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Marilena Chauí: A segunda excomunhão de Espinosa

Discípula bastarda do filósofo holandês, a uspiana Marilena Chauí mostra que é filha legítima de Marx e transforma Espinosa num militante do MST

por JOSÉ MARIA E SILVA

Publicado no Jornal Opção, de Goiás, em 10 de outubro de 1999

O filósofo holandês Baruch de Espinosa foi excomungado pela primeira vez na noite de 27 de julho de 1656. Os rabinos da comunidade judia de Amsterdã se reuniram em assembléia e, enquanto uma trompa se pôs a arrastar uma nota agônica, começou a ser lida a sentença de excomunhão do pensador: “Com o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Espinosa, estando de acordo toda a sagrada comunidade, reunida diante dos livros sagrados”.

As luzes iam-se apagando, uma a uma, simbolizando Deus que se afastava, e todas as maldições do Antigo Testamento foram recaindo sobre ele, com o peso milenar das profecias: “Que ele seja execrado durante o dia e execrado à noite; seja execrado ao deitar-se e execrado ao levantar-se; execrado ao sair e execrado ao entrar. Que o Senhor nunca mais o perdoe ou aceite; que a ira e o desfavor do Senhor, de agora em diante, recaiam sobre esse homem, carreguem-no com todas as maldições escritas no Livro do Senhor e apaguem seu nome de sob o firmamento”.

E a todos os judeus foi ordenado que se afastassem de Espinosa: “Por meio deste documento ficai, portanto, avisados de que ninguém poderá manter conversação com ele pela palavra oral, ter comunicação com ele por escrito; de que ninguém poderá prestar-lhe nenhum serviço, habitar sob o mesmo teto que ele, aproximar-se dele a uma distância de menos de quatro cúbitos e de que ninguém possa ler qualquer papel ditado por ele ou escrito por sua mão”. A trompa se calou e a última luz foi apagada – a escuridão selou a maldição de Baruch de Espinosa.

Onze anos antes, nessa mesma sinagoga, quando o jovem Espinosa tinha apenas 15 anos, ocorreu a retratação de Uriel Acosta, um jovem e inflamado pensador que escrevera um livro negando a imortalidade da alma. Sua penitência foi deitar-se no umbral da sinagoga, enquanto os membros da comunidade passavam por cima de seu corpo. Como Espinosa faria depois, ele poderia ter recusado a penitência e aceitado a maldição. Não o fez. Sentindo-se profundamente humilhado, Acosta, quando retornou à casa, escreveu mais um libelo contra sua comunidade e matou-se com um tiro. O calmo Espinosa foi muito mais forte – não se retratou e saiu da religião dos judeus para entrar na filosofia do Ocidente.

Para os alunos que assistiram à palestra da filósofa uspiana Marilena Chauí, na quinta-feira, 7, na Universidade Federal de Goiás, a excomunhão de Espinosa da comunidade judaica deve ter tido a mesma causa que a expulsão de Marx de Paris quase dois séculos depois – pura agitação política. Como alertou o filósofo Olavo de Carvalho, numa entrevista ao Jornal Opção, o Espinosa de Marilena Chauí é um “petista avant la lettre”. Os alunos saíram de sua palestra convencidos de que devem render-se à evidência de três axiomas: a) Baruch de Espinosa foi um incendiário precursor de Marx; b) a filosofia é uma bandeira de luta contra o neoliberalismo; c) a invasão de terras do MST é a maiêutica socrática da revolução.

Autora do recém-lançado A Nervura do Real, pretensa bíblia sobre Espinosa, Marilena Chauí conseguiu impingir aos alunos que assistiram sua palestra um filósofo imaginário e uma filosofia falsificada – sob o silêncio abonador dos professores e o aplauso embasbacado dos alunos. Sua palestra foi pontuada por risos de aprovação e aplaudida de pé no final, com direito a grunhidos de um estudante. Embalado pela assunção do corpo ao lugar da alma, sutilmente empreendida por Marilena, esse jovem deve ter-se sentido adequadamente dionisíaco, num ambiente filosófico, ao exprimir seu contentamento numa atitude rupestre. O motivo de arrancar tanto entusiasmo com uma filosofia tão intrincada como a de Espinosa é que Marilena Chauí encontrou para ela a solução final – a revolução.

