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Máfia gramsciana

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 25 de novembro de 1999

A cada dia que passa, mais o chamado “debate cultural” brasileiro se reduz a mero debate eleitoral, tudo rebaixando ao nível dos slogans e estereótipos e, pior ainda, induzindo as novas gerações a crer que a paixão ideológica é uma forma legítima de atividade intelectual e uma expressão superior dos sentimentos morais.

Tão grave é esse estado de coisas, tão temíveis os desenvolvimentos que anuncia, que todos os responsáveis pela sua produção – a começar pelos fiéis seguidores da estratégia gramsciana, para a qual aquela redução é objetivo explicitamente desejado e buscado – deveriam ser expostos à execração pública como assassinos da inteligência e destruidores da alma brasileira.

Para Antonio Gramsci, a propaganda revolucionária é o único objetivo e justificação da inteligência humana. O “historicismo absoluto”, um marxismo fortemente impregnado de pragmatismo, reduz toda atividade cultural, artística e científica à expressão dos desejos coletivos de cada época, abolindo os cânones de avaliação objetiva dos conhecimentos e instaurando em lugar deles o critério da utilidade política e da oportunidade estratégica.

É idéia intrinsecamente monstruosa, que se torna tanto mais repugnante quanto mais se adorna do prestígio associado, nas mentes pueris, a palavras como “humanismo” ou “consenso democrático” (naturalmente esvaziadas de qualquer conteúdo identificável), bem como das insinuações de santidade ligadas à narrativa dos padecimentos de Antônio Gramsci na prisão, as quais dão ao gramscismo a tonalidade inconfundível de um culto pseudo-religioso.

Recentemente, um grande jornal de São Paulo, que se gaba de sempre “ouvir o outro lado”, consagrou a Antonio Gramsci todo um caderno, laudatório até à demência, que, sem uma só menção às críticas devastadoras feitas ao gramscismo por Roger Scruton, por Francisco Saenz ou – de dentro do próprio grêmio marxista – por Lucio Coletti, deixa no leitor a falsíssima impressão de que essa ideologia domina o pensamento mundial, quando a verdade é que ela tem aí um lugar muito modesto e até o Partido Comunista Italiano, com nome mudado, já não fala de seu fundador sem um certo constrangimento.

Que o jornalismo assim se reduza à propaganda, nada mais coerente com o espírito do gramscismo, o qual não busca se impor no terreno dos debates, do qual não poderia sair senão desmoralizado, e sim através da tática de “ocupação de espaços”, por meio da qual, excluídas gradualmente e quase sem dor as vozes discordantes, a doutrina que reste sozinha no picadeiro possa posar como resultado pacífico de um “consenso democrático”.

Com a maior cara-de-pau os adeptos dessa corrente atribuirão a um mórbido direitismo esta minha denúncia, sem ter em conta aquilo que meus leitores habituais sabem perfeitamente, isto é, que eu denunciaria com o mesmo vigor qualquer ideologia direitista que tentasse se impor mediante o uso de estratagemas tão sorrateiros e perversos.

Se no momento pouco digo contra a direita é porque sua expressão intelectual pública é quase nula, não por falta de porta-vozes qualificados, mas de espaço. Os liberais, banidos de qualquer debate moral, religioso ou estético-literário, recolheram-se ao gueto especializado das páginas de economia, o que muito favorece o lado adversário na medida em que deixa a impressão de que o liberalismo é a mais pobre e seca das filosofias. Quanto às correntes conservadoras que ainda subsistem, por exemplo católicas e evangélicas, sua exclusão foi tão radical e perfeita, que hoje a simples hipótese de que um conservador religioso possa ter algo a dizer no debate cultural já é objeto de chacota. Chacota, é claro, de ignorantes presunçosos, que, nunca tendo ouvido falar de Eric Voegelin, de Russel Kirk, de Malcom Muggeridge, de Reinhold Niebuhr ou de Eugen Rosenstock-Huessy, acreditam piamente que não pode existir vida inteligente fora de suas cabecinhas gramscianas, e provam assim ser eles próprios as primeiras vítimas da censura mental que impuseram a todo o País.

No campo intelectual, atacar a “direita”, hoje, seria mais que covardia: seria coonestar a farsa de que no Brasil existe um debate cultural normal, quando o que existe é apenas o mafioso apoio mútuo de gramscianos a gramscianos, que priva os brasileiros do acesso a idéias essenciais e ainda tem o cinismo de posar de democrático.

