Yearly archive for 1998

Operação Avestruz

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 23 de julho de 1998

O novo mundo de governo planetário e “paz perpétua” que se anuncia para o século vindouro só é reconfortante e tranqüilizador para a população dos cemitérios. Para o restante da humanidade, ele é tão estranho, incompreensível e atemorizador, que as mentes mais fracas se recusam a vê-lo e se refugiam numa feroz nostalgia das guerras e revoluções do século 20, onde pelo menos todo mundo acreditava saber o que estava em jogo. Como fantasmas num teatro abandonado, continuam a reencenar mecanica-mente os velhos enredos, para uma platéia vazia, enquanto em torno o universo rui.

Quando ouço os miúdos discursos domésticos de nossos esquerdistas e de nossos liberais, em defesa do Estado ou da livre empresa, não posso deixar de constatar que tudo não passa de uma regressão uterina para um extinto mundo simples, em reação de autodefesa psíquica ante um súbito e temível alargamento do cenário histórico.

Entre nossos intelectuais, acadêmicos, jornalistas, políticos e comentaristas de tevê, quase ninguém quer realmente saber o que se passa, e, bem ao contrário, todos buscam produzir ansiosamente um discurso qualquer que os dispense de olhar para o mundo e lhes dê a ilusão de estar pisando no terreno firme da década de 40.

Mas a simples ignorância natural não bastaria para defendê-los de um mundo que se precipita, em velocidade atordoante, para dentro do desconhecido. Para manter-se numa reconfortante penumbra, têm de produzir com esforço deliberado uma espécie de ignorância ativa , reforçada todos os dias mediante novas e mais engenhosas negações dos fatos. Toda a imprensa nacional, sem exceções visíveis, é hoje apenas um mecanismo auxiliar dessa vasta Operação Avestruz, a força-tarefa designada para a missão de tapar os olhos da massa às notícias incatalogáveis.

Um exemplo característico é a facilidade unânime com que se dá por pressuposto, seja para maldizê-la, seja para enaltecê-la, que a Nova Ordem Mundial não é se-não um novo nome do bom e velho imperialismo norte-americano. Partindo dessa premissa, tudo não passa de uma questão de reeditar o discurso varguista contra o inimigo estereotípico da soberania pátria, ou de, inversamente, louvar os benefícios de uma economia transnacional. Ano após ano, enquanto o mundo em torno vai se tornando cada vez mais sinistro e ininteligível, o confronto nacional de idéias repete o debate Almino Affonso versus Carlos Lacerda, ou, na mais atualizada das hipóteses, sambão versus Tropicália. A moçada das redações, ignorante até o limite do sublime, reproduz as velhas notícias, com o entusiasmo caipira do trilionésimo Colombo.

Há certos temas de atualidade, no entanto, que por sua simples menção bastariam para desmantelar todo o teatrinho mental em que essa gente se refugia, e os quais, por isso mesmo, jamais entrarão na nossa imprensa, se não for pelo preciso canal por onde estão entrando agora, isto é, por um artigo assinado do campeão nacional de atipicidade jornalística, que não é outro senão este vosso atento criado, obrigado.

Digo logo um deles: em muitos meios conservadores norte-americanos – aqueles mesmos que, no nosso catálogo mental, seriam os mais associados aos interesses das grandes empresas –, a Nova Ordem Mundial é abominada como temível ameaça à soberania nacional dos Estados Unidos . Na visão dessas pessoas, o Federal Reserve System que governa hoje a economia norte-americana é uma intervenção estrangeira, o resultado de uma conspiração de poderosos interesses multinacionais que pretendem transformar a nação ianque em instrumento passivo de um inédito esquema onde, pela primeira vez na História humana, o futuro será inteiramente fabricado em laboratório, re-baixando a democracia à condição de um véu de fumaça para encobrir secretos manejos de engenharia social.

