, XI (p. 452 ss), Gross, K. Marx,Líipsia, 1885; Adler, Grundlagen der Marxschen Kritik der bestehenden Volkswirtschaft, Tübingen, 1887; Komorozynskil Der dritte Band von Karl Marx: Das Kapital, in Zeitschrift fair Volkswirtschaft, Sozialpolitik und Verwaltung, Vol. VI (p. 242 ss); Wenckstern, Marx, Leipzig, 1896; Sombart, “Zur Kritik des öbkonomischen Systems von Karl Marx”, Archiv für sozialistische Gesetzgebuns und Statistik (Vol. VII, Cad. 4, p. 555 ss); meu texto “Zum Abschluss des Marxschen Systems” in Festgabenfen für Karl Knies, Berlim, 1896 (publicado em livro em russo, em Petersburgo, 1897 e em inglês. em Londres, 1898); Diehl, “Über das Verhältnis von Wert und Preis im ökonomischen System vom Karl Marx”, reprodução de Festschriftzur Feier des 25 jäihringen Bestehens des staatwissenschaftlichen Seminars zu Halle a.S., Jena, 1898; Masaryk, Die Philosophischen und soziologischen Grundlagen des Marxismus, Vie- na, 1899; Tugan-Baranowski, Theoretische Grundlagen des Marxismus, Lípsia, 1905; v. Bortkiewicz, “Wertrechnung und Preisrechnung im Marxschen System” in Archiv for Sozialwissenschaft un Sozialpolitik, Vol. 23 e 25; e muitos outros textos da imensa e ainda crescents literatura sobte Marx.

2 Lifschitz, Zur Kritik der BöhmBawerkschen Werttheorie, Lípsia, 1908 (p. 16). O autor pretende ter-me apanhado numa contradição citando essa observação e a “séria defesa” de Rodbertus, num trecho anterior de meu livro (acima, p. 257 ss). Parece-me que ou leu muito superficialmente, ou pensou tão superficialmente, que troca entre si duas teses diferentes. Na verdade Rodbertus defendeu a tese de que todos os bens economicamente custam apenas trabalho, enquanto eu falo aqui de uma tese bem diferente, de que o valor dos bens se determine unicamente pela quantidade de trabalho. Lifschitz poderia ter dado alguma atenção à diferença bastante grande entre as duas teses, nem que fosse somente pela postura totalmente diversa que assumi acima na p. 262 ss, e 271 ss em relação a elas!

3 Cito o Vol. I de, O capital de Marx sempre a partir da (segunda) edção de 1872, o Vol.II segundo a ed. de 1885, o Vol. III segundo a de 1894. Salvo menção explícita, os comentários sobre o Vol. III referem-se à sua primeira parte.

4 I, p. 15, 17, 49 e 87 e outras. Cf. também Adler, Grundlagen der Karl Marxschen Kritik der bestehenden Volkswirtschaft, Tübingen, 1887 (p. 210 e 213).

* “Aqui é Rodes, então salte aqui!” (N. da T.)

5 Escrito em 1884; veja também acima Nota 19, Cap. I.

6 Por exemplo, quando no Cap. 5 do Livro II ele se expressa da seguinte maneira: “Não só os criados e criadas do arrendador, mas também seus animais de carga são trabalhadores produtivos”, e adiante: “Na agricultura a natureza trabalha com os homens, e, embora seu trabalho nada custe, seus produtos têm tanto valor quanto o produto dos trabalhadores mais bem pagos.” Cp. Knies, Der Kredit, Parte II (p. 62).

7 Cf. sobre isso Verrijn Stuart em seu belo estudo “Ricardo e Marx”, e meu comentário sobre isso nos Jahrbüchern de Conrad, III, Vol. I, 1891, (p. 877 ss.).