Foi assim que concluiu a leitura de sua conferência, entrecortada por explicações de improviso, em que a pimenta socialista dava um calor tropical ao gelo quase nórdico da filosofia de Espinosa. Apesar de tradutora e comentadora do Espinosa da coleção Os Pensadores, Marilena Chauí subverteu a ética e a política do filósofo holandês, fazendo dele um irredutível materialista. Apenas porque, ante uma maioria de prováveis leigos no assunto, não lhe foi difícil apagar o lastro profundamente religioso da filosofia de Espinosa (que Novalis chamava de “homem intoxicado de Deus”) para ficar apenas com o empenho do filósofo em tratar o homem não como um estranho à natureza, mas como parte dela. Nesse mote, Marilena aproveita para glosar até um discreto hedonismo, chegando quase a proclamar a hegemonia do corpo e seus prazeres sobre a alma e seus deveres.

Ao menos foi assim que boa parte dos alunos deve ter entendido sua conferência. Tanto que o primeiro a empunhar o microfone para lhe fazer pergunta foi um aluno que, durante toda a palestra, procurou aparecer mais do que a convidada: com a cabeça toda raspada e óculos brancos espelhados, deitou-se no chão, ao pé da mesa da conferencista, de costas para o público, com os ombros no piso baixo e os pés no alto, sobre o estrado. E seus pés, realçados por meias brancas, foram propositadamente cruzados sob o rosto de Marilena Chauí, relativamente próximos dele. A atitude desse estudante, muito mais irritante pela tolice do que pela suposta irreverência, acabou se tornando o sintoma de uma grave crise da inteligência brasileira na medida em que foi exatamente ele que se mostrou um porta-voz da revolução, indagando à mestra o que fazer para concretizá-la, já que s eus colegas lhe pareciam conformistas.

Marilena Chauí, se tivesse entendido de fato Espinosa, mandaria o menino primeiro transformar a si mesmo, domando suas paixões exibicionistas, para depois domar o mundo. Mas como professor deixou de ser farol para ser faísca, o que ela fez foi dizer exatamente o contrário – massageou o ego do rapaz e confessou-se esperançosa com o futuro do país, porque acredita que o movimento estudantil está despertando e que os estudantes estão carregando os professores para a revolução. Julgando insuficiente essa crença destituída de fundamento, perpetrou outra – que o MST é o paradigma crítico ao neoliberalismo, digno de seguidores até mesmo nas universidades. Como tudo isso foi dito à sombra da nobre filosofia de Espinosa, dá para imaginar o rebuliço que o pobre filósofo fez em seu túmulo. Sorte que sua filosofia, ao contrário do que pensa Marilena, é sobretudo conformista, e se Espinosa soubesse o que ela perpetra em seu nome, nada mais faria do que dar de ombros, certo de que a eternidade do todo encarregar-se-ia de corrigir a parte momentaneamente afetada pelas paixões de sua bastarda discípula brasileira.

Quase no final da conferência, alguém perguntou a Marilena Chauí, por escrito, o que ela achava das críticas do filósofo Olavo de Carvalho à filosofia da USP. Marilena remexeu-se na cadeira, sacudiu a cabeça e disse que iria fazer uma confissão – nunca leu nada de Olavo de Carvalho. Disse que só soube da existência dele quando da polêmica com Osvaldo Porchat, segundo ela, motivada pelas distorções propositalmente feitas por Carvalho no pensamento de seu colega. E se atreveu mais ainda na difamação a Olavo de Carvalho, enfileirando cerca de meia dúzia de xingamentos para defini-lo, entre eles, “cafajeste” e “pulha”. Marilena xingou-o de modo elíptico, atribuindo essas classificações a uma pessoa que lhe sugeriu não se importar com as críticas de Olavo de Carvalho, já que ele não presta como pessoa e “vive de pegar carona na obra alheia”. Como boa discípula bastarda de Espinosa que é, ela fez o contrário do que esse mestre que tomou de empréstimo faria – aceitou uma causa externa (a fofoca da pessoa amiga) e não foi conferir com sua própria razão (a causa interna essencial a um filósofo) se correspondiam ou não à realidade os adjetivos impingidos a Olavo de Carvalho.