Como os sujeitos que dizem isso destoam das nossas expectativas quanto ao que deve ser a conduta supostamente típica de um imperialista ianque, livramo-nos deles num relance, decretando que devem ser uns esquisitões irrelevantes ou então agentes disfarçados da mesma conspiração que condenam. À horrenda perspectiva de ter de pensar para poder compreender um fenômeno estranho, optamos, no primeiro caso, por imaginar que sabemos melhor que os americanos quem é e quem não é importante na sua política interna; no segundo, como bons paranóicos, apostamos num maquiavelismo hiperbolicamente satânico do denunciante para não ter de nos preocupar com a hipótese mais dosadamente maquiavélica que ele denuncia.

Em ambos os casos, é a Operação Avestruz em marcha.

A intelectualidade brasileira nunca foi muito hábil em prever para onde vai o mundo, e nós dentro dele. Pois agora sua minguada capacidade preditiva vai sendo ainda mais debilitada, com a ajuda de uma imprensa unanimista onde o que não sai num jornal não sai em nenhum deles, e em coro, diante de qualquer fato novo, recua com o horror do poeta García Lorca ante a “sangre derramada” de seu amigo, toureiro morto na arena:

– No! Yo no quiero verla!

Carta de Olavo de Carvalho à revista Sui Generis

Rio de Janeiro, 22 de julho de 1998

Revista Sui Generis
A/c Sr. Nelson Feitosa – Diretor de Redação
R. Santa Clara, 307 – Copacabana
Rio de Janeiro RJ
Fax: 021 235 0743

Prezados Senhores,

No exercício do meu direito de resposta, e sem prejuízo de outras providências que a lei me faculte, peço a V. Sas. publicar as seguintes linhas:

Sui Generis reproduziu minhas declarações com razoável fidelidade – o que antigamente era obrigação, mas hoje é mérito. Pelo menos nisso, a repórter Clarisse Pereira não me decepcionou.

Na abertura, porém, o editor acrescentou algumas observações insultuosas, falsas, umas difamatórias, outras também caluniosas, que aliás prejudicam menos a mim do que ao leitor, o qual, militante gay ou não, merece a verdade.

1. Não se dá, em qualquer instituição universitária do Brasil ou do mundo, título acadêmico de “filósofo” e sim apenas o de “bacharel em filosofia” e o de “doutor em filosofia”, que não podem nem pretendem conferir a seu portador o estatuto de filósofo, mas somente o de professor de filosofia em ginásios ou faculdades – subentendendo-se aí distância análoga à que vai de um escritor a um simples professor de português. Em vista disso, e tendo-se dado conta do ridículo em que caíam, há mais de um ano meus detratores já desistiram de lançar sobre mim o improvisado epíteto de “filósofo auto-intitulado” (ou “autonomeado”), de que se socorreram na primeira hora e que não denunciava, enfim, senão o provincianismo mental de seus usuários. Ressuscitá-lo, agora, é falso, sem razão e extemporâneo.

2. O termo mais adequado para dizer o que queriam, na época, teria sido “autoproclamado”, mas nem com isto os infelizes atinaram. A imprecisão vocabular é marca inconfundível de quem fala depressa, sem pensar, movido pela raiva insensata – o que foi o caso deles como agora é o de vocês. Mas, mesmo que àqueles afoitos difamadores tivesse ocorrido o termo preciso, isto de nada lhes adiantaria, porque não encontrariam uma só linha de minha autoria onde eu me proclamasse filósofo. Quem assim começou a me designar foi Jorge Amado, logo seguido de Roberto Campos e de Sebastião Vila Nova, diretor do Instituto Joaquim Nabuco, o qual, na sessão que essa entidade promoveu em minha homenagem em 1o. de maio de 1997, fez ainda questão de sublinhar: “Filósofo, e não apenas professor de filosofia” – distinção que por si bastaria para resolver o caso. Daí por diante essa designação, honrosa mas aliás irrelevante ao exercício de minhas atividades profissionais, tornou-se hábito corrente na imprensa.

