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O Imbecil Coletivo II: APEIROKALIA

Olavo de Carvalho

Bravo!, Ano I, no1, novembro de 1997 e A Longa Marcha da Vaca para o Brejo: O Imbecil Coletivo II. Rio, Topbooks, 1998.

Como geralmente se entende por educação superior o simples adestramento para as profissões melhores, conclui-se, com acerto, que toda pessoa normal é apta a recebê-la e que, na seleção dos candidatos, qualquer elitismo é injusto, mesmo quando não resulte de uma discriminação intencional e sim apenas de uma desigual distribuição da sorte. Mas se por essa expressão se designa a superação dos limites intelectuais do meio, o acesso a uma visão universal das coisas, a realização das mais altas qualidades espirituais humanas, então existe dentro de muitos postulantes um impedimento pessoal que, mais dia menos dia, terminará por excluí-los e por fazer com que a educação superior, no sentido forte e não administrativo do termo, continue a ser de fato e de direito um privilégio de poucos.

Esse impedimento, graças a Deus, não é de ordem econômica, social, étnica ou biológica. É um daqueles males humanos que, como o câncer e as brigas conjugais, se distribuem de maneira mais ou menos justa e eqüitativa entre classes, raças e sexos. É o único tipo de imperfeição que poderia, com justiça, ser invocado como fundamento de uma seleção elitista, mas que de fato não precisa sê-lo, pois opera essa seleção por si, de maneira tão natural e espontânea que os excluídos não dão pela falta do que perderam e chegam mesmo a sentir-se bastante satisfeitos com o seu estado, reinando assim entre os poucos felizes e os muitos infelizes uma perfeita harmonia, salvaguardada pela distância intransponível que os separa.

O impedimento a que me refiro não é material ou quantificável. O IBGE não o inclui em seus cálculos e o Ministério da Educação o ignora por completo. No entanto ele existe, tem nome e é conhecido há mais de dois milênios. A mente treinada reconhece sua presença de imediato, numa percepção intuitiva tão simples quanto a da diferença entre o dia e a noite.

Os gregos chamavam-no apeirokalia. Quer dizer simplesmente “falta de experiência das coisas mais belas”. Sob esse termo, entendia-se que o indivíduo que fosse privado, durante as etapas decisivas de sua formação, de certas experiências interiores que despertassem nele a ânsia do belo, do bem e do verdadeiro, jamais poderia compreender as conversações dos sábios, por mais que se adestrasse nas ciências, nas letras e na retórica. Platão diria que esse homem é o prisioneiro da caverna. Aristóteles, em linguagem mais técnica, dizia que os ritos não têm por finalidade transmitir aos homens um ensinamento definido, mas deixar em suas almas uma profunda impressão. Quem conhece a importância decisiva que Aristóteles atribui às impressões imaginativas, entende a gravidade extrema do que ele quer dizer: essas impressões profundas exercem na alma um impacto iluminante e estruturador. Na ausência delas, a inteligência fica patinando em falso sobre a multidão dos dados sensíveis, sem captar neles o nexo simbólico que, fazendo a ponte entre as abstrações e a realidade, não deixa que nossos raciocínios se dispersem numa combinatória alucinante de silogismos vazios, expressões pedantes da impotência de conhecer.

Mas é claro que as experiências interiores a que Aristóteles se refere não são fornecidas apenas pelos “ritos”, no sentido técnico e estrito do termo. O teatro e a poesia também podem abrir as almas a um influxo do alto. À música — a certas músicas — não se pode negar o poder de gerar efeito semelhante. A simples contemplação da natureza, um acaso providencial, ou mesmo, nas almas sensíveis, certos estados de arrebatamento amoroso, quando associados a um forte apelo moral (lembrem-se de Raskolnikov diante de Sônia, em Crime e Castigo), podem colocar a alma numa espécie de êxtase que a liberte da caverna e da apeirokalia.