Marilena chegou a dizer que Olavo de Carvalho não tem obra e que faz filosofia na Internet, como se o pensamento fosse afetado por seu veículo no mesmo grau em que a música é afetada pela qualidade de seu instrumento. Da platéia, tive vontade de interferir. Não lembrando que Sartre, ex-guru da USP, fazia filosofia em botequim, movido a uísque, nem usando o próprio Espinosa no combate à conferencista, mas valendo-me de armas mais modestas. Pensei apenas em lembrar a Marilena que, se até a Inquisição que ela tanto critica procurava conhecer as bruxas antes de queimá-las, produzindo tratados sobre bruxaria, que direito tem um filósofo de desqualificar um adversário sem antes ler o que ele escreve? A atitude da autora de A Nervura do Real é um caso nada exemplar de neurose da realidade. Porque negar existência intelectual a Olavo de Carvalho não elide do pensamento contemporâneo do país as agudas críticas que ele fez à filosofia uspiana, especialmente a José Américo Mota Pessanha e à própria Marilena Chauí.

Não quero dizer com isso que Olavo de Carvalho seja o senhor da razão. Penso até que exagera em suas críticas à esquerda, algumas delas equivocadas. Mas a atitude da filosofia acadêmica, que antes de lê-lo se põe a difamá-lo, em nada contribui com a formação dos alunos. Ela parte da pequenez intelectual, incapaz de absorver a torrencial argumentação de Olavo de Carvalho, e deságua no pensamento dogmático, responsável pela ruína da educação brasileira em todos os níveis. Para entender esse estado de sítio em que se meteu a inteligência no país, só mesmo lendo o monumental O Jardim das Aflições, de Olavo de Carvalho, em que, descontados alguns daqueles exageros contra a esquerda, tem-se um límpido e ousado panorama crítico das idéias no mundo ocidental, com a vantagem de nele se incluir o Brasil. Tudo de um modo desassombrado, típico do pensador paulista.

Entretanto, Marilena Chauí parece não ter tempo de ler esse tipo de livro. Desconfio que seu estudo de Espinosa nada tem de “afinidade eletiva”, como tenta fazer crer; é somente uma obrigação burocrática ditada pelo caminho quase sem volta das pesquisas de pós-graduação – eles botam o sujeito no trilho acadêmico e o descarrilam para a inteligência. Como explicar que alguém que transpira Marx possa adorar Espinosa? Em duas entrevistas (nas revistas República e Caros Amigos), ela deixa transparecer esse equívoco. Conta que começou a estudar Espinosa a partir de uma conferência de um professor. E o fez porque, ao ouvi-lo, entendeu ter Espinosa criado uma filosofia que suprime o pecado, a culpa, o livre-arbítrio, a onisciência divina e oferece somente felicidade e alegria. O professor não corrigiu esse primeiro erro e, então, Marilena saiu pelo mundo a fazer de Espinosa um gauche na vida.

Na palestra na faculdade, sua despreocupação com a correção do intelecto chega ao absurdo. Um aluno lhe perguntou se por trás dos hábitos – como não tomar sorvete numa audiência na Justiça ou não ir de terno para a praia – haveria algum tipo de coerção voltada para algum interesse político. Até essa pergunta esconsa, que exige uma resposta capaz de atualizar o autor dela com o abecedário antropológico, ganhou de Marilena uma exegese de sabor marxista. Isto é, a mestra disse exatamente o que o discípulo queria ouvir, inaugurando uma espécie de teoria conspiratória dos costumes. Citando apenas dois exemplos de moda ditada pela classe dominante (um deles o uso da bengala pelos burgueses, em substituição à espada que eram impedidos de usar), ela teve a coragem de fazer de todos os costumes uma imanência do poder político, mais nada. O que é cuspir sobre a mais elementar noção de cultura. Provavelmente, não teria coragem de escrever semelhante asneira (em que pese ter escrito outras, devidamente denunciadas por Olavo de Carvalho), mas não se importou em proferi-la, levianamente despreocupada com o fato de que a maioria de seus ouvintes toma suas palavras por verdade e, preguiçosamente, não corrige com a leitura o que ela desconserta com sua loquacidade.

