Monthly archive for abril 2000

Debates e provas

Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

Tema para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia

Raciocinar sem pressupostos é impossível, mas reduzi-los ao mínimo é, para o filósofo, uma obrigação. E mesmo esse mínimo, em algum ponto da viagem, terá de se tornar objeto de exame, retroativamente, para que daí saiam glorificados como princípios ou rebaixados à condição de hipóteses provisórias que, tendo uma vez servido de motor de arranque, podem ser desligadas quando o barco já está em movimento.

De tal modo a redução dos pressupostos é atividade essencial e característica da filosofia, que o alto coeficiente de espírito filosófico presente numa discussão pode ser medido pela míngua de postulados admitidos em comum pelas partes em disputa, e o baixo pela abundância deles. Enquanto numa discussão vulgar os contendores apelam de improviso a mil e um postulados colhidos do senso comum, das opiniões do auditório ou de seus respectivos campos especializados de estudo, dois filósofos em confronto não admitirão discutir – se o fizerem filosoficamente – senão com base nuns poucos postulados admitidos explicitamente desde o início, à luz dos quais tudo o mais que o debatedor vulgar poderia dar por pressuposto se torne passível de exame e arbitragem. A redução significa, pois, esclarecimento. Não pode haver clareza, nem portanto argumentação racionalmente probante, onde as bases da prova se encontrem dispersas numa multiplicidade difusa de fontes e autoridades, aguardando que a destreza do orador ou um feliz acaso vão buscá-las no calor do debate para extrair delas algum efeito surpreendente para confundir o adversário.

Do voto de pobreza em matéria de pressupostos decorre outra característica essencial do debate filosófico: sua soberania ante os saberes particulares. Enquanto no debate vulgar a superior dotação de conhecimentos especializados confere ao debatedor uma indiscutível vantagem sobre seu concorrente, no confronto filosófico essa superioridade é de pouca valia, porque esses conhecimentos, a não ser na hipótese de serem de antemão postulados como válidos por ambas as partes (o que supõe que ambas os dominem por igual), só terão força probante se puderem ser dedutivamente legitimados desde os princípios admitidos em comum e, em vista disso, não estão numa posição mais privilegiada que a de qualquer outra alegação possível.

Do mesmo modo, as opiniões e sentimentos habituais do auditório, tão úteis para o debatedor cuja vitória dependa de aprovação do público, de nada servem em filosofia exceto se, à luz dos princípios admitidos, puderem se demonstrar válidos.

O estreitamento da base de pressupostos é condição sine qua non da validade da prova obtida – donde se conclui que perante as exigências superiores da filosofia, quase todos os debates intelectuais, seja nas questões públicas, seja no campo das ciências especializadas, não são senão exercicios de virtuosismo persuasório mais ou menos levianos e de resultados bastante duvidosos, a não ser no caso de se curvarem a essas exigências e se tornarem autênticos debates filosóficos.

Dito de outro modo, para o filósofo, só o debate filosófico em sentido estrito tem valor probante, e o tem justamente em razão da redução e explicitação dos pressupostos. Todos os demais debates não provam nada, por mais honestos que pareçam desde o ponto de vista das platéias ou por mais científicos que os julgue a opinião especializada.

Um filósofo não deve, pois, levar muito a sério esses debates. Se deles participar, estará obrigado, seja a admitir o caráter pessoal e até certo ponto arbitrário das opiniões que defenda, seja a buscar para elas um fundamento filosóficamente válido, o qual, porém, nas condições concretas do debate vulgar, deverá ser conservado num discreto segundo plano ou reservado para exposição sistemática em outra ocasião, cedendo o lugar, no calor da hora, a outro tipo de argumentos, mais ou menos improvisados e de menor validade filosófica. O que importa nessas horas para a preservação da integridade filosófica é que ele os apresente de modo a que permitam a qualquer momento sua conversão, mediante simples descompactação analítica, em provas filosoficamente válidas.

Digo “descompactação” por um motivo muito simples: é necessário que na conversão do discurso retórico para o dialético e deste para o analítico o conteúdo dos argumentos permaneça substancialmente o mesmo.