Porém, com mais probabilidade, as experiências mais intensas que um homem tenha tido ao longo de sua vida serão de índole a desviá-lo do tipo de coisa que Aristóteles tem em vista. Pois o que caracteriza a impressão vivificante que o filósofo menciona é justamente a impossibilidade de separar, no seu conteúdo, a verdade, o bem e a beleza. De Platão a Leibniz, não houve um só filósofo digno do nome que não proclamasse da maneira mais enfática a unidade desses três aspectos do Ser. E aí começa o problema: muitos homens não tiveram jamais alguma experiência na qual o belo, o bem e o verdadeiro não aparecessem separados por abismos intransponíveis. Esses homens são vítimas da apeirokalia — e entre eles contam-se alguns dos mais notórios intelectuais que hoje fazem a cabeça do mundo.

Infelizmente, o número dessas vítimas parece destinado a crescer. Já em 1918, Max Weber assinalava, como um dos traços proeminentes da época que nascia, a perda de unidade dos valores ético-religiosos, estéticos e cognitivos. O bem, o belo e a verdade afastavam-se velozmente, num movimento centrífugo, e em decorrência

“os valores mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas diretas e pessoais… Não é por acaso que hoje somente nos círculos menores e mais íntimos, em situações humanas pessoais, é que pulsa alguma coisa que corresponda ao pneuma profético, que nos tempos antigos varria as grandes comunidades como um incêndio”.1

As duas fortalezas do sublime, que Weber menciona, não demoraram a ceder: a vida mística, assediada pela maré de pseudo-esoterismo que se apropriou de sua linguagem e de seu prestígio, acabou por se recolher à marginalidade e ao silêncio para não se contaminar da tagarelice profana. A intimidade, vasculhada pela mídia, violada pela intromissão do Estado, tornada objeto de exibicionismo histérico e de bisbilhotices sádicas, desapropriada de sua linguagem pela exploração comercial e ideológica de seus símbolos, simplesmente não existe mais.

Toda a literatura do século XX reflete esse estado de coisas: primeiro a “incomunicabilidade” dos egos, depois a supressão do próprio ego: a “dissolução do personagem”. Mas, desde Weber, muita água rolou. Nas proximidades do fim do milênio, o que se entende por mística é um cerebralismo de filólogos; por intimidade, o contato carnal entre desconhecidos, através de uma película de borracha. Os três valores supremos já não são apenas autônomos, mas antagônicos. O belo já não é apenas alheio ao bem: é decididamente mau; o bem é hipócrita, pseudo-sentimental e tolo; a verdade, feia, estúpida e deprimente. A estética celebra os vampiros, a morte da alma, a crueldade, o macho que mete o braço até o cotovelo no ânus de outro macho. A ética reduz-se a um discurso acusatório de cada um contra seus desafetos, aliado à mais cínica auto-indulgência. A verdade nada mais é o consenso estatístico de uma comunidade acadêmica corrompida até à medula.

Nessas condições, é um verdadeiro milagre que um indivíduo possa escapar por instantes da redoma de chumbo da apeirokalia, e outro milagre que, ao retornar ao pesadelo que ele denomina “vida real”, esses instantes não lhe pareçam apenas um sonho, que não se deve mencionar em público.

Mas nada proíbe um escritor de dirigir-se, em suas obras, aos sobreviventes do naufrágio espiritual do século XX, na esperança de que existam e não sejam demasiado poucos. Acossados pelo assédio conjunto da banalidade e da brutalidade, esses podem conservar ainda uma vaga suspeita de que em seus sonhos e esperanças ocultos há uma verdade mais certa do que em tudo quanto o mundo de hoje nos impõe com o rótulo de “realidade”, garantido pelo aval da comunidade acadêmica e da Food and Drug Administration. É a tais pessoas que me dirijo exclusivamente, ciente de que não se encontram com mais freqüência entre as classes letradas do que entre os pobres e os desvalidos.

NOTAS

  1. Max Weber, “A ciência como vocação”, em Ensaios de Sociologia, org. H. H. Gerth e C. Wright Mills, trad. Waltensir Dutra, rev. por Fernando Henrique Cardoso, 5ª ed., Rio, Guanabara, 1982, p.182.

S. Exa. e o fumo

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 29 de outubro de 1998

Em circunstâncias normais o mundo jamais teria ouvido falar de S. Exa., o Meritíssimo Juiz da 4.ª Vara Federal de Porto Alegre. Mas o mundo de hoje não é normal: é um mundo espremido, compactado, miniaturizado, que cabe numa tela e é varrido, de Leste a Oeste, num piscar de olhos, pelas lupas eletrônicas de satélites bisbilhoteiros. Na nova escala microscópica das coisas, é bem natural que qualquer criatura de dimensões exíguas apareça formidavelmente ampliada.