8 Ver p. 48 ss e Knies, op, cit, (p. 66 ss.).

9 Inquiry Vol. 1, Cap. V (p. 13 da ed. de MacCullogh); Ricardo, Principles, Cap. 1.

10 Smith diz o seguinte sobre o fenômeno mencionado no texto: “Quando um tipo de trabalho exige um grau extraordinário de habilidade e inteligência, confere-se a suas realizações – em decorrência do respeito que tais talentos inspiram – um valor maior do que o que corresponderia ao simples cálculo do tempo neles despendido. Tais talentos raramente se conseguem senão após longo tempo de dedicação e habitualmente o valor mais alto de seus resultados é apenas um substituto barato para o tempo e esforço gastos na sua obtenção.” (Livro 1, Cap. VI). É evidente que essa explicação não satisfaz. Primeiramente, é claro que o valor mais elevado dos produtos de pessoas extraordinariamente hábeis repousa em motivo bem diverso do “respeito que tais talentos inspiram”. 
Quantos escritores e intelectuais passaram fome apesar de todo o respeito público por seus talentos! E quantos vigaristas inescrupulosos foram premiados com fortunas imensas, embora seus “talentos” não fossem respeitados! Mas, caso supuséssemos que respeito fosse medida de valor, não estaríamos confirmando, e sim violando, a lei de que valor se baseia em esforço. Quando Smith, ao atribuir aquele valor mais alto ao esforço despendido para obter uma habilidade, usa a palavra’ “habitualmente”, ele próprio admite que isso não acontece em todos os casos. Portanto, continua a contradição.

11 I, p. 1 1; ver p. 69 ss.

12 Knies objeta com muito acerto contra Marx: “Na exposição de Marx não há nenhum motivo peIo qual a equação 1 “moio” de trigo = x quintais de madeira produzida na floresta não permita uma segunda equação, também válida, que diga: 1 “moio” de trigo = a quintais de madeira virgem = b acres de terra virgem = c acres de terra cultivada com prados naturais.” (Das Geld, Iª ed. p. 121;1 2ª ed p. 157).

13 Numa citação de Barbon se obscurece na mesma passagem mais uma vez a diferença entre mercadorias e coisas: “Uma espécie de mercadoria é tão boa quanto outra quando seu valor de troca é igual. Não há diferença ou diferenciação entre coisas com o mesmo valor de troca!”

14 Por exemplo, na p. 15, final: “Por fim nenhuma coisa pode ter valor sem ser objeto de uso. Se for inútil, o trabalho nela contido será inútil, não valerá como trabalho (sic!), e por isso não constituirá valor.” Já Knies chamara atenção para o erro lógico do texto. Veja-se Das Geld, Berlim, 1873, p. 123 ss. (2ª ed. p. 160 ss). Estranhamente, Adler (Grundlagen der Karl Marxschen Kritik, Tübingen, 1887, p. 211 ss) entendeu mal meu argumento, quando me censura dizendo que “boas vozes” não são mercadorias no sentido marxista. Para mim não se tratava de considerar “boas vozes” como bens econômicos Segundo a lei marxista de valor, mas, muito antes de dar o exemplo de um silogismo que revela o mesmo erro de Marx. Eu teria podido escolher muito bem outro exemplo, que não tivesse nenhuma relação com o terreno econômico. Por exemplo, poderia ter demonstrado que, segundo a lógica marxista, o “algo comum” está em haver colorido em sabe Deus o quê, mas não em haver uma mistura de várias cores. Pois uma mistura de cores – por exemplo, branco, azul, amarelo, preto, violeta – vale para a qualificação “colorido” o mesmo que a mistura de verde, vermelho, laranja, azul, etc., desde que as cores apareçam em proporção adequada”. Portanto, vamo-nos abstrair, no momento, das cores e das misturas de cor!

15 Das Kapital (p. 17 ss.).

16 Zum Abschluss des Marxschen Systems (p.77ss.).

17 Ver mais adiante.

18 Cp. Knies, Kredit (Parte II p. 61).

19 Fui mais minucioso ao tratar dessa questão no meu texto tão citado Zum Abschluss des Marxschen Systems (p. 80 ss.)

20 Marx só lhe dá atenção expressa no terceiro volume, póstumo, como era de se esperar, e, como resultado, entra em contradição com as leis do primeiro volume, que tinha construído sem levar em conta a exceção.

21 Parece-me que também Natoli. Principio del volore, vai longe demais. Apesar de reconhecer enfaticamente que o trabalho não exerce sobre o valor dos bens uma influência original nem universal, que o valor tem de se apoiar sempre no “qrado di utilità”, e de saber que na teoria do valor do trabalho de Ricardo se confundem causa e efeito (op. cit. 191), mesmo assim, alega que sempre é possível estabelecer a “equação de utilidade”, entre valor e trabalho, como lei fundamental do valor, e até mesmo como a “lei básica de toda a economia” (op. cit., p. 191, 244, 277 e 391).

