Yearly archive for 1999

Dinheiro e poder

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 16 de setembro de 1999

Sempre que ouço um político de esquerda verberar em tom profético a cobiça capitalista, pergunto-me se ele imagina mesmo que o anseio de poder é uma paixão moralmente superior ao desejo de dinheiro, ou se simplesmente finge acreditar nisso para se fazer de santinho. Evidentemente, não há terceira alternativa. Nenhum militante esquerdista quer fazer uma revolução só para depois ir para casa viver como obscuro cidadão comum da república socialista: cada um deles é, por definição, o virtual detentor de uma fatia de poder no Estado futuro. Essa é, entre os adeptos de um partido, a única diferença entre o militante e o simples eleitor. Ao assumir a luta revolucionária, o mínimo que um sujeito espera é um cargo de comissário do povo. Afinal, não teria sentido que, após ter arcado com a responsabilidade de líder ativo na destruição do capitalismo, ele desse menos de si à “construção do socialismo”. (O mesmo, é claro, aplica-se, mutatis mutandis , aos militantes do fascismo ou de qualquer outra proposta de mudança radical da sociedade. Enfatizo o socialismo pela simples razão de que no Brasil de hoje não há um movimento de massas de inspiração fascista.)

Toda militância revolucionária é, pois, inseparável da ânsia de poder, e é preciso um brutal descaramento ou uma inconsciência patológica para não perceber que essa paixão é infinitamente mais destrutiva que o desejo de riqueza. A riqueza, por mais que as abstrações dos financistas tentem relativizá-la, tem sempre um fundo de materialidade – casas, comida, roupas, utensílios – que faz dela uma coisa concreta, um bem visível que vale por si, independentemente da opulência ou miséria circundantes. Já o poder, como bem viu Nietzsche, não é nada se não é mais poder. Isto é a coisa mais óvia do mundo: por mais mediada que esteja pelas relações sociais, a riqueza é, em última instância, domínio sobre as coisas. O poder é domínio sobre os homens. Um rico não se torna pobre quando seus vizinhos também enriquecem, mas um poder que seja igualado por outros poderes se anula automaticamente. A riqueza desenvolve-se por acréscimo de bens, ao passo que o poder, em essência, não aumenta pela ampliação de seus meios, e sim pela supressão dos meios de ação dos outros homens. Para instaurar um Estado policial não é preciso dar mais armas à Polícia: basta tirá-las dos cidadãos. O ditador não se torna ditador por se arrogar novos direitos, mas por suprimir os velhos direitos do povo.

Foi preciso que a inteligência humana descesse a um nível quase infranatural para que uma filosofia – ou coisa assim – chegasse a inverter equação tão evidente, vendo na miséria o fundamento da riqueza e no poder político o instrumento criador da igualdade.

O fenômeno mais característico do século 20, o totalitarismo, não foi um desvio ou acidente de percurso no caminho do sonho democrático: foi a conseqüência inescapável de uma aposta suicida na superioridade moral do poder político e na sua missão social igualitária. O resultado dessa aposta está diante dos olhos de todos. A prometida igualdade econômica não veio, mas, em contrapartida, a diferença de meios de ação entre governados e governantes cresceu a um ponto que os mais ambiciosos tiranos da Antiguidade não ousaram sequer sonhar. Júlio César, Átila ou Gêngis Khan recuariam horrorizados se alguém lhes oferecesse os meios de escutar todas as conversas particulares ou de desarmar todos os homens adultos. Hoje os governantes já estudam como programar geneticamente a conduta das gerações futuras. Não se contentam com o poder destrutivo dos demônios: querem o poder criador dos deuses.

É uma das mais atrozes perversidades da nossa época que o homem imbuído do simples desejo de enriquecer seja considerado um tipo moralmente lesivo e quase um criminoso, enquanto o aspirante ao poder político é visto como um belo exemplo de idealismo, bondade e amor ao próximo. Um século que pensa assim clama aos céus para que lhe enviem um Stalin ou um Hitler.