Foi preciso, de fato, que o mundo mudasse muito para que um infinitesimal togado pudesse alterar, com um simples toque de caneta, os hábitos e o estado de humor de milhares de pessoas de todos os quadrantes da Terra. Proibindo sumariamente o fumo nos aviões comerciais brasileiros, pouco importando a duração do vôo, seja para Catolé do Rocha ou Tashkent. Posso atestar que, no vôo da Varig que me trouxe de volta à pátria amada no último dia 22, pelo menos durante os 15 minutos da profecia de Andy Warhol S. Exa. foi objeto das atenções de bolivianos, franceses, americanos e japoneses, os quais, em suas respectivas línguas, proferiram a respeito comentários dos quais uma parte não compreendi e a outra parte não ouso reproduzir. É razoável conjeturar que conversações similares tenham se desenrolado em muitos outros vôos, perfazendo, no conjunto, um ibope nada desprezível.

Não me interessa, aqui, sondar as razões de S. Exa. Suponho que se imagine um benfeitor da humanidade. E, se tal é o caso, em nada abalará essa sua crença a informação de que o primeiro governo a reprimir o fumo, sob pretextos humaníssimos, foi o da Alemanha nazista, e de que o conceito de “fumante passivo” foi contribuição pessoal do Führer ao progresso da ciência: duvido que S. Exa. tenha intuição sociológica bastante para captar aí algo mais do que mera coincidência, e afinal a hipótese de um neofascismo disfarçado sempre poderá ser exorcizada mediante um daqueles jogos verbais em que são proverbialmente hábeis os juristas. S. Exa. dirá, por exemplo, que tão graves são os males do fumo que até mesmo a mente nebulosa de Adolf Hitler os percebeu. Em seguida irá dormir o sono dos justos, a salvo de toda comparação incômoda. Nem o poderá abalar a ponderação de que o mencionado conceito, antes de adquirir foros de coisa científica, circulou por décadas no submundo ocultista, até impregnar-se no imaginário coletivo com a obsessividade de um íncubo.

Afinal, que podem estas vãs palavras contra a autoridade pontifícia da Organização Mundial da Saúde? OMS locuta, causa finita . É verdade que as pesquisas tremendamente científicas que associam o fumo às fogueiras do inferno omitiram todo diagnóstico diferencial entre tabacos diversamente tratados, portanto quimicamente diferentes, e se limitaram a calcular estatisticamente os efeitos de um universal abstrato. Também é verdade que não houve diagnóstico diferencial entre fumantes de regiões poluídas e limpas, nem entre fumantes ansiosos e calmos, embora seja o pulmão a sede por excelência das somatizações de angústia. É verdade, ainda, que a própria OMS instituiu o erro sistemático das estatísticas, ao autorizar a classe médica a incluir o tabagismo entre as causae mortis de qualquer fumante que morra de doença pulmonar, independentemente de exames que comprovem a conexão de uma coisa e outra no caso concreto. É verdade que a histeria antitabagística erige em norma legal a suscetibilidade mórbida do paciente alérgico, um neurótico que não consegue desviar a atenção do que o incomoda, e debilita por efeito da propaganda adversa a tolerância normal do indivíduo são. É verdade que a “saúde pública” é hoje um temível instrumento de controle social. Nem mesmo os intelectuais ousam desafiar a nova divindade: as críticas jamais respondidas da contracultura da década de 60 à então chamada “máfia de branco” cederam lugar a uma temerosa e patética subserviência universal, prelúdio de catástrofes. Finalmente, é verdade que todo paternalismo, que alega proteger um homem contra si mesmo, é um atentado contra a dignidade humana.

Tudo isso é verdade, mas S. Exa. não está nem aí. Afinal, sua sentença é apenas uma liminar, esse maravilhoso expediente que permite à consciência jurídica gastar em um segundo seus 15 minutos de fama, sem ter de arcar com a responsabilidade das decisões definitivas e irremediáveis.

