Yearly archive for 1999

Aviso aos manifestantes

Olavo de Carvalho

2 de agosto de 1999

Diante da notícia, que me chega de fonte abalizada, segundo a qual o pessoal do PSTU pretende fazer uma manifestação pública de repúdio à minha presença no I Colóquio Luso-Brasileiro de Pesquisa Filosófica (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 24 de agosto de 1999, 9h00), devo advertir aos interessados que:

1º A manifestação conta com todo o meu apoio, porque eu também acho que não deveria ir lá.

2º Para adiantar o expediente, já estou distribuindo bottons e cartazes com os seguintes dizeres:

ABAIXO EU.

3º Aceito contribuições para a campanha pela minha própria extinção. Se a campanha não lograr alcançar suas altas finalidades, os fundos reverterão em benefício de mim mesmo.

Apologia de Émile Boutroux

Introdução a: Émile Boutroux, Aristóteles, Rio, Editora Record, 2000, Vol. 2 da Biblioteca Record de Filosofia.

Tradução de Olavo de Carvalho e Carlos Nougué (1)

Introdução e notas de Olavo de Carvalho

Apesar do previsível boicote da imprensa incultural, o livro de Constantin Noica, As Seis Doenças do Espírito Humano, fez sucesso e a primeira edição já está quase esgotada. Ainda durante este mês de janeiro irá para as livrarias, segundo informa a Record, o Volume 2 da Biblioteca de Filosofia que essa prestigiosa editora publica em convênio com o Instituto Brasileiro de Humanidades. Trata-se do Aristóteles de Émile Boutroux, a melhor introdução breve ao pensamento de Aristóteles que alguém já escreveu neste mundo. (O volume 3, A Origem da Linguagem, de Eugen Rosenstock-Huessy, está em fase de revisão.) – O. de C.

O texto que se vai ler foi redigido inicialmente por Émile Boutroux como verbete para a Grande Encyclopédie (Paris, 1886) e depois incluído pelo autor nos seus Études d’Histoire de la Philosophie (1897). Com seus cento e tantos anos de idade, ainda é uma das melhores introduções ao estudo da filosofia de Aristóteles (2), e, fora um ou outro ponto corrigido pela pesquisa mais recente ~ do qual dou ciência nas notas de rodapé ~, dificilmente se encontrará um guia mais seguro para orientar os primeiros passos do estudante que ingressa no assunto.

A causa dessa vitalidade reside não só no extenso conhecimento que o autor tinha das obras do Estagirita e de seus comentadores antigos e modernos, porém, muito mais que isso, na conaturalidade entre seu espírito e o do mestre que ele celebra como encarnação suprema do gênio grego.

Excetuando-se talvez F. W. von Schelling e Félix Ravaisson, que o antecederam sob mais de um aspecto, ninguém no século XIX estava mais dotado para apreender a intimidade do pensamento de Aristóteles do que o autor de De la Contingence des Lois de la Nature (1874), título que, para quem sabe do que se trata, já é toda uma declaração de aristotelismo.

Para captar o sentido dessa afinidade, é preciso compreender o que Boutroux queria dizer com a “contingência das leis da natureza”.

A história das concepções modernas sobre o mundo físico pode-se dividir, grosso modo, em duas épocas: o império do mecanicismo e a era da física indeterminista. O primeiro origina-se no século XVII, com Galileu, alcançando seu apogeu na centúria seguinte com Descartes e Newton. A segunda esboça-se no século XVIII, com Leibniz, mas não alcança sua plena expressão senão dois séculos depois, com Max Planck e Werner Heisenberg. O confronto desses dois estilos de pensar a natureza confirma o dito de Arthur O. Lovejoy segundo o qual toda a história intelectual do Ocidente é apenas um conjunto de notas de rodapé a Platão e Aristóteles. Pois, no sentido mais rigoroso dos termos, o mecanicismo clássico é platônico e o indeterminismo moderno é aristotélico.

Platônico quer dizer, até certo ponto, pitagórico. A noção pitagórica de que Deus escreve o livro da natureza em caracteres matemáticos, longo tempo abandonada no Ocidente, foi vigorosamente retomada pela ciência renascentista, dando surgimento à concepção mecanicista de que, uma vez apreendidas as equações fundamentais do universo, tudo o mais se poderia conhecer por dedução matemática.

Nada mais distante da verdade histórica do que a crença popular de que a nova ciência se voltou para a observação do mundo natural, negligenciada pelos escolásticos. A primeira objeção que estes levantaram contra a lei galilaica da inércia foi, precisamente, que ela se opunha aos fatos observados. Galileu inventou, isto sim, o experimento matematizado, o que é o mesmo que dizer: o experimento idealizado, que não corresponde a nenhum fato particular da experiência, mas sim à “fórmula” matemática por trás dos fatos. A ciência assim concebida não lidava com a natureza dada na experiência, mas com estruturas gerais que, governando invisivelmente os acontecimentos naturais, só são apreensíveis sob a forma de relações matemáticas. É patente a inspiração platônica deste recuo da mente desde a multiplicidade sensível à unidade de umas quantas fórmulas.

