Yearly archive for 1999

Picuinhas comunistas

Olavo de Carvalho

17 de julho de 1999

Durante vinte anos a obra ensaística de Otto Maria Carpeaux ficou esquecida, abandonada às traças pela máfia esquerdista que o grande crítico tanto ajudara em vida. De repente, esse tesouro é desenterrado por um estranho, por alguém que além de não ser membro do Clube já mostrou seu total desprezo a essa entidade, cuspindo na reputação sacrossanta de alguns de seus diretores. É o escândalo. De norte a sul do país um brado de alerta percorre as fileiras da instituição:

— Roubaram-nos o Carpeaux!

— Quem foi?

O mensageiro baixa os olhos:

— Foi… “a direita”!

Horror! Horror! Horror! Que fazer?, pergunta o secretário-geral, José Stálin Lênin da Silva. Descer o cacete não é possivel — dialetiza —: não podemos criticar quem faz o que seria nossa obrigação. Silenciar? Não podemos: seria deixar para a direita o domínio do espaço aéreo. Por fim, fazendo uso do centralismo democrático, ele mesmo responde, enunciando a linha justa:

— Celebrar a descoberta, omitindo o descobridor.

Assim, anos de pesquisas, setecentas e vinte notas de rodapé e uma introdução de oitenta páginas — o primeiro estudo abrangente que se fez da obra de Carpeaux, com dados inéditos e questões jamais perguntadas — desaparecem das folhas dos jornais, como se nunca tivessem existido. Nada podendo falar contra — porque, raios nos partam, o negócio está bom mesmo —, o melhor é não falar nada. Para não caracterizar juridicamente a falta de todo crédito (pois aí já seria dar a cara para apanhar), o nome de Olavo de Carvalho constará na ficha técnica, em letras miúdas, junto com a data e o preço do exemplar. Nem uma palavra sobre ele no corpo dos textos.

— E isso ainda tem uma vantagem: badalamos as editoras e assim as jogamos contra ele. E, se ele reclamar, diremos que é vaidade ofendida.

Um risinho de auto-lisonja percorre a assembléia: “Ai, como somos maquiavélicas!” Respingos de satisfação molham algumas calcinhas.

A linha justa já foi levada à prática na Folha de S. Paulo de 4 de julho. Agora, em O Globo do dia 17, em matéria assinada pelo velho Pires, o Pires propriamente dito — aquele mesmo d’O Imbecil Coletivo —, escolhido para a tarefa precisamente por não poder ter isenção para falar de quem, em público e sem qualquer contestação, já o chamou de mentiroso.

Aguardam-se as manifestações de fidelidade do JB, de Veja, de Isto É e das demais células.

O mais curioso do caso é a desenvoltura com que esses comunistas consideram o Carpeaux coisa sua, esquecendo a brutal campanha de difamação que, orquestrada por Dalcídio Jurandir, Oswald de Andrade e o futuro dissidente Carlos Lacerda, moveram contra o escritor tão logo ele desembarcou no Brasil. O episódio é brevemente relatado na minha Introdução, e acaba de ser relembrado ao meu editor, José Mário Pereira, por Moacir Werneck de Castro, um dos participantes da operação, hoje aparentemente envergonhado dela, não sei se moralmente ou apenas politicamente, como é de praxe entre comunistas.

O leitor brasileiro não sabe que está sendo enganado, que cada página dos grandes jornais do país é calculada, controlada e censurada pela direção comunista que se apossou dessas publicações, cujos proprietários, atemorizados pelo apoio ostensivo do governo Clinton à esquerda brasileira, tentam salvar a pele ficando caladinhos e puxando, quando podem, o saco de seus seqüestradores.

O leitor brasileiro ainda imagina viver num país onde há liberdade de imprensa.

A unidade de sujeito e objeto

Olavo de Carvalho

Resumo do argumento fundamental contra o subjetivismo moderno

Seminário de Filosofia, 15 de julho de 1999.