Deus acredita em você?

Entrevista à Rádio Europa Livre (repórter Cristina Poienaru)

Bucareste, 21 de outubro de 1998

        — Você acredita em Deus?

        — Respondo como Henry Miller: o problema não é se eu acredito em Deus, mas se Deus acredita em mim.
A realidade de Deus é para mim uma evidência invencível, na medida em que Deus se identifica com a infinitude metafísica que é o fundamento de toda realidade possível. As pessoas hoje em dia têm alguma dificuldade de compreender isso porque se deixaram enganar por falsas lógicas (como a de Georg Cantor, por exemplo) e acabaram por perder todo sentido da infinitude metafísica.
A resposta de Miller significa que nossa vida é uma história escrita tanto por Deus quanto por nós mesmos, e que no enredo você corre o risco de escolher o papel de farsante, de mentiroso, de vigarista. É importante ter idéias verdadeiras, mas isso não é tudo. É preciso também viver no verdadeiro, isto é, não fingir que você sabe o que não sabe, nem que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Se você não é fiel a essas duas exigências, sua vida é uma mentira e o conteúdo pretensamente verdadeiro de seus pensamentos não é senão uma parte da farsa total – aquela parcela de verdade de que a mentira precisa para se tornar mais verossímil. Aí Deus não pode acreditar em você, porque, no fundo, você não existe.

        Você acha que é bom existir uma crença religiosa sem igreja?

       — Certamente. O alto clero mentiu muito para os fiéis no século XX e eles têm o direito de guardar uma certa distância da Igreja, certamente sem renegá-la, mas num espírito de espera prudente até que Deus se digne de lhes dar novas luzes. Para não dar senão um exemplo, um pouco antes do Concílio a Igreja de Roma assinou com as autoridades soviéticas o tristemente célebre Pacto de Metz, que a obrigava a abster-se de toda denúncia contra os regimes comunistas durante as sessões do Concílio. O pacto, que era secreto, foi ocultado da imprensa ocidental e não foi divulgado senão algum tempo depois, pelos jornais soviéticos. Se você leva em conta que até essa época os regimes comunistas já tinham matado quase uma centena de milhões de pessoas, das quais pelo menos uns trinta milhões de cristãos que não tinham cometido outro crime senão o de ser cristãos, você compreende a gravidade quase infinita desse acordo. Hoje em dia condena-se o Papa Pio XII por ter feito certo silêncio em torno da perseguição aos judeus na Alemanha, mas quem queira desculpá-lo pode ao menos alegar, para raciocinar por absurdo, que não eram ovelhas do seu rebanho, que ele não tinha a obrigação de dar o alarme se o lobo atacava apenas as ovelhas do seu vizinho. Mas o que se pode pensar do pastor que entrega ao lobo as ovelhas do seu próprio rebanho? Ante essa cumplicidade abominável, as críticas bem polidas e de ordem puramente teórica que a Igreja continuou a fazer ao marxismo não passam de hipocrisia. E como você haveria de querer que, depois de coisas desse gênero, milhões de fiéis não perdessem a confiança na Igreja e não escolhessem ser, ao menos a título provisório, cristãos sem Igreja? Foi o Vaticano que traiu a confiança deles, é a ele que cabe arrepender-se e lhes pedir perdão, em vez de fazer essas ridículas genuflexões rituais ante o mundo ateu, que se tornaram a moda oficial do dia.

        — O ecumenismo é possível?