Matematização quer dizer, desde logo, simplificação. A antiga ciência aristotélica também buscava a simplificação, mas sempre pelo método de remontar dos seres individuais às suas espécies por meio da abstração e da classificação, permanecendo sempre estreitamente referida aos dados sensíveis dos quais havia partido. Na ciência renascentista, o que se busca já não é a “essência” ~ o conteúdo intelectualmente apreensível por trás dos dados sensíveis ~, mas apenas a fórmula, a equação que relaciona uns aos outros esses dados sensíveis, independentemente de qual seja a “natureza” dos seres considerados. Em ambos os casos a mente procedia por abstração: mas uma coisa é reduzir vários entes à unidade de seus traços comuns, suprimindo as variações acidentais, outra coisa é reduzi-los a suas medidas, proporções e relações. A descrição científica do mundo perde assim em alcance ontológico e força explicativa o que ganha em precisão matemática e aplicabilidade técnica. Todos os dados não redutíveis ao modelo matemático tinham de ser excluídos da área de investigação, em benefício da coerência do sistema ~ uma perda que, de início, não pareceu grave, porque as relações matemáticas obtidas podiam, em seguida, ser aplicadas de volta à natureza sensível, demonstrando-se exatas. A busca da exatidão vai então cada vez mais substituindo a busca do quid, da essência, até o ponto em que se torna possível produzir uma descrição assombrosamente exata e eficaz de algo que não se tem a menor idéia do que seja.

É absolutamente errado dizer que a nova ciência “derrubou” ou “contestou” o que quer que fosse da ciência antiga. Ela limitou-se a mudar de assunto, investigando em outras direções e respondendo a novas perguntas que jamais tinham interessado à ciência antiga. Fortemente influenciada por Aristóteles, esta última não acreditava muito na eficácia do método matemático no domínio das ciências da natureza. As realidades matemáticas, segundo Aristóteles, são essencialmente fixas e imutáveis, não podendo por isto corresponder perfeitamente aos fatos da natureza, que é, por definição, o reino da mutação ~ do nascimento e da deterioração (genesiV kai ftoraV , guênesis kai ftorás). Uma ciência da natureza que procedesse principalmente por medições e comparações matemáticas chegaria, no máximo, a leis de probabilidade razoável, objeto da dialética, muito abaixo do ideal da certeza demonstrativa (apodeixiV apodêixis), que era o objetivo supremo da ciência aristotélica.

Mas, no primeiro momento, nenhum dos próceres da nova escola pensou nisso. Os sucessos da física matematizada eram tão estrondosos que qualquer objeção aristotélica assumia o ar de uma negação insensata do fato consumado. Toda a mitologia moderna que contrasta a imagem de uma ciência medieval puramente lógico-verbalista com a da nova ciência voltada para “a observação da natureza” ~ mitologia que ainda é transmitida nas escolas, a despeito de já mil vezes desmoralizada pela pesquisa histórica ~ nasce, paradoxalmente, dos sucessos obtidos pela aplicação de modelos matemáticos que só sob aspectos muito determinados e limitados correspondiam à realidade observada. Para fazer uma idéia de quanto a imagem estereotipada da transição renascentista chegou a dominar as consciências, basta ver que até um homem da autoridade de Albert Einstein chega a proclamar que Galileu libertou a ciência física de um jugo aristotélico de mais de um milênio (3). Ora, na época de Galileu, não fazia nem três séculos que as concepções físicas de Aristóteles tinham reingressado em circulação no Ocidente, por intermédio de Sto. Alberto Magno, suscitando, em vez de aprovação geral, uma geral hostilidade que só aos poucos foi vencida. Por outro lado, é fato que o aristotelismo dos escolásticos era de tipo muito atenuado pela mediação da doutrina cristã, e que um aristotelismo strictu sensu só vem a surgir, por ironia, justamente no renascentismo italiano, com Pietro Pomponazzi ~ isto é, no período mesmo do qual a cultura de almanaque transmitida nas escolas e manuais populares data o fim da hegemonia aristotélica no pensamento ocidental.

Qualquer que fosse o caso, o sucesso do modelo matemático, ampliado pelos desenvolvimentos extraordinários que lhe deu Newton, conferiu à nova ciência a autoridade de uma nova revelação sinaítica. De lado a lado, o continente europeu é varrido por uma onda de matematismo, que abrange desde as discussões teológicas até a jardinagem: Descartes aposta na conversão dos infiéis pela argumentação more geometrico, enquanto nos jardins de Versalhes a vegetação rebelde é disciplinada até reduzir-se ao formato de um tabuleiro de xadrez. Deslumbrada pela claridade das equações que aparentemente tudo explicavam (embora sua força descritiva viesse justamente de haverem desistido de explicar o que quer que fosse), ainda no século seguinte ~ que é o da efetiva propagação européia do mecanicismo, por meio da obra de Voltaire Élements de la Philosophie de Newton (1738) ~ a exaltação dos entusiastas chega a ver na nova ciência um novo fiat lux, o retorno ao momento primordial da criação:

God said: “Let Newton be!” ~ and all was light. (4) 

Uma das poucas vozes discordantes é Leibniz. Matemático ele próprio, e dos maiores, mas igualmente versado na filosofia escolástica (principalmente portuguesa), que os novos filósofos haviam abandonado sem exame, ele adverte que

“nem toda a natureza do corpo consiste somente na extensão, isto é, em grandeza, figura e movimento, mas que importa necessariamente reconhecer nela algo que tenha relação com as almas e que se designa habitualmente por forma substancial… Pode-se até demonstrar que a noção da grandeza, da figura e do movimento não é distinta como se imagina, e que encerra algo de imaginário e de relativo às nossas percepções.” (5) 

A ousadia desse parágrafo era tanta, que historicamente seu efeito ficaria retido por mais dois séculos. A época que acabava de encontrar mais um argumento para o mecanicismo na distinção de Bacon entre as qualidades primárias e secundárias dos objetos, isto é, entre a grandeza e as qualidades sensíveis, acreditando piamente na objetividade da primeira e na subjetividade das últimas, não podia mesmo engolir, da noite para o dia, a escandalosa proclamação de que a grandeza “tem algo de imaginário” e de que aquilo que há de real e objetivo nos seres é o seu individual e irredutívelquid ~ a abominável “forma substancial” dos escolásticos.