Entretanto, a mais grave distorção que Marilena Chauí fez do pensamento de Espinosa, na conferência da UFG, foi sem dúvida a sua insistência em reduzir a filosofia a uma “crítica do presente”, expressão que transformou num refrão. Também fiquei com vontade de perguntar à filósofa uspiana o que é o presente para sua filosofia. Em essência, o presente não passa de uma ilusão dos sentidos, suprimido a cada átimo de segundo pelo passado que se acumula e pelo futuro que se exaure. Historicamente, como parece ser o sentido que Marilena quis dar à sua expressão, o presente exige mais que a instantaneidade do jornalismo. Se é assim, porque Marilena Chauí, em sua conferência, não falou o nome do presidente Fernando Henrique Cardoso, preferindo demonizá-lo, chamando-o de “Desgraça”? Há menos de 20 anos, Fernando Henrique era um paradigma para ela e seus colegas. Ora, se Marilena não é capaz de ponderar esse passado tão presente até na sua vida, fica claro que, ao propor aos seus alunos que façam a “crítica do presente”, ela está, na verdade, confundindo filosofia com jornalismo e exigindo que o presente deles seja as fronteiras do aqui-agora. É a filosofia oscilando entre o artigo de jornal e as teses do PT.

Mas se Marilena Chauí tenciona fazer de todo filósofo um mero comentarista de jornal, que escolha como mestre um Voltaire, um Rousseau, ou mesmo um Montaigne. Espinosa não serve. A própria Marilena Chauí sabe disso, como se percebe nos dois volumes de Espinosa que preparou para a série Os Pensadores. Entretanto, a necessidade de afagar o ego da juventude, para transformá-la em militância, fizeram de seus consideráveis estudos filosóficos desprezíveis panfletos políticos, que transformaram a Faculdade de Filosofia da UFG numa Praça do Bandeirante. E nesta manhã de 7 de outubro de 1999, o filósofo Baruch de Espinosa foi excomungado pela segunda vez – para melhor engessá-lo na militância, Marilena Chauí o expulsou da filosofia. Mais algumas ovações, e ela o transforma em ideólogo do MST.

Post-scriptum cafajestíssimo

Olavo de Carvalho

Pouco tenho a acrescentar às notas do valente jornalista goiano José Maria e Silva. Apenas o seguinte:  

Como D. Marilena confessa que não leu nenhum de meus escritos, sua opinião sobre eles ou sobre o autor vale, exatamente, um peido.

Metade de um peido, se tanto, vale a autoridade do acadêmico que, admitindo desconhecer o assunto, opina sobre ele em público com ar de quem sabe o que diz, enganando a platéia que nela depositou sua confiança.

Já a confiabilidade de uma criatura que, desconhecendo não somente os escritos mas também o autor, se aventura desde o alto da cátedra a imputar-lhe má conduta pessoal, sem ter a alegar em favor desta arriscada conjetura senão um zunzum ouvido de testemunha anônima, essa então escapa, por infinitesimalidade intrínseca, à possibilidade de ser medida em peidos humanos.

Requer a escala flatulencial dos micos.

17/10/99

Nota de rodapé ao Post scriptum cafajestíssimo

Alguns meses antes de receber do jornalista José Maria e Silva o relato do que D. Marilena fôra dizer de mim lá em Goiás — e que na mesma hora chegou a mim na Europa –, redigi para a segunda edição de meu livro O Jardim das Aflições, ainda hoje em preparo, a seguinte nota de rodapé que, por absoluta pertinência ao caso, hei por bem reproduzir nesta homepage:

Algum tempo após os acontecimentos comentados neste livro, D. Marilena, graças a substancial ajuda oficial e privada, retirou-se por seis anos da agitação pública para, entre as dores e júbilos da criação, finalmente dar existência escrita ao livro-mito que desde duas décadas antes já era celebrado, pelo seleto círculo dos que o leram dos lábios da autora, como obra magna destinada a fazer da ex-musa do Departamento de Filosofia da USP a intérprete e porta-voz definitiva do filósofo judeu holandês Baruch de Spinoza, coisa que na idade dela, se não resolve, ao menos eleva, honra e consola. A Nervura do Real, com mil páginas de texto mais duzentas de notas em volume separado, saiu pela Companhia das Letras em 1999. Trata-se de uma mixórdia formidável, onde soltando perguntas a esmo sem conseguir formular um problema central, D. Marilena, na conclusão, diz finalmente a que veio: veio provar que Spinoza, por menos que o suspeitasse, era no fundo materialista e até mesmo um tanto petista. O livro foi aplaudidíssimo por pessoas que, admitindo-se incapacitadas para lê-lo, declaravam ver nisto uma prova das excelsas qualidades da obra. Fora disto, A Nervura do Real foi lido apenas pelos revisores e – horresco referens – por este que lhes fala. [Nota da 2ª ed.]

O bicho-síntese

Olavo de Carvalho

Bravo!, outubro de 1999

James Bryce, no fim do século passado, observou que para a elite brasileira as palavras eram mais reais do que as coisas. Transcorrido um século da visita do diplomata inglês, temos de admitir que o verbalismo assinalado por ele não é apenas o hábito de um grupo social localizado. O culto das palavras, uma hipersensibilidade às harmonias sonoras que chega a distrair do curso do pensamento, a idolatria da técnica verbal vista como o supremo sinal de inteligência a despeito do conteúdo ralo ou nenhum são constantes da mentalidade brasileira, independentes dos grupos e classes, das épocas e situações.

Quem hoje em dia assista na televisão a entrevistas de intelectuais e políticos se surpreenderá — caso não esteja ele próprio contaminado ao ponto de não notar nisto nada de anormal — com o fato de que seja possível criar tantas opiniões com tão poucas idéias. Mais surpreendente ainda é a capacidade que essas criaturas têm de reproduzir os mais tontos lugares-comuns com a fisionomia concentrada de um pensador que impusesse a seu cérebro as provações dolorosas de uma sondagem intelectual profundíssima. Abaixando o volume e contemplando esses senhores na pureza da sua expressão visível, diríamos que cada um deles é um Leibniz a enunciar as sutilezas do cálculo infinitesimal ou um Swedenborg a surpreender os incrédulos com a descrição dos mundos celestes. Aumentamos o volume, e percebemos que estão apenas falando mal ou bem do governo. Um dia vi na TV Cultura o sapientíssimo Paulo Freire. Tinha o cenho franzido, as mãos em garra, o olhar fixo na distância como quem divisasse no horizonte uma verdade longamente buscada. Tudo isso para soltar esta jóia: “Devemos ser tolerantes — mas não com os nossos inimigos”. Mesmo ouvida com a maior boa vontade, essa frase nada mais significa senão que devemos chamar a intolerância de tolerância.

O que mais impressiona nesse fenômeno é a precisão, a arte, mesmo, com que no Brasil quem não tem nada a dizer sabe imitar, na entonação das frases e no suporte gestual, o estilo dos sábios e profetas.

Um sintoma característico é o modo nacional de ler poesia. O teste decisivo do valor poético é a paráfrase em prosa, a explicitação do sentido (ou sentidos) do verso. Um só verso deve conter muitas sentenças em prosa, compactadas na unidade indissolúvel de música e significado. “Life is but a walking shadow” ou “Transforma-se o amador na coisa amada” contêm filosofias inteiras. Um público universitário não poderia prosternar-se de adoração devota ante um verso como “Amor morto motor da saudade”, se notasse que significa apenas que o poeta sente falta de sua ex-namorada — e, pior ainda, se percebesse que um sentimento banal não se torna mais valioso por vir empacotado na aliteração tô-tô-mô-mô. Portanto ele evita notar isto. Contorna a questão do valor poético recusando-se a fazer a paráfrase desmistificadora e, para sustentar a ilusão, atribui à poesia o estatuto de um mistério excelso que não deve ser profanado pelo exame racional — sendo a palavra “racional”, aí, pronunciada em tom de infinito desprezo. O puro jogo sonoro, a coceirinha nos ouvidos, torna-se o emblema de uma ciência secreta, inacessível ao comum dos mortais. A mistificação nada pode sem a ajuda da automistificação.