Estados e Estados

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 4 de setembro de 1999

Paris – Num artigo recentemente publicado no Monde Diplomatique (agosto/99), o professor Ricardo Petrella, ilustre acadêmico, começa por lamentar o enfraquecimento dos Estados-nações sob o assalto da nova ideologia empresarial e termina por fazer a apologia do Estado Mundial, cujo advento não poderá deixar de levar esse enfraquecimento às suas últimas conseqüências: a extinção pura e simples dos Estados nacionais e sua substituição por administrações regionais sob as ordens do Leviatã global.

Vê-se claramente que, sob a aparência de uma defesa das nações atualmente existentes contra as sucessivas desapropriações que vêm sofrendo sob o jugo dos poderes econômicos internacionais, o professor Petrella não nos oferece senão a perspectiva de submeter essas mesmas nações a uma desapropriação única, radical e definitiva, tornada boa pelo simples fato de já não ser obra de empresas privadas e sim de uma superburocracia estatal.

Não se trata portanto de proteger a vítima, mas de trocar de ladrão.

Nada é mais ingênuo (ou talvez mais esperto) do que apresentar o quadro atual do mundo como se fosse o de um combate entre as grandes empresas e o Estado, ou, o que dá na mesma, como se não fosse senão uma reedição ampliada do velho conflito do princípio capitalista com o princípio socialista. Esse giro sutil que o enfoque esquerdista impõe à visão da realidade mundial reflete uma intenção de usar a salvação das nações como pretexto para salvar, isto sim, o que ainda pos sa restar da estratégia comunista mundial.

É falso dizer que o neoliberalismo favorece as empresas em detrimento dos Estados; ele favorece abertamente certos Estados contra outros Estados, e favorece sobretudo a ascensão da burocracia mundial, a qual não é nem empresa privada nem Estado-nação, mas uma terceira coisa especificamente diferente dessas duas. Esta coisa, seja lá o que for, é o verdadeiro inimigo dos Estados nacionais – sobretudo dos pequenos e fracos – e, ao mesmo tempo, o verdadeiro inimigo das empresas privadas, ao menos daquelas que ainda confiam no princípio liberal e não sonham com um monopolismo à sombra da proteção do Estado global.

É preciso, absolutamente, distinguir aquilo que o professor Petrella confunde absolutamente: o Estado enquanto princípio abstrato e os Estados enquanto realidades históricas concretas. O globalismo neoliberal se volta contra estes últimos, ao mesmo tempo que favorece o primeiro – sobretudo quando este se apresenta sob a forma monstruosamente inflada de Estado mundial –, mostrando, com isto, que de liberal só tem o nome. A prova é que, na mesma medida em que os neoliberais condenam as legislações nacionais de controle da economia, eles louvam a adoção de idênticos controles quando ampliados à escala mundial. Isto não é combater “o” Estado: é combater “alguns” Estados, sobretudo os pequenos, e favorecer outros Estados, sobretudo os maiores, sobretudo o maior de todos.

Confundindo a defesa dos pequenos Estados nacionais com a defesa do Estado enquanto princípio, o professor Petrella se inscreve, talvez malgré lui , na lista dos apóstolos daquilo mesmo que ele professa combater.

A Justiça brasileira perante a Nova Ordem Mundial

Mensagem enviada por Olavo de Carvalho ao II Encontro Regional da Justiça do Trabalho da 15ª Região, S. José do Rio Preto, SP.