        — No tempo em que os pensadores cristãos, muçulmanos e judeus se compreendiam uns aos outros, não se falava de ecumenismo porque ele era uma realidade vivente que não precisava de nome. Sto. Tomás e Sto. Alberto disputavam, decerto, com os judeus e muçulmanos, mas eles os compreendiam e respeitavam. Após o século XIV todos os laços espirituais e intelectuais com o Islam e o judaísmo se romperam e hoje em dia você não encontra senão raros especialistas que sejam capazes, por exemplo, de lhe dizer os nomes de três ou quatro pensadores muçulmanos modernos. O diálogo dos espíritos foi substituído pelos acordos de chancelarias, e hoje em dia o ecumenismo não é senão o disfarce de uma política globalizante que não tem nada de espiritual. No entanto o verdadeiro ecumenismo, que é dos espíritos, permanece sempre possível, e basta recordar o diálogo de Franz Rosenzweig e Eugen Rosenstock, ou as obras de Louis Massignon, para ter exemplos concretos dessa possibilidade. Numa escala bem menor, fiz de minha própria vida um exemplo desse gênero de ecumenismo, escrevendo por exemplo meu ensaio O Profeta da Paz, que é uma exegese simbólica da vida do Profeta Maomé à luz das tradições católica e judia. Creio que do ponto de vista da pura interioridade há sempre aproximações surpreendentes entre as diversas religiões, mas que isso não tem nada a ver com os espetáculos rituais ecumênicos transmitidos pela mídia. Falou-se muito do “Estado espetáculo”, mas há também uma “religião espetáculo” que arrisca submergir toda espiritualidade sob uma chuva de falsas luzes.

       — Como você situa o conhecimento na Nova Ordem Mundial?

       — O conhecimento aí arrisca tornar-se uma coisa puramente material, como um arquivo de dados registrados por meios eletrônicos e transmitidos de computador a computador sem passar por uma consciência humana. Hoje em dia pode-se produzir teses acadêmicas apenas sintetizando dados previamente hierarquizados por computadores, sem que haja necessidade do menor esforço pessoal de intelecção. É a perfeição da “consciência coletiva” formada de uma multidão de cientistas sonâmbulos. A doutrina de Wittgenstein sobre um pensamento que se pensa a si mesmo sem necessidade de um sujeito humano torna-se assim uma profecia auto-realizável. Creio que Wittgenstein foi um gênio da inconsciência, um herói da covardia intelectual, o criador de uma doutrina que atinge os cumes de uma estupidez quase inimaginável. No mundo wittgensteiniano que nos aguarda, os livros não serão lidos senão por eles mesmos, demitindo os leitores humanos. O conhecimento se tornará uma figura de linguagem para designar os depósitos de dados que não serão conhecidos por ninguém, e a cultura se tornará um museu eletrônico jamais visitado. Certamente, haverá sempre alguns indivíduos que farão esforços para permanecer conscientes, e mesmo a elite dominante terá certa necessidade dos serviços deles. Mas não consigo nem imaginar os abismos de sofrimento que eles terão de suportar.

       — Você acredita que o século XXI será cristão?

       — Não. Bem ao contrário, ele é já em suas raízes o século do Anticristo, o século da opressão travestida em liberdade, o século em que as pessoas que matarem os santos acreditarão estar servindo a Deus. Já vemos formar-se uma espécie de religião administrada, um falso ecumenismo que une os senhores do dia em torno de um credo todo feito de lugares-comuns, uma mistura de banalidades moralistas, de oportunismo político e de um desejo infinito de agradar a mídia. É certo que Deus pode dispor de outro modo, mas tudo indica que estamos entrando numa era em que a impostura será a única forma de religião admitida, e na qual o homem que queira permanecer fiel ao Espírito não poderá buscá-lo senão no interior de sua alma solitária.

       — Qual é sua definição de cultura?

       — A cultura antigamente era a busca de objetivos superiores à simples sobrevivência material. Esta definição aplicava-se igualmente bem à Grécia e às pequenas culturas indígenas do Brasil. Mas hoje em dia o que se chama cultura se torna a criação ilimitada de novos apetites materiais que se multiplicam sem fim e que impedem as pessoas de ter outras ambições. Você vê, todos os debates ditos culturais da atualidade se desenvolvem em torno de assuntos ligados à vida corporal e à busca de bens de ordem material. De um lado, são desejos econômicos: os capitalistas proclamam que o único bem é a riqueza e os socialistas respondem que o único mal é a pobreza. De outro lado, são ambições de ordem sexual exaltadas até ao delírio: após os direitos dos homossexuais, proclama-se o direito à pedofilia, e assim por diante. A multiplicação das necessidades e das insatisfações materiais (até mesmo causadas pela própria abundância) não tem limite, uma vez que se tenha tomado essa direção.
O mais irônico de tudo é que a tradição da cultura “politicamente engajada”, que foi outrora um instrumento de libertação, se tornou um meio de escravização: ela tem por missão tornar os homens escravos de suas insatisfações menores, de modo a jamais permitir que olhem para o céu e aspirem a uma vida mais elevada. É preciso que cada um só pense naquilo que o incomoda no meio imediato, seja o desejo sexual insatisfeito, seja a fumaça dos cigarros que o perturba, seja a falta de dinheiro ou o ódio invejoso que ele volta contra pessoas que ele imagina mais felizes. As pessoas que se ocupam desse gênero de coisas permanecem para sempre crianças doentes, não chegam jamais à idade madura que é renúncia, perdão, tolerância, generosidade. A cultura tornou-se instrumento da puerilização universal. Não vejo meio de encontrar uma definição de cultura que se aplique por igual a isso e àquilo que outrora se chamava por esse nome. Não se trata de espécies do mesmo gênero, e portanto toda filosofia da cultura está hoje condenada a não ser senão história das culturas antigas ou legitimação ideológica desse novo fenômeno que não tem em comum com elas senão o nome.