Nas discussões correntes, mesmo entre intelectuais, em geral não é possível ir além da argumentação retórica, ou prova por verossimilhança. Essa limitação provém seja da falta de espaço, nos jornais e revistas, seja da pouca disposição do público para acompanhar até o fim alguma demonstração mais “técnica” do que quer que seja. Para o debatedor que possui o conhecimento da prova cabal, é extremamente constrangedor ter de limitar-se a umas indicações gerais dela, as quais podem não soar mais convincentes do que qualquer improviso retórico leviano que o adversário lhes oponha. Mas essas indicações gerais, se forem realmente um resumo de demonstrações rigorosas, deixam ao menos ao debatedor a boa consciência de que essas demonstrações podem ser oferecidas noutra ocasião, tão logo o adversário, caso seja honesto, consinta em passar do mero confronto momentâneo ao teste aprofundado da verdade e do erro.

É nessa passagem que se verifica a diferença crucial entre dois tipos de argumentação retórica: aquela que é retórica apenas em função das limitações externas do debate, e aquela que é retórica por essência e fatalidade, por não poder ser outra coisa e por não poder valer senão retoricamente, isto é, como aparência persuasiva para um auditório determinado. A diferença vem da ambigüidade mesma do verossímil. Verossímil é parecer verdade. Mas há um parecer que é um aparecer e um parecer que é simular: há uma verossimilhança que é face externa da verdade profunda e uma verossimilhança que se finge de verdade, que usurpa o lugar da verdade e recebe as honras devidas à verdade.

Essa diferença aparece justamente na descompactação dos argumentos. O argumento retórico por excelência é o entimema, o silogismo com premissa não declarada. O entimema abrevia o discurso e lhe confere a pungência das afirmações breves, o fulgor das frases de efeito. Quando desdobramos analiticamente os entimemas, descobrimos suas premissas e as premissas destas premissas. Aí alguns entimemas revelam ser apenas a compactação de longas cadeias de provas perfeitamente razoáveis ou mesmo absolutamente inatacáveis, ao passo que outros se denunciam como puras maquiagens destinadas a disfarçar a falta de provas ou mesmo a completa falsidade das alegações. Retoricamente, ambos valiam o mesmo, pareciam igualmente persuasivos. Descompactados, um é alguma coisa, o outro não é coisa nenhuma. Ao analisar-se, submeteram-se à prova dialética, isto é, ao confronto interno de seus contrários. Um saiu ileso, reforçado mesmo. O outro desmembrou-se em fragmentos inconexos e já não pode ser remendado.

Há, pois, dois tipos de argumentação retórica: a retórica dialetizável e a não dialetizável. A primeira resiste à exposição de seus mecanismos internos, a segunda não. Muitas vezes a diferença aparece nitidamente já na simples exposição retórica, quando a compactação dos silogismos em entimemas é feita de tal modo que o leitor avisado apreenda instantaneamente a demonstração subentendida. Quando essa operação é bem sucedida, a argumentação obtém o máximo de força probante enxertado no máximo de compactação persuasória.

O filósofo que entre numa discussão corrente deve tomar o cuidado de não empregar argumentos retóricos pela sua pura força retórica, mas de usar somente daqueles que levem dentro de si, ocultas e compactadas, as mais rigorosas provas analíticas, resistentes a duros testes dialéticos. Se assim ele não vencer a discussão logo na primeira oportunidade, terá ao menos a certeza de poder levar a discussão mais adiante, subindo a níveis mais complexos e exigentes de demonstração, enquanto seu adversário, tão logo o combate saia do terreno do mero confronto de aparências, não terá remédio senão calar-se e desistir.

Direto do inferno

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 13 de abril de 2000

O clamor obsessivo dos intelectuais, dos políticos e da mídia pela “supressão das desigualdades” e por uma “sociedade mais justa” pode não produzir, mesmo no longo prazo, nenhum desses dois resultados ou qualquer coisa que se pareça com eles. Mas, de imediato, produz ao menos um resultado infalível: faz as pessoas acreditarem que o predomínio da justiça e do bem depende da sociedade, do Estado, das leis, e não delas próprias. Quanto mais nos indignamos com a “sociedade injusta”, mais os nossos pecados pessoais parecem se dissolver na geral iniqüidade e perder toda importância própria.

Que é uma mentira isolada, uma traição casual, uma deslealdade singular no quadro de universal safadeza que os jornais nos descrevem e a cólera dos demagogos verbera em palavras de fogo do alto dos palanques? É uma gota d’água no oceano, um grão de areia no deserto, uma partícula errante entre as galáxias, um infinitesimal ante o infinito. Ninguém vai ver. Pequemos, pois, com a consciência tranqüila, e discursemos contra o mal do mundo.