3. Mas o mais grave não é isso. Com uma leviandade atroz, Sui Generis atribui ao “meio acadêmico”, assim em geral e anônimo, uma acusação de que eu estaria “em conchavo com a elite do ensino privado no país”. A palavra “conchavo” denota contato subterrâneo para fins não muito lícitos, e seu emprego tem a manifesta intenção de atrair sobre mim suspeitas nebulosas e insinuações malévolas. Saibam vocês ou não, isto é crime. Sendo assim, Sui Generis tem a obrigação de declarar nominalmente de quem partiu a acusação, para que eu possa tomar contra o caluniador as providências judiciais cabíveis. Não havendo designação da fonte, a revista assumirá automaticamente a responsabilidade pela falsa denúncia.

4. Pior ainda, vocês dizem que o entrevistado “carrega a pecha de racista”. Ora, não carrego nem jamais carreguei pecha alguma. Ninguém jamais me chamou de racista, e, se chamasse, seria imediatamente processado por crime de calúnia. Aqui, novamente, Sui Generis esconde-se atrás de anônimos e inexistentes terceiros para lhes atribuir covardemente, com mão de gato, a pecha que ela própria quer lançar sobre mim. Para tornar a coisa ainda mais grave, ninguém, desejando espalhar uma acusação, recorreria a meios tão tortuosos e indiretos, se não soubesse que é falsa. Isto acrescenta ao crime de calúnia o agravante do dolo e a perversidade da má consciência.

5. O emprego do rótulo “homofóbico” mostra também a inequívoca intenção de difamar o entrevistado. “Homofobia” significa horror e repugnância irracionais pela pessoa do gayou da lésbica, coisa de que não dei o menor sinal ao longo de minhas declarações, se duras e incisivas contra uma ideologia, sempre respeitosas e até delicadas no tocante a pessoas e a seus hábitos privados.

Se vocês pretendem desacreditar como fobia e prevenção irracional qualquer argumento contra a ideologia gay, por mais racional e ponderado que seja, então, no ato, desmascaram seu intuito de atemorizar mediante chantagem verbal aquele a quem não podem vencer no campo da argumentação razoável. Os qualificativos com que designam a minha argumentação – “racional, mas não por isso menos homofóbica” – são, nesse contexto, um primor de nonsense, pois a idéia que nasce de considerações racionais não pode, ao mesmo tempo, ser mera expressão de uma fobia irracional.

A distinção entre ser contra a ideologia gay como tal e ser “homofóbico” é clara e patente como a diferença entre não querer comprar um cachorro e ter fobia de cachorros. Se vocês buscam encobri-la com a poeira de uma imprecisão vocabular premeditada, mostram desrespeito ao leitor e à própria causa que defendem. Se, ao contrário, a confusão não é premeditada mas brota da pura e simples raiva que, no atropelo de expressar-se, mete os pés pelas mãos, então, desculpem, mas fóbicos são vocês: são logofóbicos – têm medo e ódio da razão.

6. Logo na primeira frase, vocês já mostram que ou não entendem o que digo ou pretendem impedir que o leitor o entenda. Perguntado se sou de direita, respondi: “Neste país não há ninguém de direita. Se querem que eu fique na direita, fico.” Trata-se, evidentemente, de uma ironia contra as rotulações maniqueístas que nada esclarecem. Como interpretar isso no sentido de que o entrevistado “diz com orgulho que é homem de direita“? Onde é que vocês têm a cabeça? Sua sanha de carimbar não se detém nem mesmo ante a elementar distinção entre sentido direto e oblíquo? Ou, ao contrário, enlouquecidos pelo preconceito, perderam toda sensibilidade lingüística? Fico com esta última hipótese, não só por ser a mais caridosa, mas porque é a mais apta a dar conta de um texto medonhamente escrito, de estilo tatibitate enragé, onde o verbo “vaticinar” aparece como sinônimo de “qualificar”.