O ciclo filosófico moderno começa com o giro de atenção que Descartes imprime ao pensamento, desviando-o da certeza “ingênua” do mundo exterior para o terreno supostamente firme do cogito. Daí por diante, o sujeito, considerado enquanto alma solitária que dialoga consigo mesma num ambiente vazio de seres e coisas, será tomado como o ponto arquimédico de toda meditação filosófica. O sujeito solitário está aí ligado diretamente à universalidade de Deus, e, garantido por esta, pode extrair de si mesmo, por dedução, a ciência inteira de Deus, do cosmos e dele próprio. É o que fará Spinoza, levando às últimas conseqüências o dedutivismo solitário e o desprezo pela experiência do mundo exterior.

É verdade que, em reação a esse extremismo solipsístico, surge na Inglaterra a escola dita empirista, que, de Locke a Hume, não admitirá outro ponto de apoio senão as sensações, consideradas atomísticamente, de cuja somatória indutiva (o único procedimento admitido) não se poderá obter a certeza de verdades universais ou mesmo a da unidade do próprio eu pensante.

Aparentemente, esta escola rejeita o primado do eu e nos coloca, portanto, fora do domínio cartesiano. Mas isto é uma impressão falsa. Na verdade, o empirismo não enfoca os objetos do mundo exterior senão como ocasião das sensações; e como as sensações se dão no sujeito, isso resulta em nunca encarar esses objetos diretamente, senão sempre pelo viés do sujeito.

O subjetivismo é a marca de toda a filosofia dita moderna, pouco diferindo nisto as duas escolas rivais, racionalista e empirista.

Tanto assim é que a confluência final dessas duas escolas, realizada na filosofia crítica de Kant, resulta em fazer do sujeito, por intermédio das formas a priori, o molde e razão da própria unidade do mundo. O objeto enquanto tal recua para a distância inatingível da “coisa-em-si”, definida, por sua vez, como aquilo que o objeto é independentemente do que o sujeito sabe dele, isto é, definida, ainda uma vez, pela sua dependência (ainda que negativa) do sujeito.

A prioridade do sujeito em relação ao objeto é, pois, a constante inabalável do ciclo filosófico moderno. Se quisermos portanto ir um passo além, só nos restam dois caminhos. O primeiro é negar o sujeito mesmo, esfarelando até mesmo a unidade puramente subjetiva que nos foi legada por Kant. Este é o caminho seguido pela psicanálise, pela filosofia analítica, pelo desconstrucionismo. O segundo caminho é restaurar o estatuto ontológico do objeto. Husserl tentou este caminho, mas, ainda prisioneiro do cartesianismo, voltou a tomar como ponto de partida a consciência solipsística e nunca mais pôde se livrar das conseqüências inapelavelmente idealistas a que este enfoque conduz.

O caminho para a restauração do objeto deve, no meu entender, tomar uma direção radicalmente diversa.

Esse caminho consiste em negar desde logo a prioridade gnoseológica do sujeito mediante a simples constatação de que ele não poderia ser sujeito se não fosse também objeto. Para prosseguirmos nesta linha de considerações é necessário no entanto definir desde logo o que se entende por sujeito e por objeto, e as definições que proponho são as mais simples que se pode imaginar: sujeito (do conhecimento) é o que recebe informações, objeto é aquilo que as emite, ao menos no entender do sujeito. Assim definidos os termos, compreendemos de imediato que o sujeito, considerado apenas e estritamente enquanto sujeito, distinto e separado de todo objeto, nada poderia saber, pois não teria nem a si próprio como objeto do seu conhecimento. O ego cogitans cartesiano não pode ser, pois, puro sujeito, na medida em que algo sabe de si e tem portanto a si próprio como objeto.

De modo mais geral, nenhum puro sujeito é concebível, pois este somente receberia informações sem emiti-las nunca, e portanto nada poderia saber a respeito do que quer que fosse, nem mesmo a respeito de si próprio, e, no instante mesmo em que se definisse como puro sujeito cognoscente estaria afirmando eo ipso que nada conhece, não podendo, pois, ser sujeito cognoscente.

De outro lado, e complementarmente, é inconcebível o puro objeto, que apenas emitisse informações sem receber nenhuma, pois isto equivaleria a um puro agir sem qualquer feed back, o que é contraditório com a noção mesma de continuidade da ação no tempo e só poderia cumprir-se na hipótese, intrinsecamente absurda, de uma ação sem duração.