Diante de semelhante fenômeno, um observador severo e isento diagnosticaria na classe letrada nacional um caso de psitacismo endêmico. Erraria, no entanto. A habilidade dos psitacídeos esgota-se no mimetismo sonoro, ao passo que o fato aqui mencionado comporta igualmente uma essencial componente muscular e gestual, sobretudo no que concerne à reprodução das expressões mais finas do rosto humano. Isto não há papagaio que faça. Para chegar a tanto, é preciso acrescentar às potências vocais dessa ave a desenvoltura cênica e malabarística do outro animal emblemático da fauna mental brasileira: o macaco. Sim, a arte nacional da imitação é tão rica, que não pode ser simbolizada por um animal só, mas exige um bicho composto, macaco e papagaio ao mesmo tempo: o papaco ou macagaio, também chamado papamaco, pacagaio ou mapapaco. O nome pode variar tanto quanto as manifestações onímodas da criatura mesma. Deixo-o aos cuidados dos cultores de combinações sonoras não substancialmente mais lindas que tô-tô-mô-mô, e resumo meu argumento declarando que, qualquer que seja o caso, o sentido da maior parte dos ditos e escritos em circulação no país só pode ser apreendido mediante um conceito que sintetize, num termo único, macaquice e papagaiada.

8 de setembro de 1999

Falsíssimo Veríssimo

Olavo de Carvalho

5 de outubro de 1999

Num recente debate no Fórum Sapientia, aprovei entusiasticamente a indicação do sr. Luís Fernando Veríssimo para o “Prêmio Imbecil Coletivo” de 1999. Para não ser acusado de favorecimento injusto, apresento aqui as razões que, no meu entender, adornam de sobrantes méritos o cronista gaúcho na disputa pelo ambicionado galardão. – O. de C.

O sr. Luís Fernando Veríssimo, que na juventude chegou a ser engraçado, tornou-se na idade madura um exibidor profissional de ódio político paramentado de indignação moral. Não há profissão mais rentável no Brasil de hoje. Em todo caso, o sucesso do tolo não é motivo para que se torne assunto destas crônicas, as quais não têm por objetivo insuflar no leitor a revolta contra aquelas banalidades invencíveis que a sabedoria recomenda aceitar com a mais resignada e indiferente mudez. Eu nunca tocaria no nome do sr. Veríssimo se ele não houvesse tocado num assunto que, por tê-lo lecionado desde 1978, tenho o direito de supor que seja da minha conta. Mais que tocar, ele aí mexeu e remexeu, não só com a inabilidade rombuda de quem soldasse circuitos de HD com um maçarico de funileiro, mas também com aquela desenvoltura presunçosa do palpiteiro que, se imaginando um pregador entre índios, crê poder sem risco de vexame fazer passar por sábia a mais compacta ignorância.

Num de seus recentes sermões à taba, o sr. Veríssimo, apelando a elementos de erudição latina adquiridos na noite anterior entre um bocejo e outro, ensinou à indiada que o problema dela era acreditar no trivium de preferência ao quadrivium. Os silvícolas, diante de diagnóstico tão atemorizante, ficaram preocupadíssimos. Mas, para não ser acusado de abusar da boa-fé popular, o sr. Veríssimo logo explicou aos primitivos do que se tratava. Trivium e quadrivium compunham, na educação medieval, o sistema das Artes Liberais — o primeiro dedicado à prática da retórica oca e pomposa (gramática, lógica e retórica), o segundo ao estudo dos mistérios sapienciais (aritmética, geometria, música e astronomia). O Brasil, concluia o sr. Veríssimo, estava na pindaíba porque nas afeições nacionais o trivium “superou as artes precisas, tornadas inconseqüentes pela irrelevância política. A gramática, a retórica e a lógica – ou a gramática, a retórica e a lógica a serviço das abstrações e do narcisismo no poder – definem a realidade. As palavras substituem os fatos” (O Globo, 17 set. 99).