Eliminemos do nosso coração todo sentimento de culpa, expelindo-o sobre as instituições, as leis, a injusta distribuição da renda, a alta taxa de juros e as hediondas privatizações.

Só há um problema: se todo mundo pensa assim, o mal se multiplica pelo número de palavras que o condenam. E, quanto mais maldoso cada um se torna, mais se inflama no coração de todos a indignação contra o mal genérico e sem autor do qual todos se sentem vítimas.

É preciso ser um cego, um idiota ou completo alienado da realidade para não notar que, na história dos últimos séculos, e sobretudo das últimas décadas, a expansão dos ideais sociais e da revolta contra a “sociedade injusta” vem junto com o rebaixamento do padrão moral dos indivíduos e com a conseqüente multiplicação do número de seus crimes. E é preciso ter uma mentalidade monstruosamente preconceituosa para recusar-se a ver o nexo causal que liga a demissão moral dos indivíduos a uma ética que os convida a aliviar-se de suas culpas lançando-as sobre as costas de um universal abstrato, “a sociedade”.

Se uma conexão tão óbvia escapa aos examinadores e estes se perdem na conjeturação evasiva de mil e uma outras causas possíveis, é por um motivo muito simples: a classe que promove a ética da irresponsabilidade pessoal e da inculpação de generalidades é a mesma classe incumbida de examinar a sociedade e dizer o que se passa. O inquérito está a cargo do criminoso. São os intelectuais que, primeiro, dissolvem o senso dos valores morais, jogam os filhos contra os pais, lisonjeiam a maldade individual e fazem de cada delinqüente uma vítima habilitada a receber indenizações da sociedade má, e, depois, contemplando o panorama da delinqüência geral resultante da assimilação dos novos valores, se recusam a assumir a responsabilidade pelos efeitos de suas palavras. Então têm de recorrer a subterfúgios cada vez mais artificiosos para conservar uma pose de autoridades isentas e cientificamente confiáveis.

Os cientistas sociais, os psicólogos, os jornalistas, os escritores, as “classes falantes”, como as chama Pierre Bourdieu, não são as testemunhas neutras e distantes que gostam de parecer em público (mesmo quando em família se confessam reformadores sociais ou revolucionários). São forças agentes da transformação social, as mais poderosas e eficazes, as únicas que têm uma ação direta sobre a imaginação, os sentimentos e a conduta das massas. O que quer que se degrade e apodreça na vida social pode ter centenas de outras causas concorrentes, predisponentes, associadas, remotas e indiretas; mas sua causa imediata e decisiva é a influência avassaladora e onipresente das classes falantes.

Debilitar a consciência moral dos indivíduos a pretexto de reformar a sociedade é tornar-se autor intelectual de todos os crimes – e depois, com redobrado cinismo, apagar todas as pistas. A culpa dos intelectuais ativistas na degradação da vida social, na desumanização das relações pessoais, na produção da criminalidade desenfreada é, no seu efeito conjunto, ilimitada e incalculável. É talvez por eles terem se sujado tanto que suas palavras de acusação contra a sociedade têm aquela ressonância profunda e atemorizante que ante a platéia ingênua lhes confere uma aparência de credibilidade. Ninguém fala com mais força e propriedade contra o pecador do que o demônio que o induziu ao pecado. O discurso dos intelectuais ativistas contra a sociedade vem direto do último círculo do inferno.

500 anos em cinco notas

Olavo de Carvalho

Bravo!, abril de 2000

Em primeiro lugar, os quinhentos anos de Brasil não são de Brasil: são de um império português de ultramar que se desmembrou sob os golpes da diplomacia inglesa, prestimosamente auxiliada por intelectuais nativos que achavam estar fazendo um grande benefício para as gerações vindouras. O que representaria no mundo de hoje um bloco político-econômico Portugal-Brasil-África era coisa que não podiam imaginar, mas que os ingleses imaginavam perfeitamente bem e por isto mesmo temiam como à peste. O espectro do império mulato emergente assombrava as noites britânicas como a profecia de uma nova expansão moura. Vocês viram o filme Queimada, de Gillo Pontecorvo? É a história do Brasil.

A independência brasileira sacrificou no altar dos interesses momentâneos de senhores de terras um projeto de envergadura mundial, colocando-nos imediatamente sob o jugo de bancos ingleses que, mais tarde, nos atirariam à aventura genocida da guerra do Paraguai.