Assim, ficou o dito pelo não dito. A “época das Luzes” faz-se de avestruz, despede-se de Leibniz com as chacotas de Voltaire (que o caricatura sob o personagem do Dr. Pangloss) e deixa as objeções para depois, sem imaginar que renasceriam com força centuplicada no século XX.

Leibniz, no entanto, já prevê que, pelo caminho matematizante, as ciências iriam acabar desistindo de toda certeza e tendo de se contentar com as probabilidades razoáveis de que falava o velho Aristóteles. Retribuindo o mal com o bem, ele se põe a pesquisar a matematização das probabilidades, terminando por descobrir o cálculo infinitesimal, incumbido de determinar a partir de que ponto uma diferença pequena se torna irrelevante, e construindo assim a única esperança de que uma física reduzida à probabilidade dialética possa conservar ainda o estatuto de ciência rigorosa. A utilidade dos estudos de Leibniz para a ciência do século XX é incomensurável.

Mas, antes que o legado leibniziano pudesse ser retomado, foi necessário uma longa batalha para abalar e enfim destruir as falsas certezas em que se fundavam as ambições totalitárias do mecanicismo, abrindo assim a possibilidade de um retorno à modéstia do probabilismo aristotélico-leibniziano.

Nessa luta, a contribuição de Émile Boutroux é sem dúvida de um valor que nem sempre os historiadores lhe têm sabido reconhecer. De la Contingence des Lois de la Nature é, simplesmente, a contestação radical das “imutáveis leis matemáticas da natureza” em que o mecanicismo havia apostado o destino da humanidade européia.

A argumentação de Boutroux parte de uma base kantiana. Nas matemáticas reina a absoluta necessidade lógica, mas os juízos matemáticos são puramente analíticos, no sentido kantiano, isto é, suas conclusões já estão contidas em suas premissas. Assim, por mais que busquemos adaptar as realidades do mundo sensível a um padrão de exatidão matemática, jamais o conseguiremos por completo, porque, de um lado, a ciência da natureza não pode contentar-se com puros juízos analíticos e deve, ao contrário, produzir juízos sintéticos obtidos da experiência; por outro lado, esses juízos sintéticos não terão outro fundamento senão a indução, que não poderá jamais obter senão certezas aproximativas. Os juízos produzidos pela ciência da natureza não serão nunca juízos categóricos, mas juízos contingentes.

Se Boutrox tivesse parado aí, teria apenas repetido Kant, assinalando um limite constitutivo do nosso conhecimento experimental. Mas, prossegue ele, a contingência não está só nos juízos científicos que produzimos sobre a natureza: está na natureza mesma. A diferença essencial entre as entidades matemáticas e os seres do mundo físico não reflete apenas alguma imperfeição da nossa mente, mas a natureza mesma destes e daquelas. Se não conseguimos reduzir todo o cosmos a umas quantas equações das quais tudo o mais se pudesse deduzir matematicamente, é simplesmente porque os seres da natureza não são entidades matemáticas, formais, imutáveis, alheias ao tempo e ao espaço, mas, ao contrário, sua forma mesma de existência é a mudança no espaço e no tempo. Na natureza, ao contrário do que acontece no domínio lógico formal, podem acontecer coisas novas, imprevistas. A necessidade natural existe, sim, mas é uma necessidade condicional e relativa. Mais ainda, não é um só e mesmo padrão de necessidade relativa que impera em todo o universo, mas este se divide em estratos, que vão subindo da necessidade mais imperiosa até a quase completa indeterminação, não vigorando em parte alguma nem o absoluto determinismo nem o acaso completo. Daí que, sendo impossível alcançar uma perfeita exatidão matemática nas leis gerais da natureza, a matematização da ciência natural acabe tomando a forma de um raciocínio de aproximação probabilística. (6)

O contingencialismo de Boutroux, se por um lado revigora as críticas de Aristóteles ao método matemático na filosofia natural, por outro enuncia da maneira mais enfática o programa que mais tarde viria a ser realizado pelo indeterminismo de Planck e Heisenberg.

O mais interessante, no caso, é que o próprio Aristóteles, ao enfatizar as limitações do método matemático em física, não apenas se abstém de negar toda utilidade a esse método, mas ele próprio lança as bases para o estudo matemático do movimento, indo, portanto, muito além do que, na época renascentista, puderam perceber tanto seus seguidores quanto seus detratores (7). Esta observação, posta em relevo bem recentemente, mostra que o contingencialismo das leis da natureza estava bem mais próximo do espírito do aristotelismo do que talvez o próprio Boutroux o houvesse percebido.