7. Quanto à rotulação “vaidoso”, é mero adjetivo solto no ar, que nada diz sobre um indivíduo de cujas qualidades e defeitos pessoais vocês não têm a menor idéia e a propósito das quais teria sido mais honesto não dizer nada. Mas não deixa de ser significativo do estado de espírito de quem o emprega, vindo da parte de um grupo militante que não se contenta em buscar com a modéstia humanamente admissível a satisfação de seus desejos carnais, mas se permite construir, para melhor adorná-los ante o espelho, toda uma ridícula Weltanschauungpseudofilosófica e pseudoteológica. Gays, no mundo, sempre houve, como sempre houve aficionados do álcool, do fumo ou das corridas de cavalos. Mas nenhum deles pensou jamais em fazer de seu gosto pessoal uma nova revelação sinaítica, habilitada a revogar cinco milênios de judaísmo e dois de cristianismo. Para isto, realmente, é preciso mais do que ser simplesmente vaidoso: é preciso uma vaidade inflada até as dimensões de uma obsessão demencial. Por isto não me ofende que o movimento gay me chame de vaidoso, como não me ofenderia que Fidel Castro me chamasse de comunista.

8. Por fim, vocês dizem que sou “verborrágico”. Posso até sê-lo – é doença profissional de quem vive da palavra –, mas jamais chegaria ao cúmulo de preencher centenas de revistas, livros, conferências e congressos, incansavelmente, com a teorização de meus deleites sexuais. E antes de dizer se padeço ou não de diarréia verbal, terão vocês contado o número das acusações que, mediante adjetivos e expressões adjetivas, derramaram num só jato fétido sobre a incauta pessoa que lhes concedeu, por amabilidade, uma entrevista? Direitista, homofóbico, conchavista, verborrágico, polêmico, vaidoso, racista, sofista, pré-kantiano… Talvez vocês não padeçam de verborragia crônica, mas, no momento em que escreveram isso, estavam certamente em crise aguda.

Quando optei por dar à sua repórter explicações minuciosas e didáticas, em vez de respostas lacônicas, não fiz isso por compulsão de falar, mas por simples demonstração de respeito e de boa vontade, que vocês, ao dar-lhe interpretação maliciosamente invertida, provaram não merecer. Doravante, saberei conter meu animus loquendi. Na próxima entrevista que me pedirem, direi uma só palavra. Não a anuncio agora para não estragar o prazer de dizê-la pessoalmente.

Com meus melhores votos,

Olavo de Carvalho

Coisas sérias

Olavo de Carvalho

Bravo!, julho de 1998

O Brasil no Salão do Livro de Paris

Se algumas décadas atrás o governo brasileiro resolvesse homenagear a cultura francesa e convidasse, para representá-la, Françoise Sagan em vez de André Malraux, Fernandel em vez de François Mauriac, Edith Piaff em vez de Raymond Aron , os franceses julgariam a coisa uma piada, e o general Charles de Gaulle, se nunca tivesse dito que o Brasil não é um país sério – como de fato parece que jamais o disse -, veria aí uma boa ocasião para dizê-lo.

No entanto nós, brasileiros, levamos perfeitamente a sério o Salão do Livro em Paris quando ele homenageia a nossa cultura literária nas pessoas dos srs. Chico Buarque, Frei Betto, Paulo Coelho, Fernando Gabeira, Zuenir Ventura, Luís Fernando Veríssimo e outros de calibre igual ou menor.

Ninguém negará que essas criaturas representam, de algum modo, a cultura brasileira. Mas de qual modo, precisamente?

Para ser representativo da cultura de um país e de um momento, o escritor tem de atender a três condições óbvias. Primeira: tem de ser ótimo, tem de expressar o melhor e o mais alto de que sua nação é capaz, tem de ter dado algo de valor ao mundo em nome do seu país. Segunda: tem de ser atual, isto é, atuante. Tem de estar up-to-date, seja pelas obras, seja pelos atos. Terceira: tem de ser influente, ser poderoso, ser muito lido e muito falado.