Não vou aqui apelar ao expediente demasiado óbvio de dizer que o sr. Veríssimo, jamais tendo se notabilizado como praticante de artes matemáticas, e não tendo feito outra coisa na vida senão juntar palavras em vista do efeito desmoralizante que pudessem exercer sobre seus desafetos políticos, é em tudo e por tudo um profissional do trivium e, neste, especificamente da retórica, da qual o humorismo polêmico é uma das ferramentas mais típicas e indispensáveis.

Não farei isso por um motivo muito simples. Comparações históricas deslocadas do seu sentido originário para adaptar-se à força a um argumento contencioso voltado contra políticos do dia não fazem parte do arsenal da ciência retórica, aquela em que se notabilizaram os tratados de Aristóteles, Quintiliano e, para citar o mais ilustre entre os recentes, Chaim Perelman. São instrumentos da baixa retórica conhecida como erística — a técnica mais ou menos improvisada de simular argumentos para confundir o adversário ingênuo e impressionar a platéia leiga. Consagrei ao estudo desses instrumentos e dos meios de desmascará-los o meu livro Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão. A Dialética Erística de Arthur Schopenhauer (Rio, Topbooks, 1998), cuja leitura recomendo fortemente ao sr. Veríssimo, com a advertência de que este conselho não é anúncio comercial e sim prescrição de dever escolar. Se o houvesse lido, o sr. Veríssimo compreenderia que a retórica não faz mal nenhum ao Brasil, pelo simples fato de que há décadas está ausente do nosso currículo escolar (enquanto o francês ou o americano lhe dão lugar de destaque) e, sendo completamente ignorada, não pode ter culpa de que pessoas como o sr. Veríssimo ou seus desafetos pratiquem em lugar dela uma outra coisa qualquer, chamando-a de retórica.

Que a comparação do sr. Veríssimo é forçada, é. Mais não poderia ser. O trivium e o quadrivium não tiveram nunca o sentido que ele lhes dá. Ele foi parar tão longe do assunto que se torna difícil explicar onde errou, porque todo erro supõe alguma referência à realidade, e as Artes Liberais do sr. Veríssimo são apenas a imaginação de um caipira cuja distância dos estudos medievais se mede em escala interestelar. A lógica, por exemplo, nunca teve nada a ver com eloqüência — pelo menos no sentido atual e brasileiro do termo –, e a retórica excluía expressamente do seu domínio a mera arte oratória com que a confunde o sr. Veríssimo, concentrando-se antes na avaliação da credibilidade dos argumentos perante os vários tipos de públicos e correspondendo, mutatis mutandis, ao que hoje é a psicologia da comunicação, uma ciência “de fatos” que, se pode ser acusada de alguma coisa, é de pobreza de abstração. Quem quer que tenha dado ao menos uma lambida na Retóricade Aristóteles sabe disso, donde concluo que o sr. Veríssimo se absteve dessa experiência gustativa, talvez temendo que pudesse lhe ser letal.

Por isto mesmo ele não pode ser acusado sequer de praticar a erística. O argumentador erístico domina seu arsenal de truques e sabe quando trapaceia. Já o sr. Veríssimo age com plena inocência, porque não tem a menor idéia do que está dizendo. Comparando uma coisa que desconhece com outra da qual tem apenas uma vaga idéia, ele chega a conclusões que lembram as de um drogado recém-emerso de uma bad trip a conjeturar em vão onde está e o que foi fazer ali.

Desde logo, imaginar que as artes da linguagem lidem com “abstrações” enquanto as matemáticas se ocupam de “fatos” reflete aquela completa ignorância contra a qual não valem argumentos, melhor convindo, em tais circunstâncias, a chinela da mãe para mandar o sabidinho para a escola.