Nada mais ilustrativo do que a vida trágica do nosso Patriarca. O Andrada acreditava num projeto-Brasil superior ao do império luso, e por isto mesmo, logo após a Independência, se opôs vigorosamente a fazer empréstimos no Exterior. O impulso profundo que movia as rodas da história não demorou a esmagar as cegas ilusões do pioneiro: o Andrada foi demitido e enviado para o exílio, enquanto a nova classe dirigente iniciava a novela sem fim da dívida externa. A Independência não veio para ampliar o horizonte brasileiro, mas apenas para estreitar o português. Missão cumprida, o chefe do movimento podia ser jogado fora.

A vulgata marxista de hoje nos impinge a lenda de que a Independência e a queda do Império foram etapas de uma revolução destinada a nos coroar de glórias. Mas isso só prova que o “marxismo” é Marx para crianças. Marx em pessoa dizia que as colônias da África e da América Latina que se tornassem independentes cairiam ipso facto fora da História. Caíram.

Pensem nisso, rotuladores de plantão, antes de me nomear apologista do colonialismo luso. Não se trata de defender regimes — coisa de desocupados como vocês –, mas de contar a História.

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Nesses quinhentos anos, o Brasil foi sobretudo uma criação da iniciativa oficial, especialmente militar, passando de atropelo sobre a passividade atônita de uma sociedade civil desconjuntada e inerme. Historiadores esquerdistas repetem que a História no Brasil se faz por cima, sem o povo. Têm razão. Mas daí deduzem que precisamos de uma grande revolução para dar chance ao povo. É o protótipo do non sequitur. Nenhuma revolução jamais integrou povo nenhum na História, pela simples razão de que os regimes revolucionários têm de ser hipercentralizados ou morrer no nascedouro. Cada revolução cria uma nova classe governante infinitamente mais distante do alcance do povão do que os donos do Ancien Régime. Revoluções servem apenas a uma jovem elite voraz, semente da futura Nomenklatura. Para se integrar na História um povo não precisa de revoluções. Precisa de paz e tempo, lei e ordem. E intelectuais honestos, que discutam as coisas com franqueza, sem segundas intenções políticas. É a única esperança.

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O que mais falta no momento é o último item da lista. A geração de intelectuais que atualmente está no comando não tem nenhuma franqueza, suas palavras são um festival de arrière-pensées. Para começo de conversa ela é desonesta ao usar a palavra “poder” como sinônimo de governo. A elite do poder não é o governo: é um vasto sistema de conexões que abrange as instituições de cultura, a mídia, as diretorias de empresas, as igrejas, os partidos, o establishment educacional etc. etc., enfim, a rede inteira hoje dominada por aqueles mesmos que fingem estar de fora e ser heróicos coitadinhos em luta contra os de cima. No Brasil, “poder” tornou-se sinônimo de FHC. Todos os outros dizem ser a massa anônima dos deserdados. Quando um João Moreira Salles financia um traficante em fuga, isto é a prepotência do poder em todo o esplendor da sua feiúra: o poder do dinheiro aliado cinicamente ao poder de matar. Mas ninguém diz isso. Uma escorregadia desconversa geral dá ao conluio do ricaço com o bandidão o ar de uma solidariedade entre excluídos. Isso é fraude, e a elite vive dessa fraude. Por isso mesmo nenhum acadêmico, no Brasil, se aventura a fazer um estudo como o clássico The Power Elite de C. Wright Mills. Ninguém deseja confessar que está entre os que mandam.

Essa mentira é básica demais, é central demais para que qualquer setor do nosso debate público escape de ser contaminado por ela. Um povo tem o direito de saber, em primeiro lugar, quem manda nele. Um povo não pode assumir seu destino nas mãos se a elite que hipocritamente o convida a fazê-lo se esconde por trás de bodes expiatórios, eleitos precisamente para isso. Nesse sentido, do Império para cá, o povo foi cada vez mais excluído: no tempo de Pedro II o poder da elite intelectual estava à mostra, seu telhado de vidro rebrilhava ao alcance de todas as pedras como o telhado dos deputados e ministros. Hoje ele se tornou invisível sob os ataques que move aos ocupantes de cargos nominais.

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Bem escondidinha, a elite pode cultivar em segredo os intuitos mais perversos, sempre posando de coorte de anjos.