É evidente que a dívida de Boutroux não era só com Aristóteles. Ele aprendeu muito com a teoria do hábitoenunciada pelo seu mestre Félix Ravaisson, ao qual De la Contingence des Lois de la Nature é dedicado. Segundo Ravaisson, a capacidade de adquirir hábitos é uma propriedade geral da natureza. Ravaisson define o hábito como

a maneira de ser geral e permanente, o estado de uma existência considerada quer no conjunto dos seus elementos, quer na sucessão das suas épocas.Hábito adquirido é aquele que é conseqüência de uma mudança.

Mas o que se entende especificamente por hábito, e que constitui o assunto deste trabalho, não é somente o hábito adquirido, mas o hábito que, em decorrência de uma mudança, é contraído em relação a essa mudança mesma que lhe deu nascimento.

Ora, se o hábito, uma vez adquirido, é uma maneira de ser geral, permanente, e se a mudança é passageira, então o hábito subsiste para além da mudança da qual é resultado. Ademais, se ele não se refere, enquanto hábito e por sua essência mesma, senão à mudança que o engendrou, o hábito subsiste por uma mudança que já não é e que não é ainda: por uma mudança possível; ~ eis o sinal mesmo pelo qual deve ser reconhecido.” (8)

 

No entender de Ravaisson e Boutroux, as proclamadas “leis” da natureza são em verdade hábitos, que, embora possam permanecer estáveis por um tempo impensavelmente longo, nada têm de eterno e imutável.

O contingencialismo não antecipou apenas a física de Planck e Heisenberg. Ele também resolveu, antecipadamente, todas as contradições em que viria a debater-se, em seus confrontos com o mecanicismo das ciências físicas, a escola alemã das “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften). O pressuposto básico de que parte essa escola é a distinção estabelecida por Wilhelm Dilthey ~ inspirado em Windelband e Rickert ~ entre “compreensão” e “explicação”, a que corresponde outra, entre “sentido” e “causa”. Os fatos da natureza, segundo Dilthey, explicam-se pelas suas causas; os fatos da história e da cultura compreendem-se pelo seu sentido. Esta radical oposição de métodos entre ciências da natureza e da cultura foi logo em seguida relativizada por Max Weber, ao alegar que, embora sem aspirar a formular leis causais de ordem geral, as ciências da cultura não podem abdicar totalmente da explicação causal nem do instrumental matemático.

Esta objeção de Weber foi amplamente aceita pelos cientistas sociais, mas pouquíssimos dentre eles tiveram a ousadia de levá-la às suas últimas conseqüências. Que conseqüências? Simplesmente isto: Se o método causal e matemático não pode ser excluído da ciências humanas, quem garante que, reciprocamente, o método compreensivo não possa ser aplicado às ciências da natureza? Falar num sentido dos fatos da natureza é, para o mecanicista de estrita observância, anátema. A natureza tal como enfocada pela ciência desde Galileu é pura coisa, objetividade muda. Toda tentativa de captar nos fatos do universo um sentido, um valor, é pura “criação cultural”, para não dizer antropomorfismo primitivo. Mas será mesmo assim? O combate à concepção coisista da natureza começou, no nosso século, da maneira mais modesta, em círculos de marginais e excluídos da comunidade acadêmica. O primeiro deles foi René Guénon. Em O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos (1945), ele atacou, com base na cosmologia vedantina, a redução da ciência natural aos aspectos quantitativos, que separa artificialmente mundo natural e mundo humano, e exigiu um retorno a antigas cosmologias que integravam ambos numa visão da natureza como manifestação visível de realidades espirituais. Titus Burckhardt, um continuador de Guénon, assim resume a crítica do mestre:

“A mais mínima percepção, o fato de que apreendamos com os sentidos um objeto qualquer, de que o incorporemos à rede de imagens interiores e de que o espírito o reconheça como verdadeiro e real, constitui um processo indivisível que demonstra como, neste mundo, condições de tipo muito variado se inserem umas nas outras, umas em modo espaço-temporal, outras em modo temporal não espacial e outras, ainda, em modo supra-espacial e supratemporal. Disto resulta que a ‘realidade’ não consiste em meras ‘coisas’, mas representa uma ordem de inconcebível sutileza e multiplicidade de níveis. Todos os povos que não estejam deformados pela modernidade sabem disso. Ter consciência da multíplice gradação interna da existência faz parte da experiência primordial humana. Só em virtude de uma evolução muito peculiar do pensamento foi possível chegar ao ponto de aceitar uma ciência baseada exclusivamente em dados numéricos como explicação satisfatória do cosmos.” (9) 

Embora Guénon fosse ainda mais fundo na crítica, demonstrando, em Les Principes du Calcul Infinitésimal(1952), que a ciência quantitativista acabara perdendo a noção mesma do que era quantidade e entrando com isto nas mais grotescas contradições, a comunidade acadêmica fez questão estrita de ignorá-lo.