Em segundo lugar, dizer que os brasileiros preferem a lógica à música é algo tão extravagante que não compreendo que alguém o profira em estado de sobriedade. Bem ao contrário, o que se pode afirmar com razoável certeza é que a afeição dos brasileiros à musicalidade é tão extremada que chegam a fazer dela um substituto da lógica, persuadindo-se da veracidade de uma sentença tão logo afetados por suas qualidades sonoras. O próprio sr. Veríssimo, como se nota pelo caso presente, não parece submeter suas opiniões a outros testes senão o puramente auditivo.

Em terceiro, ignorar o papel central que a música e as matemáticas desempenham na retórica do poder contemporâneo — a primeira moldando a sensibilidade das massas, as segundas estruturando toda a ideologia científica que domina desde a política econômica até a administração de nossos corpos pelo establishment médico-sanitário –, já é elevar a cegueira às dimensões de um culto religioso.

Em quarto lugar, as Artes Liberais compunham um sistema coeso, de modo a permitir, justamente, que o pensar com palavras e o pensar com números formassem uma base única para a compreensão das ciências voltadas a realidades superiores que transcendiam palavras e números. Se há pois disciplinas que valem o mesmo, e entre as quais não se pode estabelecer nenhuma diferença de valor, são aquelas que compõem o trivium e o quadrivium, todas elas igualmente elementares e aliás perpassadas de estruturas comuns que tornam impossível separá-las, como por exemplo as associações entre as órbitas planetárias e as categorias da gramática, ou entre estas e os sólidos geométricos do platonismo. Expliquei alguma coisa disso no meu livreto Astros e Símbolos (1985), que está esgotado, se bem que não tanto quanto a minha paciência de ouvir gente como o sr. Veríssimo falar do que ignora.

E não é estranho que, tão despreparado para lidar com o assunto, o sr. Veríssimo embarque por fim na confusão, que se tornou obrigatória na nossa imprensa, entre “o poder” e “o governo”. Refletindo a incapacidade geral de discernir entre a organização jurídica nominal de um país e as estruturas mais profundas que a determinam — incapacidade que chega a ser espantosa numa geração que se gaba de marxista –, o ocupante mais ou menos casual de um cargo eletivo passou a ser “o poder”, enquanto o vasto império midiático que lá o colocou e de lá há de tirá-lo quando bem entenda se converte, por meio da performance do sr. Veríssimo e grande elenco, na personificação do não-poder, do excluído, do brasileiro pobre que geme inerme sob o tacão dos poderosos. Com truques como esse (também meio inconsciente, pois o sr. Veríssimo jamais seria esperto o bastante para pensar numa coisa dessas), a classe falante oculta o seu próprio poder, fazendo do governo o bode expiatório cujo ruidoso sacrifício permitirá que, por baixo das sacudidas periódicas na superfície do noticiário, ela permaneça, como Minas, onde sempre esteve.

Alguns dirão, lendo estas linhas, que abusei das minhas forças, que joguei décadas de estudo contra um pobre cronista sem pretensões eruditas. Mas o sr. Veríssimo, como aliás toda a geração de pessoas que hoje dominam o pequeno jornalismo e o show business, não apenas tem pretensões eruditas como se prevalece delas para se tornar uma espécie de maître à penserhabilitado a dirigir o curso do destino mental brasileiro, subindo infinitamente acima de suas sandálias de cronista de província nas quais seus rechonchudos pezinhos cabiam com perfeição.

Não há hoje sambista, roqueiro, comentarista esportivo ou apresentador de TV que se abstenha de posar de intelectual e dar lições. A causa disto é patente: uma certa corrente política, desejando exercer sobre o país a hegemonia intelectual, e só dispondo de raríssimos estudiosos sérios em suas fileiras, teve de improvisar “quadros” — que é como ela denomina as pessoas –, e rodear sujeitos como o sr. Veríssimo de um prestígio e de uma autoridade absolutamente desproporcionais às suas capacidades. O resultado é que hoje a denúncia do verbalismo nacional, tão decisiva para a correção dos nossos costumes, se converteu em imitação simiesca de si própria e se prostituiu em demagogia ornamentada de falsa erudição: o verbalismo criou anticorpos e se alimenta de auto-acusações.

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