26 de agosto de 1999

Impossibilitado de estar fisicamente presente a esse simpósio, atendo ao gentil convite do TRT de Campinas enviando como representantes, desde o outro lado do oceano, alguns exemplares dessa espécie de seres, por natureza, alados e aéreos: as palavras. Num escritor, elas são os únicos atributos que importam; e talvez, desobstruídas de toda interferência da minha presença física, acabem me representando melhor do que eu mesmo. Dito isto, entro no assunto. De tempos em tempos ouvimos falar que a justiça brasileira está em crise. Crise é um estado de conflito radical entre os princípios fundamentais e as leis incumbidas, teoricamente, de realizá-los na esfera prática. Quando uma sociedade perde de vista os princípios que a inspiram e fundamentam, as discussões sobre as leis proliferam ilimitadamente, sem que ninguém tenha a certeza íntima e sincera de defender a opinião correta, pois só os princípios poderiam fundar esta certeza e nessa hora o que falta não são opiniões, mas justamente os princípios capazes de arbitrá-las. É aí que cada um procura tanto mais teimosamente persuadir os outros quando menos persuadido ele próprio se encontra. Ao mesmo tempo, junto com as opiniões, proliferam as próprias leis, numa tentativa estéril e vã de ordenar por fora aquilo que por dentro já não é senão fragmentação e desordem no meio da cegueira geral.

Recentemente, um amigo meu, o advogado Cândido Prunes, me informou que, só no que concerne a um item específico e limitado — a alocação de recursos do orçamento federal —, o número de dispositivos legais já sobe a 5.200, entre leis, decretos, medidas provisórias, etc. etc. Idêntico florescimento quantitativo observa-se em muitos outros domínios da legislação, entre os quais é até covardia mencionar o direito tributário. A multiplicação das normas vigentes tem dois efeitos bastante óbvios: em primeiro lugar, elas perdem sua força normativa, já que cada uma é atenuada, mediatizada, desviada e eventualmente, na prática, até mesmo neutralizada por uma centena de outras. Em segundo lugar, se considerarmos — para voltar só ao caso do orçamento — que só raríssimos seres humanos são capazes de decorar 5.200 versos, quanto mais 5.200 normas, a situação assim criada torna nulo e sem efeito um dos princípios fundamentais, que é aquele segundo o qual ninguém tem o direito de alegar desconhecimento da lei. Na prática, ninguém tem mais é a possibilidade de alegar, verossimilmente, o CONHECIMENTO da lei. Nenhum brasileiro pode hoje, nos atos mais simples da vida comercial, familiar, funcional, etc., acreditar que sua simples boa-consciência espontânea seja um indicador confiável de que ele está dentro da lei. Quando as leis se transformam num emaranhado inabarcável a olho nu, a prudência recomenda que o cidadão esteja ciente de que a qualquer momento pode estar cometendo alguma infração sem perceber.

Eis aí um exemplo de conflito radical entre um princípio e as leis que, teoricamente, deveriam ser o seu prolongamento lógico. Ao contrário do que acontece no domínio do puro pensamento teórico, onde as conseqüências derivam das premissas linearmente e sem desvios, no curso tortuoso da vida histórica acontece que as conseqüências se voltam contra as premissas e, numa rebelião suicida, revogam seus próprios fundamentos. Isso é o que se denomina uma crise da justiça.

A expressão “crise da justiça” parece denotar, desde logo, o império da injustiça. E o império da injustiça, por sua vez, não pode apresentar outra aparência senão a de um caos sangrento, a luta de todos contra todos. Será isso o que ocorre no Brasil?

Algo na vida cotidiana de algumas grandes capitais parece confirmar esse diagnóstico. A atmosfera de medo, brutalidade e desconfiança, o banditismo triunfante e auto-satisfeito, a insubordinação e corrupção de tantos funcionários do Estado — tudo isto confirma a veracidade ao menos parcial do diagnóstico de injustiça generalizada que se associa espontaneamente à expressão “crise da justiça”.

No entanto, quem percorra o interior do Brasil, tanto o campo quanto as pequenas cidades nas quais se distribui a maior parte da nossa população, ou mesmo as capitais de província que ainda não entraram em crescimento canceroso e conservam proporções compatíveis com a escala humana, não encontra nada daquela turva e inquietante desordem que sacode as capitais maiores. Mesmo nas regiões mais pobres, onde a desigualdade social mais pronunciada deveria — se a violência tivesse causas econômicas — produzir os maiores distúrbios, o que se observa ainda é o mesmo bom e velho povo brasileiro de sempre, ordeiro, pacífico, sempre mais inclinado a enfrentar suas dificuldades pelo trabalho e pela oração do que a jogar as culpas sobre outras pessoas (mesmo quando estas têm de fato uma parcela de culpa nada pequena) e sempre resistindo, com uma serenidade milagrosa, à tentação da amargura e do ressentimento.