Mas, aos poucos, críticas semelhantes começaram a brotar de dentro do próprio grêmio. Edmund Husserl, talvez o filósofo de maior influência nos círculos acadêmicos europeus de sua época, mostra, em A Crise das Ciências Européias, que a matematização da imagem da natureza importa em ignorar diferenças decisivas entre estratos da realidade. Uns anos depois, a antropóloga Mary Douglas contesta a noção de que todos os significados entrevistos na natureza por civilizações antigas sejam meras “criações culturais” arbitrárias, sem conexão com propriedades objetivas da natureza: sem apoio em dados objetivos da natureza, nenhum simbolismo é possível. (10) O simbolismo natural não apenas existe mas é a condição mesma para a existência das culturas. O ataque se radicaliza quando Seyyed Hossein Nasr, laureado historiador das ciências, lança sobre a concepção quantitativista da natureza a culpa pelo desastre ecológico, que, a essa altura, começa a preocupar os meios científicos. (11) Quase ao mesmo tempo, Raymond Ruyer, biólogo eminente, informa ao mundo que o conjunto de idéias cosmológicas informalmente compartilhado pela elite científica norte-americana não só se opõe radicalmente a todo cientificismo mecanicista mas forma, de maneira quase espontânea, as bases de uma visão gnóstica do universo. E uma das bases dessa gnose é justamente a constatação de que todo materialismo mecanicista toma o mundo pelo avesso:

“O materialismo consiste em crer que ‘tudo é objeto’, ‘tudo é exterior’, ‘tudo é coisa’. Ele toma por pressuposto o caráter ‘superficial’ da percepção visual e da consciência científica. Ele toma como ‘lado direito’ o avesso dos seres.” (12) 

Em direta oposição a essa visão das coisas, os gnósticos de Princeton insistiam em que a forma própria de existência de tudo quanto existe é ser algo em si mesmo, é possuir um quid, uma consistência interna, uma identidade e, no fim das contas, quase um ego. (13)

De um passo, a ciência do século XX não apenas voltava às formas substanciais dos escolásticos e de Leibniz mas também demolia o muro entre ciências da natureza e ciências da cultura, entre “explicação” e “compreensão”. Na perspectiva de Ruyer, já não seria descabido a um físico ou a um biólogo indagar, para além das causas e processos, o sentido de um fato natural. Estava assim aberta a via para a reconstituição da ciência compreensiva da natureza reivindicada por Guénon, Burckhartdt e Nasr. E um dos instrumentos que Ruyer apontava como mais promissores nesse sentido era justamente uma disciplina científica de criação recente que até então, aplicada unilateralmente ao domínio das ciências humanas, parecera destinada a fortalecer os preconceitos matematizantes: a teoria da informação. Nas ciências da natureza, ela daria o resultado inverso: uma vez enfocado qualquer fenômeno natural como um processo de transmissão e recepção de informações, a consideração de um sentido se tornava não apenas uma possibilidade, mas uma necessidade.

Não é preciso exagerar, na história da progressiva demolição da fé mecanicista, o papel que depois de Ruyer desempenharam Thomas Kuhn, com a teoria das “revoluções científicas”, e Michel Foucault, com a alegação de que as epistemes ~ sistemas de chaves básicas de todo o pensamento científico de uma época ~ se sucedem de maneira arbitrária. A irracionalidade da História ~ até mesmo da História das ciências ~ nada prova contra a razão. Mas dificilmente a crença na mecanicidade matemática do universo poderia resistir a um abalo como o que lhe deu o biólogo Rupert Sheldrake com sua teoria da ressonância mórfica:

“A Natureza é essencialmente habitual. Entre os gregos desenvolveu-se a idéia de que o mundo é governado por princípios invisíveis, não-materiais, que transcendem espaço e tempo. Os pitagóricos conceberam-nos como números e relações numéricas; os platônicos, como idéias ou Formas intemporais. Estes pressupostos erigiram-se em fundamentos da ciência moderna, e do século XVII em diante os princípios imateriais governantes do universo material foram concebidos como leis imutáveis moldadas por um Deus matemático.Até a década de 60, essa velha idéia parecia mais ou menos inquestionável; o universo mesmo era visto como uma máquina eterna, e portanto o que poderia ser mais natural do que o fato de leis o governarem? Mas, com a revolução cosmológica causada pela teoria do Big Bang, o cosmos tornou-se mais parecido com um organismo em desenvolvimento do que com uma máquina eterna. Ele parece ter nascido uns 15 milhões de anos atrás, e ter-se desenvolvido e crescido desde então. A totalidade da natureza evoluiu; um dia não houve átomos, nem moléculas, nem estrelas ou planetas, nem cristais ou células viventes. Todos esses sistemas desenvolveram-se no curso do tempo. Assim, por que continuaríamos a pressupor que num universo em evolução as leis que os governam foram fixadas de antemão, antes até que o universo viesse a existir?

Por que não explorar a possibilidade de que as regularidades da natureza tenham efetivamente evoluído? Talvez elas dependam de hábitos que se desenvolvem organicamente dentro do universo, antes que de leis impostas por uma mente matemática preexistente.”

 

A idéia de que as regularidades da natureza se assemelham antes a hábitos do que a leis eternas foi proposta por Sheldrake no livro A New Science of Life: The Hypothesis of Formative Causation (“Uma Nova Ciência da Vida: A Hipótese da Causalidade Formativa”), em 1981, e desenvolvida em The Presence of the Past: Morphic Resonance and the Habits of Nature (“A Presença do Passado: A Ressonância Mórfica e os Hábitos da Natureza”, 1988).