22 Ver p. 277.

23 “Numa determinada porcentagem de mais-valia, e num determinado valor da força de trabalho, as quantidades de mais-valia produzidas são diretamente proporcionais às grandezas dos capitais variáveis adiantados.” “As quantidades de valor e mais-valia produzidas por capitais diferentes são – para -um dado valor e para graus de exploração de igual grandeza – diretamente proporcionais as grandezas dos elementos variáveis desses capitais, isto é, de seus componentes convertidos em trabalho vivo.” (Marx, 1, p. 311 ss).

24 I, p. 312 e 542.

25 “Por outro lado, não há dúvida de que, na verdade, excetuando diferenças insignificantes, casuais, que se anulam entre si, a diferença das porcentagens médias de lucro não existe para os diversos ramos da indústria, nem poderia existir, sem anular todo o sistema de produção capitalista.” (III, p. 132). “Em função da diferente composição orgânica dos capitais aplicados em diferentes ramos de produção… as porcentagens de lucro que imperam em diversos ramos de produção são originalmente muito diferentes. Essas porcentagens diferentes de lucro são compensadas pela concorrência, tomando-se uma porcentagem de lucro geral, que é a media de todas essas porcentagens de lucros diferentes.” (III, p. 136).

26 Marx desenvolve essa doutrina num exemplo esquemático que abrange cinco tipos de mercadorias e ramos de produção com capital de diversas composições orgânicas, e comenta os resultados da tabela em questão com as seguintes palavras: “As mercadorias juntas são vendidas 2+7+17=26 acima, e 8 + 18 = 26 abaixo do valor, de modo que os desvios de preço se compensam mutuamente pela distribuição igual da mais-valia, ou pela adição do lucro médio de 22% aos preços de custo das mercadorias I – V. Na mesma relação, na qual uma parte das mercadorias é vendida acima de seu valor, outra é vendida abaixo. E só sua venda a tais preços possibilita que a porcentagem de lucro para as mercadorias catalogadas de I –V seja igual – 22% -, sem consideração para com a composição orgânica diferente dos capitais de I – V.” O mesmo pensamento é manifestado nas páginas seguintes, 134- 144.

27 Zum Abschluss des Marxschen Systems (pp. 25 – 62). Hilferding, com sua crítica apologética publicada no Vol. I dos Marx-Studien (1904), não me levou a mudar de opinião. 
Desejo afirmar expressamente, com relação a certas observações de Heimann (Methodologisches zu den Probiemen des Werts, Separata do Archiv für Sozialwissenschaft Vol. 37, p. 19), que minhas tabelas apresentadas em op. cit. p. 53 são totalmente corretas e objetivas, ao passo que a “Correção” que Hilferding lhes fez é tão arbitrária quanto desviada do tema.

28 Die Durschschnittsprofitrate auf Grund des Marxschen Wertgesetzes, Stuttgart, 1889.

29 (“Na mesma proporção em que parte das mercadorias se troca acima do seu valor, outra parte se troca abaixo dele”) (III, p. 135). 
“No preço total das mercadorias I – V” (na tabela que Marx usa como exemplo), “estaria, pois, o seu valor total [ … ] E desta maneira, na própria sociedade[ … ] se considera que a totalidade de todos os ramos de produção [ … ], que a soma dos pregos de produção das mercadorias produzidas, seja igual à soma de seus valores” (III, p. 138). As divergências nos preços de produção em relação aos valores sempre se resolvem, pois “o que recai em excesso, como mais-valia, sobre uma mercadoria, em outra, recai a menos. Por isso, também os desvios de valor que aparecem nos preços de produção das mercadorias se equilibram mutuamente” (III, p. 140). Algo semelhante afirma K. Schmidt (op. cit. p. 51): “A divergência necessária entre o preço real e o valor das mercadorias isoladas desaparece … assim que se considera a soma de todas as mercadorias, o produto nacional anual.”

30 Menciono-o pela primeira vez num comentário do texto acima citado de Schmidt, in Tübinger Zeitschrift, 1890 (p. 590 ss.).

 

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