Humanismo e totalitarismo

Seminário de Filosofia, 23 de novembro de 1999

Ou há uma realidade absoluta e eterna acessível ainda que parcialmente ao indivíduo humano, ou não há. Na primeira hipótese, todo vislumbre dela que tenha sido experimentado, ainda que fugazmente, tem uma importância universal objetiva como realização das supremas possibilidades humanas, mesmo que essa experiência tenha acontecido a um indivíduo solitário e desconhecido, e mesmo que dela nada tenha se registrado para a “posteridade” e integrado no legado “cultural”. Tal é o caso dos “santos anônimos”, como os wally’ullahi (“amigos de Deus”) do islamismo, referidos, ao lado dos homens espirituais famosos e em escala de valor não inferior ao deles, por todas as tradições religiosas e sapienciais.

A História da sabedoria, aí, não passa do registro de uns quantos exemplos notáveis, escolhidos ao sabor da acidentalidade que os tornou famosos. A fama e o conseqüente registro histórico não significa nem que esses casos sejam os mais elevados no que diz respeito à qualidade e quantidade dos conhecimentos obtidos, nem que entre eles, tomados em conjunto na sua sucessão histórica, exista a unidade identificável de um processo, de vez que, como Deus protege da notoriedade muitos dos que Lhe são próximos, muitos elos decisivos dessa cadeia, se é que ela existe, têm de permanecer desconhecidos da “cultura” humana e da história. Na Bíblia, por exemplo, a figura misteriosa, evanescente e perfeitamente a-histórica de Melquisedec, da qual pouco se sabe além de que é o nome do fundador da ordem sacerdotal em que se insere o próprio Cristo, não é menos decisiva, espiritualmente, do que um personagem da relevância pública e histórica de Moisés.

A história, aí, não é senão o mostruário mais ou menos casual e fragmentário de uma unidade transcendente, a qual só se realiza numa meta-história que permanece acessível – paradoxalmente, para o gosto moderno – a indivíduos sem importância histórica nenhuma.

Praticamente todas as civilizações conhecidas assentaram-se nessa hipótese.

Na outra hipótese, não há unidade transcendente alguma, nem meta-história, nem vislumbres esparsos dessa suprema realidade. Só resta então duas alternativas: ou cada indivíduo isolado se perde e se anula na sua subjetividade empírica fatalmente cega, ou os homens se reúnem para construir, pela redução de seus discursos individuais à unidade de uma doutrina ou ao menos de um diálogo racionalmente formulável, o único tipo de universalidade doravante possível, a universalidade de uma linguagem válida para todos os membros da espécie.

Seria um exagero dizer, como René Guénon, que “a civilização ocidental moderna” apostou maciçamente nesta segunda hipótese, sendo o único exemplo conhecido disso. Pois, de um lado, dentro dessa mesma civilização subsistem poderosos núcleos de resistência fortemente apegados à aposta na meta-história, núcleos sem cuja presença a história moderna seria totalmente inconcebível (como o prova aliás a própria influência de René Guénon, que nem por discreta é menos decisiva, do que, se fosse preciso demonstrá-lo, seria exemplo bastante a prodigiosa expansão do esoterismo islâmico entre as elites dominantes européias).

No entanto é fato que em nenhuma outra civilização conhecida a pretensão de suprimir a meta-história e de construir uma universalidade ao nível da pura história foi tão destacada como no Ocidente moderno. Por isto, ainda que parcial, problemática e rodeada de resistências que crescem em vez de diminuir, a mencionada aposta pode legitimamente ser encarada como o principal traço diferenciador dessa civilização. Por sua eliminação dos fatores sobre-humanos e sua ênfase no papel exclusivo da humanidade na criação do novo padrão de universalidade, esse traço recebeu o nome de humanismo.

Entre as conseqüências que essa aposta atrai inevitavelmente, há uma que tem passado despercebida àqueles que a defendem. É que ela, para se manter, deve substituir ao mero dogmatismo autoritário das antigas tradições a nova forma de tirania muito mais abrangente e cerrada que, por não deixar nada da conduta humana mesmo íntima e secreta escapar ao seu controle, se denominou, com muita propriedade, totalitarismo. As relações de implicação recíproca de humanismo e totalitarismo são o tabu em que se assenta, como sobre a conspiração para ocultar um crime originário, a parte mais pública e hegemônica da cultura moderna.