Dos trinta e sete escritores brasileiros da lista de homenageados do Salão de Paris, três e somente três, atendem a essas condições: Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro e Antonio Olinto. Todos os outros falham a uma, a duas ou às três.

Alguns deles são ótimos, mas inatuais. A falta de atualidade é, dos males, o menor. Tira a representatividade de um escritor sem diminuir em nada os seus méritos. Jorge Amado e Rachel de Queirós, por mais que tenham escrito coisas boas depois, nunca deixarão de ser o modernismo nordestino. Estão cravados nesse lugar do tempo. É um lugar honroso, o mais honroso de nossa literatura – mas não é o lugar onde estamos hoje. Lygia Fagundes Telles é maravilhosa, porém o melhor do que fez já tem duas décadas. Millor Fernandes jamais decaiu, mas ninguém dirá que, nos últimos vinte anos, fez coisa mais digna e de destaque do que Um Elefante no Caos ou Liberdade, Liberdade. Geraldo Mello Mourão é um gênio assombroso – mas há tempos ninguém ouve falar de suas obras. Quem dirá que Antonio Torres não é grande? É sim, mas não cresceu na última década: sua fama e sua melhor produção estão indissoluvelmente associadas aos anos tenebrosos da ditadura. O mesmo deve ser dito de Plínio Marcos. Há mais dois ou três nessa categoria, mas, não tendo a lista diante dos olhos, falo apenas do que conservo na memória. Por justo que seja homenageá-los, sua escolha jamais seria prioritária num evento destinado a apresentar a um povo estrangeiro a cultura brasileira de hoje.

Há um segundo grupo: o daqueles que são ótimos e atuais, mas não influem em nada, porque ninguém os leu. São uma possibilidade, uma esperança. Tenho esperança de que Adriano Espínola venha a ser o Brasil de amanhã, quando Língua-MarTáxi, como merecem, forem lidos em todas as escolas. No Brasil de hoje, é uma glória literária em estado de hipótese. Dizer que ele nos representa é fazer um discurso de posse antes de inscrever a candidatura. O terceiro grupo é o dos escritores que são apenas atuais sem ser influentes ou ótimos: fizeram recentemente coisas que não tiveram a menor repercussão e que, por coincidência, também não valiam nada. Sua presença na lista é um enigma insondável. Não citarei nomes. Non raggionam di lor, ma guarda e passa.

A ala mais interessante é a dos que são influentes e atuais, apenas. Especializaram-se, aliás, em sê-lo, e não fariam o mínimo esforço para se tornar também ótimos, seja porque ignoram que raio de coisa é isso, seja porque imaginam que consista em ser exatamente aquilo que são. Por inacreditável que pareça, esses constituem o grosso da lista. Traduzem, portanto, a essência do critério que inspirou a seleção. São precisamente aqueles que citei no começo deste artigo e mais uma dezena de outros de idêntico teor intelectual. É pela análise dos motivos de sua escolha que descobriremos o que o Salão do Livro de Paris pensa do Brasil.

Não se pode dizer, repito, que esses nomes não representam a cultura nacional. Representam-na, porém não no sentido eminente em que a representaram Machado de Assis e Villa-Lobos, Gilberto Freyre e Portinari, ou no sentido em que representam, hoje, – e atendendo às três condições – Ariano Suassuna, Bruno Tolentino, Ferreira Gullar, Wilson Martins, Roberto Mangabeira Unger, Miguel Reale, Meira Penna, Amaral Viera, Edino Krieger e alguns outros que, como esses, não entram na lista. Aqueles escolhidos não representam o “gênio” brasileiro, mas, sim, apenas a “atualidade” brasileira, aquilo de que todos falam no dia-a-dia. Numa palavra, representam a nossa cultura no sentido antropológico do termo: gostos e hábitos do povo. Precisamente aquele sentido no qual estaria mais que justificada a escolha de Fernandel, Edith Piaff e Françoise Sagan como representantes da França.