Essa hipótese postula que os sistemas auto-organizantes, de todos os níveis de complexidade ¾ como átomos, moléculas, cristais, células, organismos, sociedades, planetas e galáxias ¾ , são estruturados por campos específicos chamados campos mórficos, e que estes campos contêm uma espécie de memória coletiva derivada de coisas anteriores da sua mesma espécie. Assim, cada cristal de aspirina, por exemplo, ou cada pé de carvalho, é moldado por um campo que é ele mesmo moldado pela influência cumulativa dos cristais de aspirina e pés de carvalho que os antecederam. A influência dos sistemas similares anteriores, agindo através ou por meio do espaço e do tempo, ocorre pelo processo da ressonância mórfica, que envolve uma ação do semelhante sobre o semelhante. (14) 

 

Paracelso ou Agrippa não diriam isso melhor. A teoria da ressonância traz de volta, precisamente, as velhas noções da analogia, das simpatias, das correspondências, enfim as similitudes(15) tão decisivas na filosofia antiga e medieval da natureza, que a episteme renascentista acreditava haver banido para sempre e que, historicamente falando, só tinham sobrevivido, a duras penas, no interior do gueto esotérico perpetuamente assediado pela inquisição científica moderna.

A ciência deste fim de século pode não estar ainda totalmente livre da contaminação mecanicista, com o seu cortejo de seqüelas totalitárias. Mas a ampliação do horizonte das perguntas possíveis foi tal, que hoje em dia nenhum filósofo ou cientista pode, sem incorrer em pecado de dogmatismo que não passará despercebido a ninguém, proclamar a existência de um abismo intransponível entre a ciência moderna e a ciência antiga e medieval, nem muito menos instalar-se na primeira com a presunção cega com que, ainda em 1932, um Léon Brunschvicg, lendo os sábios do passado, se sentia um homem adulto a ouvir histórias de crianças. (16)

Mas, no século passado ~ no século de Darwin e Spencer, de Haeckel e Comte ~, essa presunção imperava por toda parte, e o establishment acadêmico fazia coro quase unânime à profecia de Renan:

“A ciência não terá destruído os sonhos do passado senão para lhes pôr no lugar uma realidade mil vezes superior.” (17) 

Desafiar essa certeza era expor-se à chacota, ao boicote, ao isolamento. E o que mais impressiona, na filosofia francesa do século XIX, é a vigorosa atualidade que apresenta, para nós de hoje, o grupo de pensadores que, dentro da própria cidadela acadêmica, ousaram opor-se a esse formidável consenso. Ler hoje Renan ou Comte, ou qualquer dos outros profetas do império científico-materialista, é sentir o cheiro inconfundível da morte e do passado. Ler Ravaisson, Ollé-Laprune, Lachelier, mas principalmente Boutroux, é entrar numa atmosfera que é nossa e, em certos momentos, é conversar com alguém que nos fala, por antecipação, do mesmo tipo de ciência que hoje salta do século XX para o terceiro milênio.

Curiosamente, muito do pensamento desses precursores permanece desconhecido daqueles que, por descendência direta ou até mesmo ressonância mórfica, expõem hoje idéias análogas às suas. No parágrafo de Sheldrake acima citado, fica bem claro que ele ignora por completo que a doutrina dos hábitos da natureza já fora exposta, com todas as letras, com mais de cem anos de antecedência, por Émile Boutroux, partindo de uma idéia de seu mestre Félix Ravaisson.

Nem Ravaisson nem Boutroux jamais esconderam o que suas idéias deviam a Schelling, a Leibniz e sobretudo a Aristóteles. Idêntica dívida têm hoje, sabendo-o ou não, os homens de ciência que se abrem ao estudo dos imprevistos, das singularidades irrepetíveis, do misterioso acordo entre ordem e desordem que se observa por toda parte num cosmos bem diferente da máquina, escrava da ordem matemática, imaginada pela ciência renascentista. (18) A distinção de Aristóteles entre um reino celeste e metafísico, regido por leis eternas, e um mundo sublunar ou natural, submetido à mudança e capaz de imitar a estabilidade do primeiro mediante algum meio-termo entre mudança e permanência, é uma idéia que ressoa, com toda a sua força, não só nas descobertas de Sheldrake mas ~ só para dar mais um exemplo ~ na teoria das catástrofes de René Thom. (19)

Mas a simples capacidade de extrair riquezas de dentro de um legado aristotélico que estava soterrado sob três séculos de maledicência já mostra a poderosa independência de pensamento que animava aqueles dois filósofos franceses, aquela independência que lhes permitia examinar a ciência antiga com uma visão direta e objetiva, saltando por cima das viseiras impostas pelo establishment acadêmico de então.

No caso de Boutroux, essa independência soma-se a outro fator, que o torna, também, um esplêndido historiador da filosofia. É que o filósofo da contingência, tendo rejeitado as supostas leis eternas da natureza, não poderia em seguida cair escravo ante pretensas leis de ferro do devir histórico, a cujo culto a influência hegeliana vinha afeiçoando boa parte da intelectualidade européia. Como frisou André Canivez, Boutroux, em seus estudos históricos,

“se opõe ao neo-hegelianismo e insiste numa filosofia da história que não seja demonstração de uma regularidade preestabelecida no fundo de singularidades parciais mutuamente neutralizadas. Ele preferiu trazer à luz a atividade do livre-arbítrio no fio da continuidade histórica. Não há um sistema da história. Ela não é a ressurreição das doutrinas mortas, mas o acionamento de seus recursos inesgotáveis. O historiador une-se, assim, ao teórico da contingência”. (20) 

Não há, de fato, compreensão mais humilde, mais objetiva e mais profunda de uma filosofia do que aquela que, em vez de “explicá-la” pelo “seu tempo histórico”, remetendo-a ao museu das idéias inofensivas, (21) busca, ao contrário, compreender-se a si mesma por ela, revigorando a sua força e a sua luz originárias e demonstrando mais uma vez a verdade da sentença de Hoffmansthal: “Para o espírito, tudo está presente.”