Dois fatores contribuem para manter intocado esse tabu. De um lado, o prestígio mesmo, quase mágico, da palavra “humanismo”. Originariamente designando apenas a aposta na autonomia da humanidade em relação a todo sobre-humano, o termo humanismo, tardiamente, veio a ser usado para designar, na retórica e na propaganda política, a defesa dos seres humanos contra as tiranias desumanas, obscurecendo assim aos olhos da multidão o fato historicamente inegável de que nenhuma das grandes tiranias modernas se assentou na devoção ao supra-humano, mas, ao contrário, todas elas nasceram da adesão professa ao humanismo, da aposta no universal histórico.

De outro lado, toda a história moderna se desenrola ao fio das lutas entre duas facções dos construtores do universal histórico: os adeptos da doutrina universalmente válida e os adeptos do diálogo em aberto (por exemplo, os marxistas e os liberais; ou os nazistas e os socialdemocratas). Como cabe aos primeiros representar a opção totalitária ostensiva, a periódica vantagem a favor dos segundos e a hegemonia que desfrutam ao longo do tempo dão a impressão de que o ciclo moderno vai na direção da vitória sobre o totalitarismo e de que portanto este não pertence à natureza mesma desse ciclo e só pode ser explicado como “resíduo” de eras passadas. Assim, a invenção tipicamente moderna do totalitarismo vai sendo cada vez mais atribuída a épocas que o desconheceram por completo e que não poderiam sequer imaginá-lo, ao mesmo tempo que o totalitarismo mais expansivo pode perpassar de cabo a rabo todo o ciclo moderno sem jamais ser percebido como fenômeno caracteristicamente dele e só dele, que é o que de fato ele é. Embora só a modernidade tenha conhecido regimes totalitários, a imagem dela permanece limpa de todo contágio com a horrenda figura do totalitarismo na medida mesma em que as épocas que não o conheceram são sacrificadas como bodes expiatórios no altar da auto-lisonja moderna.

No entanto, a perpetuidade ao menos cíclica do totalitarismo – e da luta contra ele por parte dos adeptos do diálogo – na época moderna, bem como a ausência de ambos esses fenômenos em outras épocas, sugere, por si, mais que a conveniência, a imperiosa obrigatoriedade lógica e moral de não caracterizar a época moderna por um desses traços apenas – e muito menos pelo mais bonito deles tomado isoladamente – e sim pela coexistência de ambos. É errado, pois, associar o tempo do humanismo apenas com a defesa da liberdade e do diálogo, pois o totalitarismo está presente nele com a mesma constância da ideologia dialogal e o singulariza tanto quanto ela. O totalitarismo não é a sombra de épocas passadas que obscurece as luzes da civilização humanista: é a sombra da própria civilização humanista, com que ela obscurece injustamente a nossa visão das épocas passadas.

Porém, há mais quatro itens que devem ser levados em consideração nesse exame impiedoso da era moderna. Primeiro, se o totalitarismo está associado ao humanismo ao menos tanto quanto o está a ideologia dialogal, a revelação desse fato suprimiria no mesmo instante boa parte do prestígio dessa ideologia que, não podendo subsistir sem a sombra que por contraste a faz parecer luminosa, se dissiparia instantaneamente na hipótese de ausência dele. Eis aí por que a queda do Muro de Berlim não inaugurou no mundo a anunciada era de liberdade, mas um estado crônico de intervenção policial.

Em segundo lugar, se o totalitarismo não pode ser separado da época humanista e se esta só consegue afirmar sua superioridade sobre as épocas passadas projetando sobre elas a sua própria sombra de modo a fazê-las parecer totalitárias, cabe perguntar se também esta projeção e esta mentira histórica não estão na própria natureza da era humanista e se esta poderia subsistir um só instante se tal mentira fosse universalmente revelada como tal.

Em terceiro lugar, é preciso perguntar-nos, com toda a firmeza requerida para isso, se a ideologia dialogal, com todos os seus encantos, é efetivamente algo mais do que pura ideologia, no sentido depreciativo de Ideenkleid, “vestido de idéias” com que o humanismo encobre sua face totalitária, e se, considerada na densa realidade concreta de sua cumplicidade congênita com o totalitarismo, essa ideologia não se desfaria em miserável pó de palavras.

Em quarto e último lugar, restaria examinar se o próprio diálogo, nas condições concretas em que se exerce e não no seu mero conceito abstrato idealizado, não consegue se instalar e manter apenas por meios discretamente totalitários, pronto a convertê-los em totalitarismo ostensivo ao menor sinal de perigo para os fundamentos da sua existência, isto é, ao menor sinal de desmascaramento do pacto humanista entre totalitarismo e diálogo.

Se as doutrinas da liberdade política, da democracia e do diálogo não puderem subsistir a esse exame, é porque não têm substância nenhuma fora desse pacto.