Em 1997, num debate de que participei em Porto Alegre, defrontei-me com o sr. João Pedro Stedile, o qual, agitando os braços e elevando a voz, proclamava existir na área rural brasileira “um estado endêmico de violência”. Com toda a calma, mas sem poder conter de todo o riso ao menos discreto que a situação me inspirava, apelei ao testemunho do próprio sr. Stedile, que dizia uma coisa enquanto orador e outra completamente diversa enquanto escritor. Pois o livro de sua autoria, “A Questão Agrária no Brasil”, do qual, por uma dessas coincidências providenciais, um exemplar tinha vindo parar às minhas mãos algumas horas antes do debate, informava que em toda a extensão do campo brasileiro, onde se concentram mais de 30 por cento da nossa população, o número de homicídios, ao longo da última década, não tinha passado de 40 por ano, um número inferior ao registro, não digo anual, mas mensal, de qualquer delegacia de bairro nas grandes capitais. O número, se algo provava, era que o campo era ainda, como sempre, a região mais pacífica do Brasil. E esse número seria ainda reduzido pela metade se líderes apressados como o próprio Sr. Stedile, incitando e comandando invasões sem sentido nem proveito, não tivessem precipitado artificialmente situações de ódio que uma estratégia mais inteligente e mais humana teria evitado, alcançando com menos dores os objetivos de um movimento que, em si, nada tem de injusto.

O sr. Stedile não deve ter apreciado muito essas observações, pois, quando chegou a sua vez de me interpelar, recusou-se a fazê-lo, bufando, esfregando nervosamente as mãos e alegando que seu oponente não merecia a honra de ser interrogado, afirmação que interpretei como sinal de que suas perguntas, se as fizesse, teriam sido demasiado científicas para os meus parcos recursos intelectivos.

Mas conto esse episódio só para ilustrar que, em plena crise da justiça, reconhecida e proclamada por todos, o estrato mais profundo da vida brasileira, a vida do povo brasileiro, permanece obediente a regras tradicionais de convivência que nem a confusão das leis, nem a perplexidade dos intelectuais urbanos, nem a brutalidade e a corrupção das grandes cidades lograram abalar.

Ao dizer isto, acabo de formular um problema. Problema, dizia Ortega y Gasset, é consciência de uma contradição. Porque o fato é que nós, homens letrados, professores, jornalistas, doutores, bacharéis, nos atormentamos diante da crise da justiça, que para nós significa desorientação e caos, significa não saber o que fazer, significa perplexidade e dificuldade para discernir o certo e o errado, enquanto no interior do Brasil os homens iletrados, o povão que com tanta empáfia denominamos ignorante, parece perfeitamente orientado, perfeitamente sabedor do certo e do errado, perfeitamente capaz de obedecer quase que por instinto às regras não escritas que tradicionalmente ordenam as relações entre os homens, os grupos, as famílias, e permitem que a vida, mesmo no meio de tantas dificuldades e desventuras, ainda tenha um rosto humano.

A justiça está em crise? Sim, a justiça escrita está em crise. Os papéis avolumaram-se, os registros acumularam-se, as decisões de tantos legisladores e intérpretes foram formando uma montanha densa de enigmas e impossibilidades, até o ponto em que os tribunais inferiores, não sabendo o que fazer, têm de chutar cada vez mais os problemas para os escalões superiores e estes, como se fossem deuses, têm de arbitrar o inarbitrável, inteligir o ininteligível e produzir justiça desde o acúmulo de injustiças.