O Aristóteles que o leitor vai encontrar no presente volume ~ e também aquele que se encontrará nas Lições sobre Aristóteles, do mesmo autor, a ser publicadas em breve nesta coleção ~ não é portanto um dado histórico de uma cultura extinta, exibido por um arqueólogo, mas um tesouro filosófico e científico revivificado por um intérprete capaz de “pôr em ação os seus recursos inesgotáveis”.

Rio de Janeiro, 31 de Julho de 1999

Olavo de Carvalho

NOTAS

  1. Utilizamos para a tradução o texto da 4ª ed., Paris, Alcan, 1925. Por motivos técnicos, omitimos nesta edição os acentos das palavras gregas citadas.
  2. E, para continuar esses estudos, nada melhor que as Lições sobre Aristótelespronunciadas por Boutroux na École Normale Supérieure entre 1879 e 1879, que serão publicadas proximamente nesta coleção.
  3. Albert Einstein e Leopold Infeld, A Evolução da Física, trad. Giasone Rebuà, Rio, Zahar, 1976, Cap. I (“A ascensão do conceito mecânico”).
  4. William Blake.
  5. Discours de Métaphysique, § 12.
  6. Cf. N. Denyer, “Can physics be exact?”, em F. De Gandt e P. Souffrin (eds.), La Physique d’Aristote et les Conditions d’une Science de la Nature. Actes du Colloque organisé par le Séminaire d’Epistémologie et d’Histoire des Sciences de Nice, Paris, Vrin, 1991, pp. 73-83.
  7. Cf. F. De Gandt, “Sur la détermination du mouvement selon Aristote et les conditions d’une mathématisation”, em F. De Gandt e P. Souffrin, op. cit., pp. 85-105.
  8. De l’Habitude (1838), ed. Jean-François Courtine, Paris, Vrin, 1984, p. 1. ~ Do Hábito é uma das edições programadas para a presente coleção.
  9. Ciencia Moderna y Sabiduría Tradicional, trad. Jordi Quingles y Alejandro Corniero, Madri, Taurus, 1979, p. 9. ~ Uma coletânea de escritos de Burckhardt sobre o tema está programada para a presente coleção.
  10. Símbolos Naturales. Exploraciones en Cosmología, trad. Carmen Criado, Madri, Alianza Editorial, 1988.
  11. The Encounter of Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern Man, Londres, Allen and Unwin, 1968 (Há tradução brasileira, O Homem e a Natureza, Rio, Zahar).
  12. Raymond Ruyer, La Gnose de Princeton. Des Savants à la Recherche d’une Réligion, 2ª ed., Paris, 1977.
  13. Op. cit., p. 59.
  14. “The principles of universal habit”, publicado em: Peter Lorie and Sidd Murray-Clark, History of the Future: a Chronology, Londres, Pyramid Books, 1989, pp. 16-19.
  15. V. Michel Foucault, Les Mots et les Choses. Une Archéologie des Sciences Humaines, Paris, Gallimard, 1966, pp. 32 ss.
  16. Léon Brunchvicg, Les Âges de l’Intelligence, Paris, P.U.F., 1934 (curso da Sorbonne em 1932; 4ª ed., 1954).
  17. Ernest Renan, L’Avenir de la Science, em Pages Choisies, Paris, Calmann-Lévy, 1890, p. 231.
  18. Que Aristóteles visse nos astros uma estabilidade e permanência divinas, confundindo assim com o reino metafísico uma parte do mundo físico, é evidentemente uma aplicação particular errada de uma distinção geral que, em si, permanece válida. Mas tal era a atmosfera de hostilidade antiaristotélica (no fundo, antiescolástica ou anticatólica) no Renascimento, que a criança foi jogada fora com a água do banho: ao rejeitar as concepções astronômicas de Aristóteles, a nova ciência desprezou, junto com elas, a fina distinção entre o domínio físico e o metafísico, que já continha em seu bojo a antecipação do probabilismo leibniziano. Confundindo o acidental com o essencial, viciou na raiz suas próprias aspirações de progresso e acabou por aprisionar-se, pois dois séculos, na ilusão mecanicista.
  19. V. René Thom, “Matière, forme et catastrophes”, em M. A. Sinaceur (org.), Penser avec Aristote, Toulouse, Ères-Unesco, 1991, pp. 367-398.
  20. André Canivez, “Aspects de la philosophie française”, em Yvon Belaval (org.), Histoire de la Philosophie, Paris, Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1974, t. III, p. 455.
  21. V. Olavo de Carvalho, O Futuro do Pensamento Brasileiro, Rio, Faculdade da Cidade Editora, 2ª ed., 1997, cap. I, § 1, “A história e o sentido da eternidade”.

Os roedores da glória

30 de junho de 1999

JOSÉ INGENIEROS
(1877-1925)

De O Homem Medíocre, trad. Gesner de Wilson Morgado, Rio, Melson, 1963.

Todo aquele que se sente capaz de criar um destino, com o seu talento e com o seu esforço, está inclinado a admirar o esforço e o talento nos demais; o desejo da própria glória não pode sentir-se coagido pelo legítimo enaltecimento alheio. Aquele que tem méritos sabe o que eles custam, e os respeita; estima, nos outros, o que desejaria que os outros estimassem nele. O medíocre ignora esta admiração franca: muitas vezes se resigna a aceitar o triunfo que ultrapassa as restrições da sua inveja. Mas aceitar não é amar, resignar-se não é admirar.