       — A literatura sul-americana está em vias de se tornar a mais importante do mundo?

       — Talvez, mas isso é pouca coisa, numa época em que toda literatura se reduz a um ludismo imaginativo feito para o consumo ou à manipulação das massas pela nova administração da alma do mundo. O sucesso de Paulo Coelho e o Prêmio Nobel dado a esse ridículo Saramago ilustram com perfeição essas duas funções da literatura. Meus interesses passam a léguas de distância dessas futilidades, e estou pouco me lixando para a literatura, seja sul-americana, européia ou marciana.

       — Quais são as fraquezas da democracia?

       — Georges Bernanos já tinha dito: a democracia não é o contrário da ditadura; ela é a causa da ditadura. Basta ver como a noção de direitos humanos é hoje utilizada para impor às pessoas novas formas tirânicas de controle do comportamento, para perceber que Bernanos tinha razão. A democracia, para subsistir, tem de se apoiar sempre em alguma coisa totalmente diversa, num sistema de valores extrapolíticos ou suprapolíticos, como por exemplo o cristianismo. Mas a própria democracia tende a destruir esses valores e em seguida é deixada a si mesma e se transforma em tirania: tudo democratizar é tudo politizar, e quando não restam outros valores senão políticos, então é a ditadura, como a definia Carl Schmitt, a pura luta pelo poder, que não pode levar senão à vitória dos mais fortes. Hoje em dia, mesmo os debates ditos intelectuais se tornaram pura luta política, isto é, lobby, grupos de pressão, manipulação de verbas, intimidação dos inimigos, e assim por diante. É o resultado da democratização, e é indiscutivelmente ditadura. Para salvar a democracia seria preciso saber limitá-la, isto é, restringir os critérios democráticos ao território estritamente político e limitar o território da política, instituindo para além da política uma zona onde os debates não sejam decididos por meios políticos mas pela razão, pela sabedoria e pelo amor. Isto seria precisamente a função da cultura, mas a cultura já está quase completamente politizada e vamos a largos passos para a ditadura universal, sob o aplauso geral das massas. Como dizia uma velha canção americana, O when will they ever learn?

       — Qual a relação entre a literatura e o totalitarismo (dizem que o totalitarismo produz boa literatura)?

       — Não creio que o verdadeiro artista, para criar belas obras, necessite nem da liberdade política nem da opressão, nem de riqueza, nem de miséria. São estimulantes artificiais, exatamente como a cocaína. Tudo depende da livre vontade, a qual é ela mesma um tipo de criação artística preliminar à materialização das obras. As condições exteriores não têm um papel fixo e constante e o artista pode se adaptar às condições mais diversas. Veja: Thomas Mann e Jacob Wassermann não esperaram o nazismo para escrever seus mais belos romances, mas os produziram em plena democracia, ao passo que Dostoiévski criou toda a sua obra sob a opressão tzarista e Soljenitsin sob a ditadura comunista. As teorias que fazem a criação literária depender como um efeito mais ou menos passivo das condições exteriores são obra de gente incapaz, de professores medíocres que, por si mesmos, não criam nada e não compreendem a criação do que quer que seja. Infelizmente são essas pessoas que hoje em dia dão o tom dos estudos literários.

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Tradução (Francês)

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