A última coisa que eu desejaria ser, hoje, é ministro do Supremo Tribunal Federal. Contaram-me que cada uma dessas criaturas tem de examinar, em média, oito processos por dia. Algum de vocês já teve de tomar na vida uma decisão forçada pela urgência das circunstâncias? Pois esses senhores tomam uma atrás da outra, incansavelmente, movidos a comprimidos para não dormir e a enxertos de pontes de safena. Sim, a justiça dos homens letrados está em crise.

Essa crise, para piorar, não vem só de dentro. De todos os lados, vendo a justiça vacilar, outros homens letrados perdem a confiança nela e a atacam, desejando subjugá-la, pedindo que seja submetida a controle externo — como se o controlador não tivesse de ser em seguida controlado por outro controlador, e este por outro, e assim por diante infindavelmente, e como se a proliferação dos controles não fosse, por si própria, a prova mais eloqüente do descontrole do conjunto.

Mas, no meio de tanta celeuma e desorientação geral, olhem em torno. Não verão um povo descontrolado e possesso, mas um povo tranqüilo e firme, fiel a normas de senso comum que ninguém lhe ensinou, que parecem vir espontaneamente do fundo das épocas ou talvez do fundo da natureza das coisas. Esse povo, que desconhece as leis, parece conhecer mais profundamente que nós, letrados, os princípios que as fundamentam. Eles bastam para orientá-lo nas questões básicas da vida, pelo menos até o ponto em que é necessário recorrer à justiça dos letrados, porque aí tudo se complica formidavelmente.

Não é de hoje que esses dois Brasis coexistem em camadas separadas e mutuamente impenetráveis como o óleo e a água: o Brasil da ordem costumeira, lento, firme, seguro de si, e o Brasil das leis escritas, nervoso, inquieto, sempre devorando-se a si mesmo em acessos furiosos de autodestruição em que o proibido se torna obrigatório e o obrigatório proibido.

Não será precisamente nesse descompasso entre a vida e as leis que reside a famosa “crise da justiça”?

Nesse caso, a justiça brasileira não está em crise só neste momento. Ela viveu em crise, pelo menos, desde o século passado.

As leis são obras de gente letrada, e a gente letrada tem o hábito de olhar menos para o povo iletrado do interior do que para as gentes ainda mais letradas do Exterior. Sim, desejamos acompanhar as transformações do mundo, temos medo do que vão dizer de nós em Nova York e Paris, tememos ser chamados de atrasados e caipiras. Por isto, tão logo alguma nova doutrina surge por lá, nos apressamos a remoldar por ela todo o conjunto das nossas leis. Nossas constituições, que se sucedem velozmente, refletem menos a ordem real da nossa vida do que os ideais da classe letrada, a que o povo permanece profundamente indiferente. Não as fizemos para expressar o que realmente somos, para manifestar por escrito os princípios que governam a nossa vida. Ao contrário: fizemo-las para ser o que não éramos, fizemos para nos tornar, por obrigação escrita, aquilo que, de olho num mundo em rápida transformação, as classes letradas desejavam que fôssemos. Repetidamente, nós, o povo, temos decepcionado essas grandes esperanças dos reformadores. Repetidamente temos insistido em ser somente o que somos.

A crise atual da justiça, novamente, sacode as classes letradas sobre o pano de fundo da indiferença popular, reiterando o descompasso entre os dois Brasis.

No momento, porém, a crise apresenta um componente novo, ausente em todas as mudanças anteriores, traumáticas o quanto fossem, com que procuramos adaptar a um mundo em mudança um povo que quase sempre insistia em não mudar. É que antes nos limitávamos a copiar, com admiração e inveja, as novas normas produzidas no Exterior. Éramos nós, os letrados brasileiros, que íamos no encalço da moda.

Agora, os novos moldes não esperam até que os copiemos. Já não somos nós que os procuramos. São eles que nos procuram, são eles que se impõem, respaldados em poderes incalculavelmente vastos que decidem os destinos do mundo e não nos perguntam se concordamos.