Rolinho primavera

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 11 de novembro de 1999

Um exemplo da inconsciência pertinaz da qual falei no artigo anterior foi-nos dado recentemente pelo sr. João Amazonas. Ao completar 87 anos, ele declarou que, com o Muro de Berlim, o que caiu não foi o comunismo – foi apenas um seu “desvirtuamento”. Dizia Goethe que, quando um homem não sabe o que fazer, o que lhe resta é apegar-se a uma palavra como o náufrago a uma tábua. Apoiado nesse giro lingüístico, o lindo ideal do velho militante bóia incólume sobre um mar de mortos, sem sentir-se manchado por uma só gota do seu sangue. Autodispensado de prestar satisfações pelos feitos do regime a que serviu, é com a consciência mais limpa que o sr. Amazonas pode agora preconizar um inédito “comunismo brasileiro”, tão isento de culpas históricas quanto ele próprio, e ungido daquela inocência primordial de quem tem por pai o puro nada.

Não havendo objeção possível contra tão anti-séptica criatura, o jornalismo pátrio limitou-se a prantear, nessa data querida, o rosário de penas desfiado pelo fundador do PC do B, desde as prisões curtidas em duas ditaduras até o seu quase falecimento de indigestão, ocorrido nesse mesmo natalício por obra de um fatídico rolinho primavera, decerto infiltrado no cardápio pelas mãos de algum dissidente chinês, desses que, postos a correr de Pyong Yang, vêm conspirar no território brasileiro sob o disfarce do inocente comércio de pastéis e caldo de cana.

Contra os que o acusem de mudança oportunista, o sr. Amazonas pode até mesmo alegar que não é de hoje que ele qualifica de falso o comunismo do Leste Europeu. Ele já disse o mesmo em 1962, quando, indignado com o desvirtuamento de seus ideais pelo regime moscovita a cuja expansão no mundo dera o melhor de si, abandonou o Partidão para fundar um partidinho.

O sr. Amazonas, portanto, não é um oportunista. Suas aparentes mudanças refletem sua fidelidade a uma escala de valores constante e inflexível. Para saber que escala é essa, basta perguntar contra que, precisamente, se ergueu a voz do sr. Amazonas em 1962.

O que se discutia então era simples: o regime de Moscou havia dessacralizado Josef Stalin, revelando a responsabilidade do ditador pela morte de milhões de pessoas. Pior ainda, havia decretado o fim da guerra sangrenta contra o capitalismo, propondo uma política de “coexistência pacífica” com as democracias ocidentais. Diante de tal descalabro, o sr. Amazonas montou nos tamancos, proclamando anátema o novo dogma moscovita e herético o seu porta-voz local, Luís Carlos Prestes. Dito isto, bandeou-se para a igreja chinesa, a qual, preservando a pureza originária da doutrina, continuava não apenas a cultuar o ícone de Stalin, mas a seguir à risca o molde stalinista de governo, como o prova o fato de que, enquanto a União Soviética se cansara de beber sangue ao alcançar a cifra de 20 milhões de dissidentes mortos, o regime chinês seguiu bebendo até chegar à marca dos 60 milhões e, malgrado um certo fastio assinalado nos últimos anos, ainda não parou.

O sr. Amazonas, portanto, não mudou nada. Disse em 1962 que o comunismo soviético não era comunismo, e repetiu a mesmíssima coisa agora. Foi com plena fidelidade a essa premissa que ele pôde concluir que o comunismo brasileiro vem ao mundo sem antecedentes.

Mas, perguntará o leitor, e o comunismo chinês? E a linha chinesa? Onde foram parar, no silogismo montado pelo sr. Amazonas? E eu em verdade vos digo: não sei.

O dr. Freud opinaria que há um “ato falho” no fato de que, ao escamotear do seu discurso a existência do regime chinês com seus 60 milhões de vítimas, o orador se torne, na mesma hora, quase uma vítima fatal da culinária chinesa. E – diria ainda – tanto mais significativo se revela esse infausto acontecimento gastrenterológico, ao sabermos que se deu durante um almoço servido, em homenagem ao aniversariante, justamente no Consulado da China em São Paulo.

Mas o dr. Freud era um tremendo reacionário, e não devemos dar-lhe ouvidos. Já que citamos Goethe, fiquemos com ele e reconheçamos que não há situação, por mais estúpida, que o tempo não enobreça. A fidelidade do sr. Amazonas ao seu propósito de tapar o sol com peneira reveste-se, aos 87 anos, de uma certa aura de nobreza. Num ancião venerável não se bate nem com uma flor. Muito menos com um rolinho primavera.

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