Assim, por exemplo, uns anos atrás ocorreu-lhe a idéia de que todos os valores positivos ainda dotados de credibilidade numa época de degradação geral podiam ser reciclados para servir ao imediatismo de suas ambições políticas.

O mais notório desses valores foi a “ética”. É natural que um povo que se sente ludibriado sem saber por quem tenha um fundo e dolorido anseio de moralidade. Com um pouco de esperteza, esse anseio pode ser pervertido em desconfiança, a desconfiança em ódio, o ódio em instrumento de destruição sistemática de lideranças indesejáveis.

A existência da vasta máquina de espionagem política que se montou desde então para pôr em movimento a fábrica de denúncias e manter a nação em sobressalto já constitui, por si, a total corrupção do sistema. Quanto mais intensamente essa máquina atua, mais a atmosfera se sobrecarrega de chantagens, deslealdades, mentiras. Mas a máquina permanece invisível, lançando petardos contra a corrupção que ela própria alimenta. Seu primeiro efeito é embotar na mente do público o senso da gravidade relativa dos males. Hoje um funcionário que desvie uma verba, corrompendo uma repartição, já parece mais criminoso do que o espião que grampeia telefones, desvia papéis, usurpa a função policial do Estado e corrompe todo o sistema.

A ética não é uma ciência exata. Seu exercício depende de um esprit de finesse capaz de avaliar quantidades não mensuráveis. Existe em todo ser humano um conhecimento espontâneo dos princípios morais. Os princípios não são regras: são critérios formais que embasam as regras. As regras variam conforme os tempos e lugares, mas subentendendo sempre os mesmos princípios. Qualquer selvagem sabe que aquilo que põe em risco a comunidade inteira é mais grave do que o que dana apenas uma parte dela. Qualquer analfabeto compreende que o que é mais básico e geral deve ser preservado com mais carinho do que aquilo que é periférico e particular.

As virtudes morais de um povo podem ser arranhadas aqui ou ali pelo descumprimento de regras específicas. Mas se a percepção dos princípios gerais é embotada, não é uma ou outra virtude que cai: é a possibilidade mesma de distinguir entre a virtude e o vício. É nesse preciso instante que o discurso de acusação moral se transforma na caça oportunista aos bodes expiatórios. Tão confundido e atordoado pelos moralistas de ocasião tem sido o povo brasileiro, que já começa a aceitar como normais e louváveis a delação de parentes, o grampo generalizado e a nova escala de valores na qual surrupiar um dinheiro do Estado é mais criminoso do que matar, estuprar, vender tóxicos para crianças. Crenças como essas destroem, na base, qualquer ordem possível e alimentam ad infinitum a criminalidade.

Não foi só a “ética”. Iguais reciclagens sofreram as noções de caridade, de paz, de direito, de história. Todas as palavras que expressam as aspirações mais altas foram prostituídas, rebaixadas, moídas na máquina do oportunismo. E a aliança do banqueiro com o assassino brilha no altar da “solidariedade”.

A destruição da lingugem precede o embotamento das consciências. Para elevar a moralidade de um povo é preciso aguçar o seu senso dos valores, não embotá-lo. Quem, a pretexto de punir políticos corruptos, destrói as bases mesmas da moral pública, ou é um idiota irrecuperável ou tem uma agenda secreta. A diferença é que a idiotice sente alguma vergonha de si mesma; a ambição política, não.

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Quando me pergunto como a geração atualmente no poder – a minha geração – pôde se sujar tanto, a pergunta automaticamente se inverte: Como ela poderia permanecer limpa, se entrou no cenário desprovida de qualquer crença positiva, e confiante apenas no maquiavelismo da ação política? Sim, os jovens letrados dos anos 60 não acreditavam em nada, exceto em tomar o poder. Riam de Deus, do bem, da moralidade, prosternavam-se de adoração ante os mais mínimos desejos e caprichos de suas almas egoístas, embelezados por uma moral ad hoc fornecida por charlatães franceses e americanos. Eram cínicos, perversos, aproveitadores ingratos, exploradores de seus pais. Cada um deles, quando dava uma transada ou fumava um baseado, se acreditava merecedor da gratidão da humanidade: estava fazendo a revolução, pombas!

Hoje essa gente tem o poder e refaz o Brasil à sua imagem e semelhança. Por isto, em quinhentos anos de História, nunca estivemos tão baixo.