As novas normas, os novos valores, as novas leis, os novos critérios vêm prontos do Exterior e não querem saber nossa opinião. Os nos adaptamos, ou somos jogados para fora dos trilhos da História, ou ao menos para fora do mundo economicamente real. Nossa única escolha é entre a obediência e a exclusão. Eis a justiça brasileira ante a Nova Ordem Mundial.

Crise da justiça? Esta expressão, como vimos, tem sentido duplo. Designa, de um lado, a confusão geral entre os doutores, à qual o povo permanece largamente indiferente, regido, como sempre, por princípios e costumes que ele não aprendeu com os doutores. Este é o sentido imediato da expressão “crise da justiça”.

Mas, numa escala histórica mais duradoura, ela designa o descompasso permanente entre a esfera das leis escritas, sempre em mudança para acompanhar o ritmo do mundo, e a vida do povo brasileiro, que, assentando-se nos princípios e na autoconfiança da consciência limpa, não precisa conhecer as leis para agir de maneira correta e sã.

Há duas crises da justiça brasileira: a nova e a velha. A nova reflete a dificuldade que as classes letradas encontram para criar um aparato judicial que funcione tão bem quanto se supõe que funcione a justiça de tal ou qual país dito mais avançado. Essa crise reflete o desejo das classes letras de lutar contra o arcaísmo, o desejo de entrar na modernidade.

Mas a crise mais velha, o divórcio entre leis e costumes, agrava-se precisamente na medida em que a classe letrada vai mudando as leis antes mesmo que o povo tenha se dado conta de que elas existem. Por isto dizia Euclides da Cunha: “Estamos condenados ao progresso.” Sim, condenados: o progresso, a modernidade, nos vem sempre de fora, de repente, como um traje apertado que nunca nos cabe direito.

Enquanto esse desajuste consistiu apenas numa diferença de ritmo entre as classes letradas e o povo, foi sempre possível alguma solução de compromisso, graças ao gênio brasileiro do meio-termo, da conciliação, das soluções práticas fundadas num acordo tácito de descumprir as leis da maneira mais legal possível. Mas agora já não são as nossas classes letradas que buscam adaptar-se a um modelo estrangeiro admirado e invejado. Agora é o próprio modelo que chega de repente e nos impõe, do dia para a noite, as mais bruscas modificações de costumes, de normas, de leis.

A modernidade bate à nossa porta, não como um portador de boas novas, mas como um oficial-de-justiça que nos traz uma intimação: adaptem-se ou morram.

A questão que se coloca para todos nós, nesta hora, é se esta adaptação supremamente radical e brusca não abrirá até às dimensões de um abismo intransponível o hiato já existente entre a cultura do nosso povo e as instituições legais com que as classes letradas procuram revesti-la. A questão é saber se, para ajustar-nos ao mundo, não nos desajustaremos definitivamente de nós mesmos, perdendo, para sempre, o senso de unidade cultural já tão enfraquecido por tantas adaptações anteriores. A questão é saber se, para adaptar-nos à Nova Ordem Mundial, não institucionalizaremos a desordem nacional, cristalizada no abismo entre a cultura popular e as leis.

A Nova Ordem Mundial, por si — garanto —, não está nem ligando para esse problema. O que ela quer é obediência, ajuste, concordância, coerência geométrica de um mundo arquitetado por engenheiros comportamentais para a maior glória do poder global. Se para tanto for preciso esmagar aqui e ali um país a mais ou a menos, quem se importa? O carro da História, dizia Trotski, esmaga as flores do caminho.

Entre o carro e as flores, deixo portanto vocês ante esse enigma, que não me cabe resolver em seu lugar.

Que cada um, no silêncio da sua intimidade, medite e receba, com a ajuda de Deus, a inspiração melhor, e que o pensamento de todos acabe por encontrar o caminho mais afortunado para este país.

Muito obrigado a todos pela sua atenção.

Veja todos os arquivos por ano