Ora, o que define o ponto de vista antropológico é a abstenção de juízos de valor. Para o antropólogo, o canibalismo ou o controle da natalidade pelo estrangulamento dos recém-nascidos são meros fatos, “dados culturais”: como amostras de “cultura”, valem tanto quanto a Catedral de Chartres, as obras completas de Pascal ou o auto-sacrifício de Joana d’Arc. Do mesmo modo, Frei Betto ou Paulo Coelho não são valores brasileiros. São fatos e têm uma altíssima relevância antropológica. Não podemos negar que aconteceram, embora haja quem o lamente.

O ponto de vista antropológico pressupõe, no observador, uma neutralidade, um distanciamento, que dificilmente ele poderia ou desejaria sentir ante sua própria cultura. Malinovski nas Ilhas Trobriand ou Ruth Benedict entre os índios do Novo México podiam olhar as coisas de longe porque tinham vindo de longe e sabiam que iam voltar para longe – para o lugar onde estavam as coisas amadas e odiadas, as coisas verdadeiramente importantes e valiosas, as coisas que exigem decisões e compromissos. Comparada com as exigências concretas da vida, a “cultura” que o antropólogo estuda é um modelo funcional ou estrutural, uma cultura de brinquedo, desmontável e inofensiva.

Quem se coloca desse ponto de vista, geralmente, não pretende adotar para si nenhum dos valores da cultura estudada, mas, confortavelmente instalado nos valores da própria cultura, quer apenas observar com isenção de entomologista uns tipos exóticos que usam osso atravessado no nariz e comem criancinhas. Ninguém olha uma cultura com tamanha frieza quando pretende aprender com ela, isto é, incorporá-la, moldar por ela valores, hábitos, critérios e decisões pessoais, muito menos nacionais. Essa é a diferença que existe num francês quando ele estuda tribos nigerianas e quando lê Goethe ou Hegel, Shakespeare ou Leopardi. Ele aprende em ambos os casos, mas a diferença é a mesma que há entre um objeto de estudo e o professor que o ensina. O objeto é passivo e inerme ante o estudante. O professor ou mestre, ao contrário, ensina, dirige, molda. O interesse por uma cultura não é o mesmo conforme se trate, para o observador, de uma cultura-objeto ou de uma cultura-mestra. Se o Salão do Livro de Paris houvesse escolhido, para representar o Brasil, um Suassuna, um Tolentino, um Mangabeira, um Miguel Reale, haveria motivo para supor que a França, a orgulhosa França, consentira em aprender com brasileiros que têm algo a lhe ensinar. Como escolheu predominantemente aquelas pessoas que mencionei, torna-se claro que ela deseja aprender sobre nós, mas não de nós. Não nos quer como professores, mas como objetos de estudo. Como objetos de estudo, os escolhidos foram, sem dúvida, bem escolhidos: o sr. Chico Buarque é pelo menos tão significativo, antropologicamente, quanto um exemplar de Notícias Populares, as práticas orçamentárias do Congresso Nacional, o time do Corinthians ou a banheira do Gugu.

Não sou eu quem há de dizer que a França não é um país sério. Um país que para realizar idéias de philosophes faz rolar um milhão de cabeças é mais que sério. É mortalmente sério. Ora, como se vê por esse mesmo exemplo, as atitudes das pessoas sérias tem conseqüências mais letais que as de pessoas frívolas. Logo, se a França julga que a cultura brasileira deve ser encarada sobretudo como um objeto, um dado antropológico em que as considerações de valor não têm importância, muito provavelmente sua visão do Brasil será levada a sério, adotada e copiada pelos brasileiros mesmos, para os quais a cultura francesa é mestra e não objeto. Para seguirmos o que nossa mestra nos ensina sobre nós mesmos, haveremos de nos abster de qualquer julgamento de valor sobre as nossas produções culturais, e, com isenção antropológica, não distinguiremos mais entre Chico Buarque e Bruno Tolentino, entre Frei Betto e Mangabeira Unger, entre Zuenir Ventura e Miguel Reale. E aí é que as coisas começarão a ficar bem mais sérias.

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