Ora, se o sujeito cognoscente não pode ser o que é sem ser também objeto, e se de outro lado o objeto não pode ser um radical não-sujeito, a conclusão fatal é que a condição de sujeito e a de objeto se exigem reciprocamente e não se separam senãoin verbis. Na melhor das hipóteses, sujeito e objeto são nomes de funções que, porém, para ser exercidas, se requerem mutuamente não só no sujeito como também no objeto, possuindo cada um deles ambas as funções e só podendo ser sujeito e objeto um para o outro porque cada um deles é em siambas as coisas.

Até o momento, todas as tentativas de reunir sujeito e objeto — como por exemplo no realismo escolástico ou na fenomenologia — tentaram fazê-lo na relação entre um sujeito dado e um objeto dado. Mas é evidente que esta união não se poderia realizar no plano da mera relação se já não estivesse dada na constituição mesma do sujeito (que é inseparavelmente objeto), bem como na do objeto (que é inseparavelmente sujeito).

Ora, toda dúvida cética com relação ao conhecimento humano surge precisamente da hipótese de um hiato entre sujeito e objeto, hipótese que, não podendo ser provada, não pode também ser contestada a partir do momento em que, no estudo dessa relação, se tome por ponto de partida o sujeito cognoscente em estado puro (solipsístico) e se tomem os termos da relação como se fossem, um, o puro sujeito cognoscente, o outro, o puro objeto conhecido. Não há aqui como saltar o abismo entre a representação, que estará sempre e fatalmente no sujeito, e o objeto representado que estará sempre e por hipótese fora dele.

Mas, se compreendemos que a união de sujeito e objeto não deve ser buscada na relação e sim, antes dela, na constituição de cada um deles — ou seja, nas constituições respectivas de dois entes que são, cada um por si, inseparavelmente sujeitos e objetos —, então compreendemos também que uma união que está na constituição mesma de um ente não pode ser desfeita pela simples relação que ele contraia com um outro ente; e que, ao contrário, esta relação não pode fazer senão manifestar, pela reciprocidade das informações emitidas e recebidas, a união indissolúvel de sujeito e objeto, agora considerada não em cada um desses entes tomado separadamente, mas na inter-relação do subjetivo-objetivo de um com o subjetivo-objetivo de outro. Esta relação é o que denominamos conhecimento, e ela é essencialmente união de sujeito e objeto, não cabendo operar sobre ela a disjunção céptica senão in verbis. Eis aí, de um relance, toda dúvida céptica reduzida a mero jogo de palavras. De quebra, eis aí derrubadas para sempre as muralhas da prisão subjetivista e, junto com elas, as colunas do palácio kantiano.

Que aqueles que têm olhos para ver consigam perceber as tremendas conseqüências filosóficas dessas constações, e que compreendam residir aí o verdadeiro princípio de toda ciência.

 

Quem trabalha para quem

Ombro a Ombro, julho de 1999

Você leu “O enigma que é solução”? Então conheça aqui um dos dados do problema.

De hoje em diante, quando você ouvir um sujeito defender “causas populares”, verifique primeiro se ele recebe dinheiro das fundações Ford, Rockefeller ou Carnegie.

E quando ouvir um esquerdista fazer um discurso inflamado contra o neoliberalismo, lembre-se de três coisas: 1ª Neoliberalismo não tem nada a ver com liberalismo. Liberalismo é liberdade para a iniciativa econômica popular; neoliberalismo é economia global dirigida — o socialismo dos ricos. 2ª O neoliberalismo é um projeto abrangente, que inclui (e compatibiliza com os interesses da estratégia global) todos os programas atualmente defendidos pela esquerda no Brasil (aborto, controle de armas, casamentos gays, quotas raciais etc. etc.). 3ª A palavra “neoliberalismo”, na nossa imprensa, não significa nada disso, mas é sinônimo de FHC. Ao falar contra o neoliberalismo, a esquerda está apenas disputando com FHC o cargo de executor local dos planos neoliberais. Ela jamais baterá de frente nos interesses estrangeiros que a sustentam. Não se trata portanto de uma luta contra o dono, mas apenas contra o gerente. Derrubado FHC, mudará o estilo da subserviência: passaremos do esculacho risonho à anarquia sangrenta. Os donos do mundo já anunciaram: para eles, dá na mesma.

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