Os espíritos de asas curtas são malévolos; os grandes engenhos são admirativos. Estes sabem que os dons naturais não se transformam em talento ou engenho sem um esforço, que é a medida do seu mérito. Sabem que cada passo no sentido da glória custa trabalhos e vigílias, meditações profundas, tentativas de fim, consagração tenaz, a esse pintor, a esse poeta, a esse filósofo, a esse sábio; e compreendem que eles consumiram porventura o seu organismo, envelhecendo prematuramente; e a biografia dos grandes homens lhes ensina que muitos renunciaram o repouso ou o pão, sacrificando, tanto um como outro, a fim de ganhar tempo para meditar, ou para comprar um livro iluminador de suas meditações. Essa consciência daquilo em que o mérito importa, os faz respeitar. O invejoso, que o ignora, vê o resultado a que os outros chegam e ele não, sem suspeitar quantos espinhos foram semeados no caminho da glória. Todo escritor medíocre é candidato a criticastro. A incapacidade de criar impele-o a destruir. Sua falta de inspiração o induz a corroer o talento alheio, empanando-o com especiosidades que denunciam a sua irreparável inferioridade. Os altos engenhos são equânimes na crítica de seus iguais, como se reconhecessem, neles, uma consangüinidade em linha direta; no êmulo, não vêem nunca um rival.

O verdadeiro critico enriquece as obras que estuda, e em tudo o que toca deixa um rastro de sua personalidade., Os criticastros, que são, por instinto, inimigos da obra, desejam diminui-la, pela simples razão de que eles não a escreveram. Nem saberiam escreve-la, se o criticado lhes contestasse: “Faze-a melhor”. Têm as mãos travadas por fitas métricas; seu afã de medir os outros corresponde ao sonho de rebaixá-los até à sua própria medida. São, por definição, prestamistas, parasitas, vivem do alheio, pois se limitam a baralhar, com mão hábil, o mesmo que aprenderam no livro que procuram desacreditar. Quando um grande escritor é erudito, reprovam-no como falto de originalidade; se não o é, apressam-se a culpá-lo de ignorância. Se emprega um raciocínio que outros usaram, denominam-no plagiário, embora assinale as fontes da sua sabedoria; se omite a assinalação, acusam-no, por serem vulgares, de improbidade. Em tudo encontram motivo para maldizer e invejar, revelando a sua antipatia interna.

O criticastro medíocre é incapaz de alinhavar três idéias fora do fio que a rotina lhe sugere. Sua bojuda ignorância obriga-o a confundir o mármore com o mecaxisto, e a voz com o falsete, inclinando-o a supor que todo o escritor original é um heresiarca. Os pacóvios dariam o que não têm, para saber escrever um pouquinho, para serem incorporados à crítica profissional. É o sonho dos que não podem criar. Permite uma maledicência medrosa e que não compromete, feita de mendacidade prudente, restringindo as perversidades para que fiquem mais agudas tirando aqui uma migalha e dando ali um arranhão, velando tudo o que pode ser objeto de admiração, rebaixando sempre com a oculta esperança de que possam aparecer a um mesmo nível os críticos e os criticados. O escritor original sabe que atormenta os medíocres aguilhoando-lhes essa paixão que os desespera em face do brilho alheio; o desespero dos fracassados é a lucro que melhor pode premiar o seu labor luminoso. O ridículo de um Zoilo chega sempre a andar passo a passo com a glória de um Homero.

Fermentam, em cada gênero de atividade intelectual, como pragas pediculares da originalidade; não perdoam aquele que incuba, em seu cérebro, essa larva silenciosa. Vivem para manchá-lo ou destroná-lo, sonham com o seu extermínio, conspiram com uma intemperança de terroristas, esgrimem sórdidas calúnias que fariam enrubescer um paquiderme. Vêem um perigo em cada astro e uma ameaça em cada gesto; tremem, pensando que existem homens capazes de subverter rotinas e preconceitos, de acender novos planetas no céu, de arrancar sua força aos raios e às cataratas, de infiltrar novos ideais às raças envelhecidas, de suprimir as distâncias, de violar a força de gravidade e de abalar o governo…

Os espíritos rotineiros são rebeldes à admiração: não reconhecem o fogo dos astros porque nunca tiveram, em si, uma única chispa. Jamais se entregam de boa-fé aos ideais ou às paixões que lhes assaltam o coração; preferem opor-lhes mil raciocínios, para privar-se do prazer de admirá-los. Confundirão sempre o equívoco e o cristalino, rebaixando todo ideal até às baixas intenções que supuram em seus cérebros. Pulverizarão todo o belo, esquecendo que o trigo moído e feito farinha já não pode germinar em espigas douradas, à luz do sol. “É um grande sinal de mediocridade – disse Leibniz – elogiar sempre moderadamente”. Pascal dizia que os espíritos vulgares não encontram diferenças entre os homens : descobrem-se mais tipos originais, à medida que se possui maior engenho. O criticastro é miserável; admira um pouco todas as coisas, mas nada merece a sua admiração decidida. Aquele que não admira o melhor, não pode melhorar. Os que não sabem admirar não têm futuro. É uma covardia aplacar a admiração; é preciso cultivá-la, como fogo sagrado, evitando que a inveja a cubra com a sua pátina ignominiosa.

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